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TRAVESSIA VALE DO CAPIVARÍ : Valendo a Vida .

TRAVESSIA VALE DO CAPIVARÍ : Valendo a Vida .

Travessia pelo vale do Capivarí , da tragédia à contemplação da vida, em um dos vales mais lindos da Serra do Mar Paulista.

Acampamento Cachoeira Trekking
 
 

TRAVESSIA VALE DO CAPIVARÍ

 

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Foi numa manhã um pouco fria, no início de maio de 2015, que a tragédia nos apanhou. Já fazia algum tempo que vínhamos conversando sobre a possibilidade de um dia, termos que sair daquelas expedições, tendo que carregar um corpo e por isso mesmo, havíamos decidido que a partir daquela travessia, iríamos implantar uma série de equipamentos, começando pelo capacete, mas infelizmente o grupo acabou crescendo muito e a recusa por partes de alguns em adotar o equipamento de segurança, acabou por desencadear uma série de acontecimentos que no final, terminaria com uma cabeça rachada ao meio e outro desaparecido e provavelmente MORTO.

 

Por incrível que pareça, apesar de um grupo extremamente grande, a enorme maioria era formada pelo que havia de melhor em exploração e travessias selvagens no Estado de São Paulo, gente tarimbada, acostumada a enfrentar terreno hostil, que só a Serra do Mar Paulista pode nos dar e talvez por isso, o excesso de confiança acabou por nos encaminha para essa tragédia. E a desgraça acabou por começar a se desenhar logo antes da primeira curva do rio. Metade do grupo atravessou para a margem esquerda, mas foi uma travessia tensa, porque o Rio Capivari tem a premissa de ser um rio caudaloso e aquela era uma parte dele onde o seu leito se afunilava e formava uma torrente potencialmente perigosa. A outra metade, não querendo ariscar, resolveu que subiria um grande barranco, cruzaria por cima e encontraria a outra metade um pouco mais à frente, coisa de menos de 80 metros, mas essa tomada de decisão não contava com a instabilidade das encostas íngremes, onde pedras se soltavam apenas com as vibrações dos passos.

 

Do lado esquerdo, olhávamos toda a movimentação do grupo que iria subir o barranco, mas até então, sem nenhuma apreensão, já que essas ações eram comuns e corriqueiras naquelas travessias. Dois exploradores tomaram à frente e escalaram a parede cheia de mato e tomando cuidado para não soltar nenhuma rocha e acabar desencadeando uma avalanche de pedra sobre quem estava embaixo, esperando a sua vez de subir. Aqui preciso abrir um parêntese: O Eduardo Loures havia convidado uns amigos para essa expedição, mas esses amigos dele, já começaram a dar pit quando havíamos botado os pés no rio. Os caras não tinham se dado conta de que aquelas travessias não eram caminhadas clássicas, como por exemplo uma Serra Fina, uma Marins x Itaguaré, que são travessias duras, mas comparadas com essas travessias selvagens, não passavam de um passeio no jardim da infância. Quando viram o tamanho da encrenca, começaram a definhar e se perguntarem se valia a pena continuarem seguindo ou se deveriam voltar e quando viram que tinha que escalar uma parede protegida pelos guardiões do inferno, aí foi que começaram a aloprar a cabeça do Eduardo e ele se sentiu na obrigação de abrir caminho para seus 3 amigos, como a tentar incentivar os caras a seguirem em frente.

 

Nesse tempo de indecisão, os DOIS EXPLORADORES que subiram o barranco primeiro, sumiram no mato, pensando que o grupo estava vindo na sua cola, já que foram abrindo o caminho e deixando um rastro atrás de si. E ainda do outro lado do rio, eu, o Marcos Prince e mais seis aventureiros, continuávamos acompanhando toda a movimentação, só esperando que o grupo todo subisse o barranco e depois descendo, atravessasse o rio num lugar mais raso e viesse se juntar a nós do lado esquerdo.

 

A situação ficou tensa com os três amigos do Loures, que já estavam quase dando meia volta, então o Loures decidiu que abriria caminho no barranco, escalando também a parede e tentaria encontrar o rastro de trilha que os dois exploradores haviam deixado. Segundo o que me contaram, o Loures subiu se agarrando no mato e foi aí que a tragédia começou a se desenhar de verdade: Uma PEDRA GIGANTE de uns 30 kg se desprendeu do barranco e rolou na direção da cabeça do Loures e só houve tempo dele tentar desviá-la com a mão, mas mesmo assim, ela atingiu sua cabeça e ele despencou, caindo no chão ensanguentado e totalmente desnorteado.

 

Do outro lado do rio, conversávamos descontraídos, sentados sobre uma grande rocha, só esperando que os caras se juntassem a nós. Mas foi com grande surpresa que ouvimos silvos de um apito que era precedido com balançar de braços, indicando claramente que alguma merda havia acontecido. Rapidamente retornamos, atravessamos novamente o rio e já encontramos o Eduardo Loures recebendo os primeiros socorros e tendo sua cabeça totalmente enfaixada. Estava consciente, mas com os olhos arregalados, como se tivesse totalmente fora de si. A ação foi rápida, não havia telefonia para se chamar um possível resgate, então decidimos evacuar o ferido nós mesmo, já que ele ainda podia caminhar, mesmo que amparados por duas pessoas, afinal de contas, ainda estávamos no máximo há umas 2 ou 3 horas de onde se podia conseguir um socorro.

 

Mas uma pergunta precisa ser respondida: Que fim havia levado os dois exploradores que haviam subido o barranco e não retornaram? Pois é, ao invés de voltarem, continuaram descendo, pensando que o grupo estava no seu encalço e na serra do Mar a gente sabe que uma vez que você desce um barranco, voltar a subir é algo quase impossível ou ao menos muito penoso. Então ao descer para o outro vale, se mantiveram parados, esperando que o grupo pudesse se juntar aos dois, coisa que não aconteceu por causa do acidente.

