Texto de Rubem Alves
De tudo o que Dostoiévski escreveu em Os irmãos Karamazov; o que mais me impressionou foi o relato sobre o “Grande Inquisidor”. Jesus havia voltado à terra e andava incógnito entre as pessoas. Todos o conheciam e sentiam o seu poder, mas ninguém se atrevia a dizer o seu nome. Não era necessário. O Grande Inquisidor o observava de longe, no meio da multidão, e ordena que ele seja preso e trazido à sua presença. Então, diante do prisioneiro silencioso ele profere a sua acusação.
Não há nada mais sedutor aos olhos dos homens do que a liberdade de consciência, mas também não há nada mais terrível. E em lugar de pacificar a consciência humana de uma vez por todas, mediante sólidos princípios, tu lhes ofereceste o que há de mais estranho, de mais enigmático, de mais indeterminado, tudo o que ultrapassava as forças humanas, a liberdade.
Agiste, pois, como se não amasses os homens. […] Em vez de te apoderares da liberdade humana, tu a multiplicaste e, assim fazendo, envenenaste com tormentos a vida do homem, para toda a eternidade…
O Grande Inquisidor estava certo. Ele conhecia o coração dos homens. Os homens dizem amar a liberdade, mas de posse dela são tomados por um grande medo e fogem para abrigos seguros. A liberdade é amedrontadora.
Os homens são pássaros que amam o voo, mas têm medo de voar. Por isso abandonam o voo e se protegem em gaiolas.
Não me recordo o nome do autor. Mas não importa. O texto vale por ele mesmo e não pelo nome daquele que o escreveu. Eu o reconto com as minhas palavras.
Havia um bando de patos selvagens que voavam nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tão lindo! Mas era uma beleza que doía. O cansaço das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando, as espingardas dos caçadores…
Foi assim que um pato selvagem, olhando lá das alturas para essa terra de anões aqui em baixo, viu um bando de patos domésticos. Estavam tranquilamente deitados à sombra de uma árvore, poupados do esforço de voar. E havia comida em abundância.
O pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, desceu e passou a viver a vida que pedira a Deus.
E assim viveu por muitos anos até que de novo chegou o tempo da migração dos patos. Eles apareciam, lá no fundo do azul do céu, formações em “V”, grasnando, um grupo após o outro. Aquela visão dos patos em voo, a memória das alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado.
Uma saudade, uma nostalgia de belezas, o fascínio do perigo e o vazio que se abria… Até que não foi mais possível aguentar. Resolveu voltar a ser pato selvagem. Abriu as asas e bateu-se para voar, como outrora, mas não voou. Caiu, esborrachou-se no chão.
Estava gordo demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, protegido pelas cercas e triste por não poder voar.
Acho que Fernando Pessoa se sentiu um pouco como o pato. Pelo menos é o que sinto ao ler esse poema:
Ah, quanto vez, na hora suave
Em que não me esqueço,
Vejo passar o voo de ave
E me entristeço!
Por que é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Por que vai sob o céu aberto
Sem um desvio?
Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade
Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh’alma alheia
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do voo suave
Dentro em meu ser.
Somos assim. Sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o vôo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.
É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que se as portas das gaiolas estivessem abertas eles voariam. A verdade é o oposto. Os homens preferem as gaiolas ao voo. São eles mesmos que constroem as gaiolas onde passarão as suas vidas. (…)
Texto de Rubem Alves
Introdução do livro “Religião e Repressão”
Nas grandes cidades, no pequeno dia a dia
O medo nos leva a tudo, sobretudo à fantasia
Então erguemos muros que nos dão a garantia
De que morreremos cheios de uma vida tão vazia– Muros e Grades – Engenheiros do Hawaii
As grades do condomínio são para trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você que está nessa prisão.