… tu lembraria o dia em que prometemos viajar por esse mundo, de todas as noites nas quais acampávamos no pátio lá na casa da tua avó e dos rabiscos e rotas traçadas no atlas geográfico que roubamos da mochila do teu irmão – ” Um dia a gente viaja esse mundão e acampa no fim do mundo”,dizia tu. É onde estou nesse exato momento… digo eu!
Nessa meia década de viagens e caminhos desconhecidos onde aprendi a viver sem reclamar muito, percebi que o nosso prof. de matemática tava bem errado, ao menos pra mim: “tu não vai ser nada na vida se for vagabundo assim, faça igual teus colegas, garoto – sem recreio!!!”.
Estudando as atividades naturais do caminho como eterno aluno que segue adiante e tenta olhar e absorver o que há em volta, vou aprendendo nas feições e gestos, nos atos de bondade espontâneos ou até mesmo nos explícitos ataques de raiva de gente que vai surgindo e, assim, compreendi que ser um vagabundo tem outro significado, um bem diferente. Lembra do trecho da música “um vagamundo como eu \ também merece ser feliz”. Sou vagamundo, mano!
É, estou feliz sendo errante – isso mesmo, essa palavra aí: ERRANTE – não ‘errado’ como tua mãe sempre dizia ao me incriminar por ter ido acampar em dia de prova e ter levado você junto lá no laguinho (lembra?, mas, sim, um vagante que aprende quando vai, assim, sem rumo, sem destino certo, nômade, que não se fixa, mas se liga em tudo que está acontecendo. Tá sendo isso, meu amigo, e não me arrependo, não mesmo.
Fico triste ao recordar aquele dia no qual nos separamos lá no aeroporto: nós dois com as mochilas carregadas, passagem na mão, bem frente do portão de embarque, então, do nada, surge teu pai fazendo fiasco, dizendo que tu ia virar um sem teto, sem rumo; tua mãe quase desmaiando, aos berros gesticulava e gritava, explanando sobre a necessidade de ficar, que tu precisava de um futuro, cuidar dos negócios da família. Nossa, que dia doido. Tempo, né!?
Faz uns três anos que seus coroas já se foram, e sei que é bastante grana herdada depois da morte deles, mas o ensinamento veio de ti: “usar o dinheiro como meio, nunca deixa-lo nos usar” Sempre me pergunto o que aconteceria se tu tivesse entrado naquele avião.
Teu e-mail – o último – falava sobre muitas dívidas. Cara, será que tu plantou contas ao invés de sonhos? Onde enfiou toda a grana? Pra que um carro desse preço? Tu sempre detestou carros!
Já se passaram cinco anos e quarenta e sete países, não me acho mais foda que tu, por eu ter entrado naquele avião e estar vivendo o meu sonho ou estar criando e realizando vários planos inesperados todos os dias, mas fico aqui me sentindo incompleto por tuas reclamações em e-mail, cartas, Facebook; exclamações quase fúnebres sobre não ter tempo pra nada ou culpando o governo por ter que pagar imposto das tuas três casas, empresas e carros importados; sempre me pergunto porque raios – caralho! – tu compra coisas que não precisa pra se matar trabalhando pra correr atrás de juros de parcelas já vencidas? A resposta não vem. Tal como não entendo o porquê se casou com alguém por interesse – pra chegar num acordo bacana com empresa da família da noiva? Parece história clichê de romance barato de novela mexicana, hein Paola Brachio? Esse não é tu. Só digo isso porque foi desse jeito que vieram as últimas 3 mensagens tuas: “desabafos de uma vida que não está nem sendo, só existindo e parasitando”. É muita dor e sofrimento pra alguém consciente sobre o apodrecimento de si enquanto arrodeia a lâmpada como uma mariposa tonta em quarto fechado de uma espelunca qualquer.