 

Vendo que os dois não voltavam, destacamos uma pessoa para tentar descer o rio por um instante a fim de localizar os desgarrados, enquanto dois ou três ficaram parados no lugar do acidente, caso eles retornassem. Quem desceu o rio não os encontrou, mas ficamos sabendo que os dois ouviram os apitos, que eram o alerta para que eles retornassem, mas os dois fizeram uma leitura errada e ao ouvirem o som dos apitos no rio, pensaram que todo o grupo tinha mudado de estratégia e ao invés subirem também o barranco, teriam atravessado o rio e já estavam todos no fundo do vale e aceleraram o passo a fim de nos alcançar e acabaram foi se distanciando mais.

 

O resumo daquele dia de expedição foi um com a cabeça quebrada e dois perdidos no vale. O Eduardo Loures foi levado ao hospital, onde recebeu todos os cuidados e levou umas duas dezenas de pontos na cabeça. Eu e mais três exploradores nos posicionamos estrategicamente e acampamos na antiga usina, onde começa a descida do rio, a fim de esperar caso os dois resolvessem retornar.

 

Passou-se o resto do dia, a noite todo e quase o meio dia posterior e ninguém retornou, então chegamos à conclusão de que os dois desgarrados haviam descido o vale e mesmo sabendo que era um vale extremamente perigoso, confiávamos plenamente na capacidade dos dois, mas mesmo assim, resolvemos retornar para a cidade, mais precisamente para a casa do Prince, onde conseguimos um carro para nos levar até o litoral, até a aldeia indígena, onde seria a saída, o final de toda a travessia e assim, poderíamos ajudar os dois a voltarem para casa mais rápido, evitando que perdessem quase um dia andando numa estradinha enfadonha para chegarem ao litoral.

 

No final do terceiro dia, desde que começamos a expedição, chegamos à tribo e lá encontramos, já na entradinha, um dos dois exploradores. Surpresos por não encontrarmos os dois juntos, perguntamos onde estaria o outro e ficamos sabendo que os dois haviam se separados no início da manhã. Houve um desencontro, depois que um resolveu seguir um pedaço pelo rio, enquanto o outro resolveu varar uns 80 metros de mato morro acima, para evitar a água gelada. O que foi pelo rio esperou o que foi pelo mato e vendo que ele não chegava, nadou de volta até onde haviam se separado, mas também não o encontrou mais e depois de esperar por muito tempo, resolveu seguir descendo pelo rio, muito porque, já estavam na parte plana do rio, onde não havia mais perigo algum, estando eles a não mais que 3 horas da trilha que os levaria direto para a aldeia indígena.

 

Vendo que faltava um dos companheiros de aventura para sair do mato, resolvemos que acamparíamos na tribo para poder recebe-lo, já que ainda havia a possibilidade dele estar por chegar. Mais ele não chegou, nem naquela noite, nem no dia seguinte, o que nos levou a pensar que ele poderia ter tomado o rumo contrário, já que ao interceptar a trilha que leva à aldeia, também havia a possibilidade de pegar outra trilha subindo para a Estrada de Ferro e de lá caminhar uns 10 km até onde se pode pegar um ônibus para voltar para São Paulo, então, tomamos o caminho de casa e retornamos, eu para o interior Paulista e os outros foram se perder nos quatro cantos da região metropolitana.

 

Já em casa na segunda-feira, soubemos que, apesar da gravidade, o Loures estava super bem e já em boa recuperação, mas por hora, o outro explorador ainda não havia dado notícias, mas até então não achamos que deveríamos nos preocupar, já que naquela época a comunicação era horrível, sendo que a telefonia móvel ainda deixava muito a desejar, além do que, os celulares poderiam estar descarregados.

 

Passou toda a segunda, passou toda a terça-feira e nada do desaparecido dar sinal de vida, aí foi hora de acender o alerta. Destacamos uma pessoa para ir até a casa dele para saber se havia dado alguma notícia para os parentes ou se até já estaria em casa, mas as notícias não eram nada animadoras, então havia chegado o momento difícil que nunca imaginávamos ter que enfrentar: HORA DE ACIONAR O RESGATE.

 

Os seis meses que se seguiram foram de tempos difíceis para todo mundo, mesmo que o resgate só tenha ficado na serra por pouco mais de uma semana, acabamos nos mobilizando por meses, para tentar encontra-lo, mas esse é um mistério que perdura até os dias de hoje e dizer o que realmente aconteceu, é só especulação e sinceramente, vou me abster de entrar nesse mérito e só contei essa história porque realmente não tive como evitar, porque todo o clima que antecedeu essa nossa NOVA TRAVESSIA, passado anos depois dessa tragédia, estavam ligados entre si .

 

Depois dessa tragédia, parte do grupo se reciclou, alguns nunca mais voltaram a se juntar, mas outros continuaram unidos e cerca de um ano depois, voltaram aos projetos de explorações selvagens na Serra do Mar e em muitos outros lugares Brasil afora, mas o Vale do Capivari ficou como uma pedra no sapato, uma travessia entalada na garganta, pelo menos dos que ainda seguiram nesse tipo de aventura. Muitas foram as vezes que cogitamos a volta ao vale, mas havia algo que nos barrava sempre, ou eram as mudanças repentinas de tempo ou a gente que acabava por inventar desculpas esdrúxulas para não realizar a travessia, sei lá, formou-se uma barreira psicológica do qual parecíamos não conseguir transpor.

