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O ÚLTIMO TANGO NA PARIS DAS AMÉRICAS

 

Edmilson Vieira

 

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Viajar para a Argentina: anotações de viagens, preparativos para o novo, hospedagem, capital Buenos Aires e partir. O que é que forma uma pátria, tanto aqui como lá? Isso é fácil de responder: rede de lanchonetes McDonald's, Papai Noel, revista Playboy, Shopping Centers, Big Brother, Copa do Mundo e muito plástico descartável, mas vamos admitir que no grande fichário formador de cada país, existem outras características. É chegada a hora de conhecê-las.

 

Faz tempo que fui à Argentina, agora estou me programando para recordar o que vivi no final de inverno e inicio da primavera de '88.

 

Saí de Recife num ônibus fretado para participar de uma festa de partido de esquerda em São Paulo. Depois da comemoração fiz transferência de ônibus. Optei por uma carona com a militância do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, coloco o meu corpo no trem até Uruguaiana.

 

Recife já estava longe, em contrapartida comecei a ter contato com os primeiros produtos argentinos. No nível da fronteira, estava em Paso de los Libres, esperando o trem para Buenos Aires. É fundamental dizer que tudo é geograficamente plano até chegar na capital portenha.

 

Por conta do processo de câmbio, o nosso metal valia cinco vezes mais, o custo de vida estava barato.

 

Argentina, uma Europa em decadência. O trem chegou no subúrbio de Buenos Aires. Fui pra perto da janela e perguntei ao passageiro ao lado se era feriado no país, não se via quase ninguém nas ruas. Ele respondeu que a população estava trabalhando. O trem seguindo, mostrando uma periferia parecida com o subúrbio de Londres. Árvore ainda sem folhas é início de setembro e finalzinho de inverno. Os bairros mais afastados do centro aconteciam diante da janela em movimento.

 

Tive capacidade para descer do trem, agora encontrar o albergue da juventude foi outra história. Num frio de cinco graus, caminhava no centro de um lado para outro enfrentando uma barra! Quando perguntava às pessoas onde era o albergue, elas não tinham humanidade, riam discretamente e me mandavam para prostíbulos. Desde o principio da era glacial, albergue significa isso para os argentinos. Subia três andares com uma bagagem pesada e sempre: não, não, não... Qual era a possibilidade que eu tinha de sair vivo daquela situação? O sucesso veio quando uma pessoa entendeu que o albergue que eu queria era de outro tipo e aí apagou o incêndio.

 

Depois iria procurar o endereço, antes necessitava resolver outra questão: fome! Precisava e encontrei um pequeno restaurante. Brasileiro, criado comendo exatos 18 milhões de caroços de feijão durante toda a vida, me deparei com o cardápio. Meus olhos participaram de uma busca em cada item. Um prato de canelone ao molho branco se levantou dançando tango em minha frente. Era uma miragem made in deserto da Patagônia. Por aquela comida deliciosa pagaria até 100 milhões de dólares e retirava o país da crise.

 

Já ouviu falar daquela história de uma amiga no Brasil que lhe dá o telefone de um amigo e assim começam os contatos? Aí eu ligo, o argentino já foi dizendo que o hotel que eu estava era caro e prometeu arranjar um outro mais barato situado em plena Avenida de Mayo. Usei os serviços do albergue por um dia, depois saí para as ruas engarrafadas do centro de Buenos Aires. Paris e Roma aconteciam na minha frente. Arquitetos dessas cidades foram contratados no início do século passado e traçaram ruas, metrô (o primeiro da América), prédios e praças. Façam renascer a Europa na América, já! Disseram os políticos.

 

Instalei-me nesse novo local com cinqüenta outros hospedes estudantes e trabalhadores. O dono, dom Manolo, espanhol galego, sobrevivente da guerra civil espanhola, parecia um daqueles reis magos, sempre carregando alguma coisa nas mãos. A sua esposa, senhora Carmem e sua irmã Josefina, todos os dias pela manhã investiam nos lençóis dos nossos quartos. Não respeitavam as madrugadas não dormidas nas muitas atrações gratuitas que a cidade oferecia noturnamente.

 

Mal cheguei na Argentina e o popular já foi me apresentando seus movimentos. Nessa época panela só era usada na cozinha e ainda não tinha o poder de derrubar presidente. Os responsáveis pelos sindicatos convidaram o povo para uma greve geral. Crianças, anciãos, jovens e adultos estavam na Praça de Mayo. Sessenta mil pessoas naquele espírito revolucionário. Era cinco horas da tarde quando começou o discurso. Lembrei que ao meio dia já tinha ancião esperando pelo ato público. Alguns tiravam da carteira o retrato 3x4 de Evita e me mostravam como se tivessem diante do socorro dos pobres. Embaixo do hotel funcionava a Cruz Vermelha e lá pelas três horas da tarde ambulâncias estacionavam no meio-fio, equipes de emergência entravam no veículo, uma moça fechava as portas e dava a ordem de partida. Vinha outro carro, e outro, e outro... A cena se repetiu exageradamente. Depois achei normal, eles eram atores para salvar os anciãos que desde cedo estavam na praça segurando o cenário da amada Evita.

 

Conheci uma loira chamada Gabriela Wenner, depois seu marido Norberto e mais os amigos deles. Ele com um lenço no pescoço mostrando elegância italiana. Usar lenço de seda é lei para os argentinos. Gabriela, você lembra da época da ditadura? Claro, meu pai foi o primeiro jornalista morto pelo regime de Videla, eu tinha cinco anos, disse ela.