Agradeço por eu ter escutado, apreensivo e confuso, tua exigência lá no aeroporto anos atrás:
-“entra no voo, cara, não desiste não, só vai, o problema é comigo e os véio, logo vou atrás de ti”.
Tu não veio.
Se tu amasse o que tem e acreditasse piamente no que faz, eu te daria apoio, pois estaria feliz, a gente não é igual e muda, e se somos amigos, é claro, precisamos nos apoiar…mas estar com problemas cardíacos e depressivo com tão pouca idade, viciado em remédios pra dormir? Bah, a vontade é voltar e te arrastar junto. Penso em ir te ver. E posso até voltar pra te visitar novamente, mas não desmarque de novo.
Sabe, não há receita de qual é a felicidade mais bacana ou qual atitude de vida é a mais correta, entretanto, nunca o que lemos no muro pichado atrás do shopping há uns bons anos:
“Não importa onde você foi, sim o que aconteceu enquanto ia”.
E onde tu foi, meu amigo? Pergunto sobre a viagem dentro de si, em cada estação da mente, coração e sonhos, onde foi que o teu trem descarrilou? E comparo com tua frase no último e-mail:
– “cara, jamais saí do lugar, minha vida é tudo que sempre condenei no meu pai , e estar viajando contigo. Hoje tenho dinheiro sobrando, mas tenho medo de mudar tudo, um medo de sei lá o quê. Meus primeiros cabelos brancos eu tapei com tinta, assim como faço com cada carro ou bugiganga comprada pra preencher um vazio atormentador. Essa agonia por dentro. E se eu pudesse voltar no tempo, ah!!”.
Não dá. Ninguém volta no tempo, só se aproveita o que resta. A única viagem marcada não tem hora pra embarcar.
Se eu posso te dizer algo que aprendi e me faz um bem danado refletir, é isto: todo dia eu recomeço. Não sei o que vai ser de mim até o término dessa carta, mas seria muita petulância minha querer construir ou controlar um futuro confortável numa vida que passa voando sem nem ao menos entendermos o porquê vivos estamos enquanto presos aqui nesse espaço. É vaidade querer dominar o que ainda não foi ou perder tempo lamentando o inacessível pretérito. Reflito muito sobre o quanto está sendo saudável evidenciar apenas o agora. Expectativa é diferente de objetivo, cuidado. Um te mata o outro te motiva. Não confunda ambos. E
Não somos tão especiais assim. A vida pode ser melhor sem precisarmos penhorá-la. Não sei qual é o “tudo” dessa gente que queima o tempo do hoje para engarrafar a névoa do amanhã. E qual é o teu ‘tudo’, caro amigo? Hoje, amanhã ou ontem?
É preciso encerrar essa carta e ir deposita-la no correio da cidade mais próxima (30 km). Confesso que, asism como o inferno, há dias sem flores, planos sem rotas e tentativas frustradas. O dinheiro vai continuar existindo, a sociedade também, e todos os malefícios em ter nascido gente. Mas é preciso dar a todo ser humano a oportunidade de escolher qual será a dificuldade que vale a pena se vivida.
Pense bem, sei que o medo vem e faz a mente titubear, mas o medo é a vírgula mal usada nos textos da vida, um texto que não dá pra apagar com borracha. Se quiser, pode vir ser “vagabundo, um nada, uma má influência”, nem que seja por uns dias, assim, só pra rabiscarmos mais uma rotas antes que a vida passe, enquanto observamos os pinguins se debaterem e roubarem as pedras dos ninhos dos outros pinguins, assim como surrupiamos aquele velho atlas a fim de traçar novos sonhos…
Se eu te contasse o que vejo agora, te diria que a vida é muito mais do que andam dizendo por aí…
Com amor,
Seu amigo vagamundo de nariz gelado.”
Texto de Edu Bah do Diários de Carona – Publicado originalmente em: https://www.facebook.com/groups/mochileiroscom/permalink/10153917747557260/