 

Sobre as minhas costas, pairava esse fracasso, essa travessia inacabada, uma espécie de fardo que eu tinha que eliminar da minha vida, precisava passar uma borracha para poder seguir, afinal de contas, já havia se passado meia dúzia de anos desde o fatídico dia. E aí, as coisas começaram a acontecer do nada, quando procurávamos ver se alinhávamos alguma travessia e foi quando alguém sugeriu do nada, que fizéssemos a TRAVESSIA DO VALE DO CAPIVARÍ. Na hora meio que tomei um susto, porque não esperava que ela poderia entrar na pauta ainda esse ano, mas mesmo diante de um calafrio repentino, comprei a ideia, mas pouco depois de dar o meu sim, me senti um pouco mal, não sei, parece que ainda não estava preparado, mas mantive meu compromisso.

 

O grupo que estava por se formar, eram de pessoas muito diferentes das que estiveram na primeira tentativa do passado, muito porque, foram poucos que ainda se mantiveram na ativa e os que ainda estavam no grupo, haviam sobrado apenas eu e mais um( Trovo) e mesmo assim, esse outro sobrevivente não conseguiu data para poder ir, então pedi para os caras, pelo menos uma ou duas vagas para eu tentar chamar alguém do grupo de 2015, porque poucos eram os que eu realmente teria um grande prazer em retornar naquele vale e por fim, conseguimos convencer dois a descerem com a gente, mas não eram dois quaisquer, eram simplesmente o EDUARDO LOURES E O MARCOS PRINCE, dois protagonistas, não só daquela tentativa de descida no passado, mas também dois dos ícones das explorações Selvagens da Serra do Mar, que começaram comigo uma dezena de anos atrás e isso me deixou extremamente contente.

 

O grupo foi tomando corpo e para completar a seleção, Paulo Potenza, Alan Flórido e Júlio Ronchese, formaram um dos “elencos” mais forte que já tivemos, ainda que hajam outros, que não puderam estar com a gente e a partir daí, começamos a monitorar o tempo, que a priori, estaria perfeito para essa travessia.

 

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EM PÉ: ( Paulo Potenza, Júlio Ronchese, Divanei, Eduardo Loures) AGACHADOS: ( Alan Flórido e Marcos Prince)

 

Na semana que antecedeu a expedição, eu estava tenso, muito tenso. Muito porque, o tempo começou a mudar e outros exploradores, além de caírem fora, ainda começaram a fazer piadinhas macabras sobre a situação atmosférica , que havia virado para frio e chuva, além de outras tantas conversas sobre possíveis acidentes, mesmo que isso viesse em tom de brincadeira, mesmo assim, aquilo foi me deixando com o nervo a flor da pele , mas a gota d’água veio quando um amigo me mandou uma mensagem e essa não era em tom de galhofa, me dizendo que havia sonhado com uma tragédia na travessia. Fiquei mais apreensivo ainda, mas toquei o foda-se, como sempre faço em relação a essas coisas, “dito sobrenaturais” e além do mais, eu mesmo tinha prometido ao Loures que desceria aquele rio com ele, nem que fosse o dia do juízo final, já que eu estava devendo isso pra ele, por já ter dado mancadas de outras vezes.

 

 

 

O Rio Capivari localiza-se no extremo sul da cidade de São Paulo. O lugar é tão distante do centro da capital, que mais um pouco, já estamos no litoral. O lugar é tão surreal, que além de comportar o rio mais limpo da cidade, ainda tem a honra de abrigar a maior cachoeira (Cachoeira da Usina), algumas aldeias indígenas e estar próximo do Bairro da Colônia, que fica surpreendentemente dentro da cratera de um meteoro. É um rio extremamente volumoso, um pouco acima das características da maioria dos rios da Serra do Mar, mas com acesso relativamente fácil, sendo frequentado na parte do planalto, onde há até camping estruturado. Mas a partir da Cachoeira da Usina, onde o rio se joga do planalto em direção a planície litorânea, ele se torna num monstro quase indomável, pronto para arrastar qualquer um que se meta em seu caminho, aonde paredões e gargantas quase intransponíveis ficam à espreita, tentando aniquilar os desavisados que lá se metem.

 

Mas tinha um outro, porém. As coisas haviam mudado um pouco desde 2015 e agora a fiscalização na linha férrea, que é o caminho natural até a Cachoeira da Usina, estava muito mais intensa e não foram poucos os que foram barrados e obrigados a retornar quando se dirigiam para visitar a grande cachoeira. Além do mais, na programação inicial, voltaram a discutir a possibilidade de tentar pegar o trem de cargas que desce a Serra do Mar para podermos passar pela fiscalização encima dele, sem levantar muita suspeita, mas isso me remeteu novamente a primeira expedição de 2015, quando pegamos o trem a noite e ao saltar dele em movimento, tropecei num dormente e fui arremessado no chão e sai rolando com mochila e tudo e ao me levantar, estava todo ralado e por muito pouco, não tinha me espatifado contra as paredes de um túnel .

 

Essa questão do trem estava tirando meu sono, eu não queria mais subir naquela desgraça, não a noite, mas o Júlio e o Prince insistiam que era o melhor a fazer, porque nos evitaria uma dezena de quilômetros de caminha enfadonha pela linha do trem, além de nos protegermos contra a fiscalização, mas eu estava resoluto e fui confabular com o Loures sobre a gente deixar os caras irem de trem e nós irmos a pé mesmo, já que todos tínhamos um só destino, que era a usina em ruínas. Mas o Eduardo loures, além de comungar com minha ideia, fez mais, propôs que a gente pudesse arrumar 2 veículos que nos levasse bem perto, há não mais que 3 km de caminhada da trilha de acesso a usina, evitando que tivéssemos que usar o trem.