 

Colapso no país, entrega aos capitalistas, desemprego, falta de justiça, três personagens sindicalistas falaram esses temas à multidão na praça. De repente, uma explosão. Gabriela disse que era o gás lacrimogêneo. Convidei pra irmos olhar, ela falou que era suicídio. O gás chegou rápido e ainda deu tempo de fazer efeito nas últimas palavras pronunciadas. A praça que antes era o jardim do Éden para os sindicalistas, transformou-se no jardim das lágrimas para as sessenta mil pessoas. O massacre começava. As equipes da Cruz Vermelha passavam com as primeiras vítimas dos combates contra a polícia. Eram jovens ensangüentados alguns se debatiam em convulsão. Cenas assombrosas para sempre na memória.

 

Até as crianças acionaram os seus lenços contra o gás. Gabriela e o marido perguntaram onde estava o meu. Em segundos, ela retirou o que amarrava os cabelos longos e me entregou. A debandada da praça ocorreu sem nenhum empurrão. A multidão obedeceu aos avisos dados por alguns rapazes que falavam uma única palavra: despacio, despacio (devagar).

 

Fugindo dos helicópteros com refletores, que atiravam sem piedade, dos tanques, da tropa de choque e da cavalaria, a multidão saiu pelas ruas próximas da praça e para completar, passou um ônibus sem janelas levando os primeiros presos.

 

A operação de algumas pessoas era tocar fogo nas sacolas de lixo, a fumaça é suficiente para cortar o efeito do gás lacrimogêneo. O centro de Buenos Aires transformou-se num barril de pólvora com explosões por todos os lados.

 

Duas horas depois as pessoas enfrentavam filas nos telefones públicos para avisar em casa que não ganharam algemas e perguntar pelos parentes se já tinham dado noticias de que estavam são e salvos.

 

Manifestação na Argentina significa que os militares estão de prontidão nas ruas próximas, o povo sabe que eles ficam nos bastidores, armados até os dentes, mas mesmo assim vai participar. A arma que a população carrega são os lenços e os bumbos. Quando aparece na televisão as passeatas e alguns policiais olhando por perto, aquilo é só a fachada. A turma da negociação à base de jato d'água, gás, cães, cavalos e tanques, está nas vizinhanças, louca pra começar o bate-papo amigável, é só o comandante gritar guerreou.

 

Chamei Gabriela e Norberto e me despedi. Voltei à pensão de dom Manolo, mas prosseguiram os acontecimentos.

 

Inegavelmente dentro do quarto pude pensar nos fatos ocorridos naquele dia: imagens de bumbos sendo tocados com entusiasmo, palavras de ordem dos trabalhadores, as Mães da Praça de Mayo chamando o povo pra revolução, crianças separadas dos pais e senhoras bem vestidas usando jóias no peito. Depois refleti mais ainda: a Argentina sempre teve uma relação boa com a educação, quase não tinha analfabeto, jornais o povo compra aos montes, então, todo povo que se ocupa em ler só pode dar nisso, luta.

 

Três meses no país, esperando uma bolsa de estudos que não veio, mas a pessoa volta com um currículo internacional completo em querer continuar lutando pelos direitos humanos. É certo que um outro mundo é possível, e pra começar essa construção, é preciso entrar para o clube daqueles que desejam uma pátria formada não só por Mc Donald's e Big Brothers da vida.

 

 

Edmilson Vieira é artista plástico e escreve crônicas

Email: dnv01@uol.com.br

  • Membros de Honra
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Fala Edmilson,

 

bem bacana sua cronica, especialmente porque conta a historia sob uma otima pouco convencional, é interessante le-la tendo como pano de fundo algo alem da sua viagem propriamente dita, sua posicao de testemunha ocular do processo deixou-a agradavel e informativa.

 

A sugestao é simples: continue! Quando vem o proximo texto? De onde será?

 

Ate logo

 

Thiago de Sá

  • Membros de Honra
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Excelente...

Vc relatou acima um dos motivos que me fez gostar tanto da pintura que é BsAs. Já disse algumas vezes por aqui que dá p/ sentir a energia da Plaza de Mayo... deitar na grama lá (sem dinheiro!) é uma das melhores coisas a se fazer.

Estive em BsAs qdo dos protestos do boliche Cromañon... e tive a noção da revolta (claro, nada perto do q vc deve ter visto).

P/ mim fica apenas a vontade de ter conhecido aquele lugar antes, nos tempos áureos, ou na época em q Evita morreu.... deve ter sido mto interessante.

 

Seu primeiro post foi indubitavelmente aberto com chaves de ouro!

Aguardo ansioso os próximos.

 

Mike Weiss

  • Membros de Honra
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CARA:

MUITO BOM MESMO!

ESTIVE LÁ EM NOVEMBRO E PUDE NOTAR QUE AS COISA SÓ PIORARAM.....

É CLARO OS PROTESTOS SÃO POR OUTROS MOTIVOS, MAS A POLÍCIA CONTINUA A MESMA! BATE E ARREBENTA!

 

CONTINUE , FOI UMA BOA SURPRESA!

 

ADRIANO

Postado

Edmilson, sem dúvida alguma, pela estrutura de seu texto verificamos que você é um escritor nato. Privilégio de poucos! Tudo foi muito bem descrito, tudo foi muito bem colocado. Ainda bem que descobriu os Mochileiros.Com e agora poderemos, todos, desfrutar informações interessantes através de seus conhecimentos. Parabéns!

  • 2 meses depois...
  • Membros
Postado

 

Gostei bastante do seu relato! É muito interessante! Desde o começo da leitura me reportei àqueles acontecimentos como se eu fosse testemunha ocular de tudo o que estava acontecendo.

 

Talvez se os brasileiros tivessem o mesmo sentimento de "mudança" e "indignação" frente a inúmeros e injustos acontecimentos, seriamos de fato a grande nação que todos dizem que poderíamos ser.

 

Um abraço

 

Jeandré C. Castelon

Cascavel - Paraná

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