 

Às nove da noite, na estação Santo Amaro, me encontro com Júlio, com o Potenza e com o Flórido e a última vez que fizemos algo juntos, foi na Expedição ao cume do Eixo em Ilhabela, alguns anos atrás e dessa vez a travessia prometia ser sensacional. Pegamos um ônibus para Parelheiros e lá nos encontramos com o Eduardo loures e o Prince, cada um em um carro, com seus respectivos motoristas e em pouco mais de uma hora, estávamos passando pela Estação Evangelista de Souza, lá perto do Bairro da Barragem, um fim de mundo perdido a meio caminho de lugar nenhum. A noite estava ainda meio embaçada, alguns chuviscos esporádicos e a partir da estação histórica, seguimos por uma estradinha paralela até que ela nos devolveu novamente à linha de trem, onde passamos no silêncio total a fim de evitarmos ser pegos por alguém.

 

A caminhada nesses quase 4 km de linha férrea, foi meio tensa, já que a todo momento pensávamos que pudéssemos ser pegos pela fiscalização, mas menos de uma hora depois, abandonamos ela em favor de uma trilha à direita, que em mais meia hora nos desovou direto ao Rio Capivari, bem onde antes havia uma ponte que se sustentava sobre trilhos e que hoje só sobraram 2 ou 3 trilhos paralelos, que não tardam em cair também e é por ele que temos que seguir. É possível cruzar o rio por baixo da ponte se valendo de uma corda, mas aí tem que ver a profundidade do rio, ter que tirar a roupa e as botas, então fomos por cima, mas é um tanto ariscado, trabalhoso e é possível que uma hora alguém despenque daqueles trilhos e cause mais um acidente grave e para falar a verdade, quando se está lá no meio da ponte é que você se arrepende da estupidez que resolveu fazer.

 

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Por mais uns 20 minutos, seguimos descendo, usando uma trilha enlameada, que faz alguns descer de quatro pés, até que nos vimos na entrada do grande galpão da antiga USINA DO CAPIVARI, hoje completamente em ruínas. Na verdade, em 2015 ela já estava bem deteriorada, mas agora até o teto caiu e a gente ficou vendidos, sem saber onde acampar, já que o próprio chão é um mar de lamas e entulhos. O Loures e o Júlio esticaram suas redes nas paredes que ainda se mantiveram em pé, já o resto do grupo subiu na laje dos dois banheiros, limpou os entulhos de telhas e esticou uma lona encima e embaixo e lá nos esticamos até as sete horas da manhã.

 

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Olha que maravilha !!!! O dia que amanhece é um dia quente, de muito sol e totalmente aberto, tanto que é possível ver até os prédios lá do litoral, coisa rara em se tratando de Serra do Mar. A previsão era a pior possível, mas não era o que estávamos presenciando naquela manhã e tudo estava correndo tão bem que isso chegava a me assustar um pouco. Mas não poderíamos nos enganar, podia ser uma grande cilada do Vale do Capivari, porque até ali na usina todo mundo chega, mas dali para baixo é terreno reservado à meia dúzia, cada metro daquele vale seria uma surpresa, por isso nos agarramos uns aos outros e demos início a mais essa AVENTURA. Era agora ou nunca mais, finalmente eu estava de volta ao meu maior pesadelo e como sempre digo, É CHEGADO A HORA DE BOTAR A FACA NOS DENTES.

 

Depois do acidente de 2015, o único que teve a oportunidade de descer o vale foi o Prince, mesmo porque ele é morador ali da região, na verdade desceu mais de uma vez e em duas oportunidades, estava acompanhado do Júlio Ronchese, mas a gente sabe que nunca se desce o mesmo vale, sempre que se retorna, o caminho não é o mesmo, mas claro, sempre tem algumas passagens que ficam gravadas, então esperávamos que eles se lembrassem desses caminhos para facilitar um pouco nossa progressão, porque não tínhamos mais que três dias para realizarmos todo a travessia até o litoral.

 

Saindo de dentro da USINA em ruínas, pegamos para a esquerda. Andamos por cinco minutos e nos detivemos por uma meia hora, junto a um pequeno córrego que é um afluente do rio, para tomarmos um café, mas ainda sem acessar o vale. A descida até o Rio Capivari é feita usando uma espécie de escadaria de cimento e logo de cara somos apresentados a MAIOR CACHOEIRA da cidade de São Paulo. A CACHOEIRA DA USINA é mesmo um monstro, despenca de mais de 60 metros, afunilada numa gargantinha lateral e é por causa dela que a usina existiu.

 

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Ali, diante daquele monstro aquático, ficamos parados por um tempo para contemplações. Mas é preciso ficar esperto porque é um terreno mais liso que costas de lobó e qualquer descuido pode levar a um acidente grave, porque pouco dá para ficar em pé. Tirada todas as fotos que foi possível, seguimos margeando do lado direito, varando algum mato até descermos quase uns 200 metros abaixo da cachoeira, onde uma gruta de granito forma um grande salão e esse é um dos pulos do gato para continuarmos seguindo, é ali que está a passagem secreta para o grande vale.

 

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A GRUTA DE PASSAGEM é uma formação natural, onde uma espécie de claraboia vai nos levar para o outro lado, mas a passagem é tão estreita que o Florido foi obrigado a ser puxado por cima e empurrado por baixo para poder desentalar. Ali tem que ter mesmo uma certa habilidade de escalador e mesmo os mais ágeis vão sofrer um pouco, meio que parecendo que você está vivenciando um parto, é como sair do útero da sua mãe. Claro que seria possível varar mato pelas paredes laterais, mas o terreno é terrivelmente perigoso e as pedras rolam o tempo todo e tivemos essa desagradável experiência em 2015, que veio a culminar com o acidente grave, portando a passagem pela gruta foi um excelente achado e ainda nos deu a possibilidade de podermos cruzar o rio em um ponto menos perigoso.

 

 

 

Estamos descendo a grande reta do rio. De qualquer lugar, ainda é possível visualizar a grande Cachoeira da Usina, mas menos de 100 metros antes do rio se curvar de vez, é preciso cruzar para o lado esquerdo do rio, tentando se manter em pé na correnteza e tomando cuidado para não ser levado. Essa é a hora de molhar as bolas, é o batismo definitivo, é quando realmente você fica sabendo que não tem mais volta, é quando a água extremamente gelada faz você acordar, faz você lembrar que aquilo ali não é um passeio e que você está diante de uma das mais desafiadoras travessias do Brasil. É um sacode que o rio te dá, ele grita na sua cabeça para você ficar esperto, respeitar e se apegar à oportunidade que será lhe dada, sair vivo agora é com você, é hora da concentração, olhos firmes, passadas decisivas para não errar o pulo e não se quebrar todo.

 

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Abandonamos tudo, deixamos para trás a grande queda, demos um adeus e quando o rio se curvou definitivamente e entrou numa sequência de gargantas, caímos no mato pela esquerda de quem desce o rio. Estávamos na cota 550 de altitude e agora o que nos restava era abrir mato no peito, escalar grande paredes, escorregar de vale em vale, atravessar pequenas depressões até que os meninos que iam à frente de batedores , conseguiram descer um barranco que nos levou acima de uma grande cachoeira, de onde o rio se jogava no vazio, então foi hora de nos sentarmos por um instante, apreciar o salto e comer alguma coisa, já que a manhã chegou a sua metade e o relógio marcava umas 10:30 e a barriga roncava um pouco, mas ainda não era hora do almoço.

 

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Voltamos para o mato e começamos a descida na tentativa de interceptarmos a base da cachoeira. Continuamos pelo lado esquerdo e fomos comendo mato, perdendo altitude entre grandes buracos, que eram atravessados alcançando seu fundo e voltando a subir do outro lado da parede, num terreno totalmente instável, aliás, como todo os terrenos que compreendem a Serra do Mar de São Paulo. Ficamos enroscado, sem encontrar uma mísera rampa que pudesse nos devolver ao rio, até que resolvemos encarar uma fenda de um pequeno afluente, onde ao descermos, desencadeamos uma avalanche de matérias soltos até que finalmente tocamos o solo e consequentemente o rio.

 

O meu sentimento sobre o Rio Capivari, sempre foi achar que era um rio sombrio, com pouca luz, cânions fechados com pedras lisas, onde a mata abraçava tudo, mas minha impressão foi desabando, como as pedras que se ancoram nos barrancos ao serem tocadas. Mas tocado, foi o meu coração diante daquele cenário. O rio se abriu e de cima de nossas cabeças, desabava uma cachoeira deslumbrante, com várias quedas, se espalhando de um lado ao outro, sendo finalizada com uma outra grande queda que se jogava num poço que se escondia atrás de outra grande pedra.

 

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Cada qual soltou sua mochila, deixou em qualquer lugar e se jogou no rio atrás do melhor ângulo, numa corrida frenética para ver quem chegava primeiro na rocha que dava de frente para o grande espetáculo. O dia chegara a sua metade, o tempo melhorou consideravelmente e mesmo a água ainda estando um tanto fria, não vimos problemas em nos esbaldarmos de tanto nadar de um lado a outro e teve os mais afoitos que foram mais longe, tentando pegar uma boa foto da galera reunida encima da grande rocha que adornava o leito do rio, na COTA 500 de altitude.

 

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Aquele era um grupo forte, não tínhamos dúvida disso, mas além da grande experiência que cada membro daquela expedição carregava, a gente se juntou numa comunhão poucas vezes vista, cada um ajudando o outro a superar os obstáculos e talvez isso tenha feito a gente ir ganhando cada vez mais confiança e ir dissipando a áurea ruim que se abateu sobre a gente antes da descida desse rio. A descida do rio foi fluindo, fomos vencendo etapas, às vezes boiando em corredeiras potencialmente perigosas, outras vezes nadando em remansos tranquilos, onde poços fundos eram cruzados de um lado a outro e pedras eram escaladas de um lado e serviam de escorregador natural para irmos perdendo altitude e avançando, mesmo que lentamente, mas sempre seguindo.

 

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Depois de perdermos bastante altitude e nos enfiarmos de vez num mundo completamente selvagem e sem chances nenhuma de escaparmos de lá, tendo que contar com ajuda de alguém, a gente se sente só. Somos meia dúzia de humanos que vagueiam num ambiente completamente hostil, tentando sobreviver a nós mesmos e as besteiras e erros que podemos cometer. Somos reféns das nossas próprias escolhas e escolhemos estar ali, mesmo que o mundo nem saiba onde estamos, mesmo que sejamos apenas meia dúzia de vidas alheias ao mundo, presos no centro selvagem de uma serra quase intransponível, mesmo assim, somos tomados por uma satisfação indescritível, porque a gente ama fazer isso.

 

Pouco antes de uma da tarde, fomos descendo meio que emparedados, passando por algumas piscinas naturais com águas muito transparente, até darmos de cara com uma bela CACHOEIRA, que despencava de um afluente que vinha da nossa esquerda, uma queda d’água estreita, mas caindo de uma parede até com uma altura considerável. Ali formou-se um cenário muito bonito, onde troncos gigantes enfeitavam o leito do rio, eram arvores mortas dando vida e beleza ao lugar.

 

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As paredes foram se fechando e se elevando, formando uma fortaleza quase que intransponível e a gente foi se afundando cada vez mais num caminho sem volta, tanto que eu estranhei muito a atitude do Prince e do Júlio, que não caíram fora daquela armadilha e não tomaram o caminho do mato, subindo o barranco bem antes para podermos nos librar daquela arapuca. Fomos nos enfiando, desescalando grandes pedras, aliás, eram pedras cada vez maiores e estava na cara que ia chegar um certo momento no rio que a vaca iria para o brejo. Mesmo assim continuamos seguindo, confiando de que os meninos tinham um plano, já que estiveram ali outras vezes, mas chegou uma hora que o caminho se fechou de vez, não havia mais como continuar descendo, fim da linha para nós, parecia que o terreno simplesmente havia nos levados para uma cilada.

 

À nossa frente, apenas um buraco que sugava parte do rio e parecia encanar a água para as entranhas do inferno. Uma CAVERNA formada por grandes matacões sobrepostos. Essa era a passagem secreta que segundo o Júlio e o Prince, nos levaria para o mundo de baixo, vencendo um desnível importante, que nos faria avançar sem ter que escalar grandes paredões ao nosso redor. No começo duvidei que fosse possível descer ali, primeiro porque nos pareceu ir além da nossa capacidade em dominar ambientes perigosos, do qual um simples escorregão, poderia significar um acidente grave, mas o Júlio tratou de mostrar que era possível e se enfiou no buraco, levando água gelada na cara e ao descer uns 2 metros ou 3 metros, conseguiu apoiar os pés numa pequena ranhura de pedra, até se pendurar e ir perdendo altura e ganhar novamente parte do leito do rio.

 

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Aquela ação, sem nenhuma proteção, me pareceu meio suicida e não tardei em protestar e pedir para que se instalasse uma corda de proteção ali e minha voz foi seguida com um coro de outras vozes, até que sacamos logo uma cordinha e na ponta dela, dois aventureiros fizeram a proteção. Me enfiei no buraco. Uma mão na corda e a outra caçando rocha para me segurar, num esforço tremendo, usando meu corpo para fazer atrito nas pedras, até alcançar algo que me desse sustentação e apoio para os pés e também baixei ao rio, reencontrando minha mochila, que havia sido passada sem mim, já que a porta do inferno era tão estreita que mal passava um homem magrelo.

 

Quando todos desceram, seguimos, mas como eu já havia dito, apesar do dia estar com um tempo muito bom, apesar das previsões de muita chuva, a água continuava um pouco fria, mesmo já beirando as duas da tarde e eu já começava a sofrer com isso. A sequência que se seguiu, foi de muitos poços e corredeiras e toda vez que a gente era obrigado a cair na água, eu nadava desesperadamente, tentando sair logo e mal respirava. Escalávamos as paredes laterais até quando dava e quando ela simplesmente se tornava quase uns noventa graus de inclinação, não tinha jeito, erámos automaticamente catapultados para dentro do rio profundo. Se por um lado isso se tornava algo muito divertido, por outro lado, era a hora do sofrimento com as baixas temperaturas dos lagos profundos. Eu tentava usar minhas habilidades de escalador meia boca o máximo que podia, mas a força da gravidade se encarregava de zoar com a minha cara e me jogava na água , só para ver o meu desespero, nadando feito um maluco .

 

Mas a gota d’água se deu pouco depois das três da tarde, quando a sequência de saltos para dentro do rio se tornou frequente. O rio não deu mais tréguas, era subir numa pedra e já se jogar e nessa hora eu fui definhando, de tal maneira que já não conseguia mais gerar calor. Aí já sabemos qual é a sequência dessa história, porque já fica difícil raciocinar, manter a concentração e cuidar da segurança. Fiquei amoado, não queria dar o braço a torcer, não queria ser o responsável por quebrar o ritmo que até então, era intenso e fui cada vez mais sofrendo com isso, tremendo de uma tal maneira que mal conseguia falar e já estava nadando com sofrimento e senti que já era o fim da linha para mim.

 

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Quando nos elevamos em mais uma rocha, avistamos do outro lado uma PRAINHA DE SEIXOS, junto a um lago de águas transparente. Era um lugar incrivelmente belo, um paraíso que se apresentava à nossa frente, como uma tábua de salvação que se apresenta para um naufrago. Quando vi que parte do grupo se dirigiu em direção a ela, já saquei que ali seria o lugar do nosso acampamento, então saltei pela última vez na agua aquele dia e meio capenga, nadei o mais rápido que consegui e quando meus pés tocaram as pedrinhas da praia, joguei minha mochila ao chão e cai sobre a quentura da rocha e lá fiquei por um bom tempo, deitado, recebendo o calor do sol, até que recobrei as energias e fui retirar a roupa molhada e vestir roupa seca.

 

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Não poderia haver lugar melhor para acampar. Uns 10 metros longe do rio e acima o suficiente para não ser pego por uma cabeça d’água, um terreno plano e cheio de grandes árvores, nos dava tranquilidade para fazermos daquele lugar, nossa casa por uma noite. Cada qual tratou de montar suas redes, conforme seus equipamentos. Como ainda era muito cedo, alguns trataram de colocar suas coisas para secar, enquanto outros já foram cuidar da janta, mas eu, assim que armei minha rede, tratei foi de me jogar para dentro do saco de dormir e tirar um cochilo e só lá para as cinco da tarde é que fui fazer algo para comer, mas aí já renovado. O Loures já fez logo um banquete junto com o Prince, mas eu também não me furtei em fazer uma janta encorpada e fiz questão de comer até não aguentar mais. De barriga cheia, ficamos no ACAMPAMENTO DA PRAINHA DE PEDRAS, apenas jogando conversa fora e vendo a vida passar sem compromisso algum, enquanto alguns outros malucos resolveram tomar banho, coisa que nem me passou pela cabeça, já que havia tomado 528 banhos ao longo do dia.

 

A noite foi maravilhosa e 12 horas de sono é capaz de renovar qualquer pessoa, muito porque, sabíamos que o dia seria de desafios intensos, que a nossa frente teríamos um terreno duro onde seríamos desafiados pela mãe natureza .

 

Estávamos ali, mais ou menos na cota 370 de altitude e logo de cara iríamos ter que desafiar uma garganta gigante. Atravessamos o rio logo pela manhã, antes das oito e isso é algo que nos traz um certo sofrimento, o de ter que se jogar na água fria tão cedo. A caminhada segue no mesmo ritmo de sempre, revezando travessias de rios, pulo em poço, escalando paredes laterais, varando algum matinho. Tudo corria conforme os protocolos, mas em um desses pequenos vara mato, afim de nos livrarmos de uma pequena garganta, mas que era impassável pela água, fomos tentar subir um barranco pela esquerda, sendo que o Júlio e o Potenza tomaram à frente, enquanto eu e o Loures nos mantínhamos atrás e abaixo deles. Era uma parede de quase 90 graus, onde a gente tinha que se valer das raízes para ganharmos altura. O Potenza ganhou uns 3 ou 4 metros da gente e num movimento rápido, deslocou uma pedra de mais de um quilo, que surpreendentemente, mais uma vez, veio a EXPLODIR bem na cabeça do Loures e depois chocou-se contra o meu ombro. O Loures ficou parado, olhos arregalados. Demorou um tempo para que ele dissesse algo e eu mesmo nem tive forças para falar nada na hora. Eu e o Loures nos olhamos e não teve como não nos vir a cabeça a tragédia de 2015, era como se o vale nos desse o recado, de que deveríamos nos apegar a segurança e por sorte, o Loures dessa vez, estava munido com um resistente capacete de escalada e não sofreu nada, só o susto e a lembrança de tempos difíceis passado no mundo da aventura.

 

Passado essa vara mato, voltamos ao rio bem encima da grande cachoeira, um gigante que se jogava vale abaixo, então tivemos que subir um grande barranco e começar a varar mato até atingir uma altitude considerável e descermos numa diagonal nos valendo de um afluente seco até nos vermos de volta ao rio, mas agora aos pés da grande queda d’água, hora de parar e apreciar essa grande obra da natureza.

 

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Ali estava ela, a grande CACHOIERA DOS TREZENTOS, que é como eu chamei ela desde os primeiros estudos há muitos anos atrás, por estar localizado mais ou menos na cota de altimetria dos 300 metros. É um gigante despencando num vale aberto, mostrando todo o poder desse rio, um volume de água avassalador que despenca abaulada, em um salto que tem seguramente mais de 50 metros de altura, mas que, do lado que estamos, nem é possível vê-la na sua totalidade. Largamos as mochilas e corremos para escalar suas grandes pedras e nos posicionarmos o mais perto possível da sua queda. O grupo estava frenético, em êxtase, por termos a consciência de estarmos em um lugar onde poucos tiveram a chance de estar e aproveitando o momento, tratamos logo de mandar um “CHUPA” para os amigos que desistiram e outros que desdenharam, uma brincadeira que fazemos com a galera que sempre nos acompanha nessas aventuras no coração da serra do Mar.

 

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Abaixo dessa queda, coisa de não mais que uns 10 minutos, o rio Capivari simplesmente resolve se espremer e se joga numa garganta incrível, fim da linha para a gente, o jeito foi retornar e tentar um vara mato pela direita, desviando de enormes blocos de pedras, abrindo caminho num mar de espinhos e pedras soltas até conseguimos sair em um afluente, onde uma cachoeirinha nos barrou a passagem.

 

Estávamos dentro de um vale e a nossa frente, uma parede nos barrava o caminho e vimos logo que nosso destino seria tentar descer o riacho para voltar ao rio Capivari, torcendo para que ele nos levasse bem abaixo do salto da garganta. O Júlio instalou a corda e desceram no exato lugar onde o vale começa, já eu e o Loures, aproveitamos a sobra da corda e baixamos ao fundo do vale um pouco mais à frente, mas ao descermos por uns 50 metros, fomos obrigados a nos valer novamente da corda para vencermos mais um degrau. Fomos desescalando, perdendo altitude e ouvindo cada vez mais perto o barulho do rio se jogando e em vinte minutos desembocamos justamente no GRANDE POCO, de onde uma CACHOEIRA de uns 20 metros emoldurava um lugar de sonhos.

 

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Aquela GARGANTA, sem dúvida, perfazia uma das coisas mais bonitas já vistas nesses rios paulistas e não tardou para os mais malucos escalarem uma grande pedra e saltarem de lá para dentro do poço profundo, mas é um salto ariscado porque uma correnteza pode levar o cara direto para um salto mais abaixo, onde a chance de sair vivo não é lá muito grande. Aliás, o Prince e o Júlio disseram que talvez fosse possível continuar seguinte, tentando desescalar a próxima cachoeira, mas numa análise mais apurada, decidimos que o risco não valeira a pena e poderíamos correr o risco de ficarmos emparedados, então nos reunimos para tomar uma decisão sobre a sequência daquela expedição.

 

É preciso abrir um parêntese : esse afluente que usamos pra chegar até essa GARGANTA, com certeza é o único caminho viável para se chegar até aqui, caso contrário, corre-se o risco de passar direto e não conseguir acessar essa parte do rio, mas por hora, também não nos pareceu ser possível mesmo, conseguir descer depois da garganta partindo do seu grande lago, então a única decisão para seguir com segurança, foi subir novamente pelo afluente até as suas cachoeirinhas e de lá empreender um vara mato na diagonal até atingir o final da garganta, uns 100 metros de desnível, mas antes disso acontecer, esteja preparado para tomar um surra do terreno.

 

Portando, abandonamos de vez a GRANDE GARGANTA DO CAPIVARI e voltamos a subir o afluente que havíamos pego para chegar até ali. Subimos de volta até as cachoeirinhas, onde instalamos novamente a cordinha para facilitar a subida até um degrau, onde poderíamos passar para o lado esquerdo do riacho, vencendo uma parede íngreme. A intenção era ganhar altura e depois empreender uma diagonal de volta até o rio mais a frente, nos livrando da garganta espremida. O planejamento era perfeito, mas faltou combinar com o terreno.

 

Nossa saga começa ali mesmo, na parede do outro lado do rio, onde teríamos que escalar e contornar imensos blocos de pedras. Nessa jornada de passagem, acabei ficando para trás e quando chegou a minha vez de escalar a parede, já não havia mais terreno para eu me segurar. Então me vi completamente perdido, sem lugar para apoiar as mãos, junto a uma parede que insistia em querer me jogar para o fundo do vale. Gritei para que alguém pudesse me jogar uma corda, mas todos já havia feito a curva atrás da pedra e não me ouviam mais. E para piorar, eu estava me apoiando numa pedra que não tardava em despencar e me levar junto com ela. Nessas horas a gente além de perder o chão, também perde o rumo, fica meio que vendido, meio que em transe, o medo vai tomando conta da gente, que fica ali, parado, inerte, na iminência de cair e não importa quantas vezes você tenha passado por isso. Tentei manter a calma, chutei a terra para que um buraco no barraco se abrisse e eu pudesse apoiar o pé esquerdo e tirar força do direito que se apoiava levemente sobre a rocha que ameaçava cair. Cravei a unha no barro da parede, já que hão havia nenhuma bromélia, raiz ou qualquer outra vegetação em que eu pudesse me segurar. Os dedos entraram na parede úmida e então botei o pé direito no mesmo instante em que retirei o esquerdo e avancei. A cara foi raspando no barro. Me mantive a noventa graus e quando me dei conta, já consegui me agarrar a um arremedo de raiz e me elevar para fora da via exposta, completamente abalado pela situação de risco em que me coloquei. Quando a gente conta, ninguém acredita, mas na Serra do Mar, você anda o tempo todo no fio da navalha e essa foi mais uma vez em que me perguntei se já não estava mesmo velho para ficar passando por isso.

 

Voltei a me juntar ao grupo, que não foram mesmo muito longes, já que o terreno simplesmente não deixava progredir. Começamos a subir degraus, quando deveríamos era descer, mas o terreno não nos deixava. Sem querer, fomos ganhando altitude, mas surpreendentemente, não progredíamos em direção a sequência do rio, só nos afastávamos dele. Paramos para conversar e analisar o terreno, já que outra parede que se anunciou, fez com que parte do grupo protestasse quanto a falta de segurança, onde pedras gigantes despencavam e ameaçavam atingir a cabeça de quem vinha atrás. Então foi preciso tomar uma decisão radical: Ou a gente ariscava descer aqueles degraus gigantes na cordinha ou corríamos o risco de não voltar mais para o rio naquele dia, mesmo porque, já havíamos chegado a parte da tarde.

 

Cada qual tentou achar um caminho de descida, mas o único que nos restou, foi tentar avançar por um vale, mas para lá chegar, tivemos que instalar a cordinha e fazer um RAPEL. Montamos os equipamentos e usamos uma fita e um freio ATC, mas infelizmente acabamos botando o cara mais robusto (gordo) para ir primeiro e o Alan Flórido desceu com a cordinha vagabunda chiando, como se fora estourar e arremessá-lo de uns 10 metros de altura sobre umas pedras perigosas. Agora com a cordinha mais comprometida ainda, descemos todos, cada qual implorando para o seu Deus, que não a deixasse arrebentar e os que não tinham a quem se apegar, apenas desceram resilientes de que a vida já havia valido a pena.

 

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Juntos, ganhamos a descida do vale, e fomos descendo em meio a uma vegetação caótica, entrelaçada com cipós e bambus, por onde um pequeno riacho que ia ganhando vida, até que uma grande rampa, nos devolveu ao Rio Capivari, mais ou menos na altimetria 250 e aí foi hora de abandonarmos tudo e nos jogarmos no rio, lavar a alma e comemorar mais essa passagem, agora com uma sensação de que aquele rio estaria prestes a ser vencido, mesmo que não fosse naquele dia, conforme planejamos.

 

O dia passou de pressa, a hora voou. Já passava das três e meia da tarde quando retomamos nossa descida e o ambiente não mudou em nada, continuávamos escalando pequenas paredes e nos lançando freneticamente nas corredeiras do rio, algumas vezes beirando cachoeirinhas potencialmente perigosas, onde a correnteza arrastava tudo, querendo nos jogar nos pequenos abismos. A temperatura havia melhorado muito e dessa eu vez eu não sofria com a temperatura da água, mas obviamente que todos estavam já cansados pela surra que o terreno nos deu naquele dia. Pouco antes das 17 horas, trombamos do que nos pareceu ser o local onde o explorador desapareceu em 2015, mas minha cabeça sofreu um bloqueio e sinceramente não consegui ter a certeza do local exato onde um teria seguido pela água e o outro teria subido o barranco para varar mato e nunca mais teria sido visto, desaparecendo para sempre.

 

Aquela cachoeirinha não me era estranha, muito porque, eu já havia botado os olhos nela vindo de baixo, nas ocasiões da tentativa de resgate. O grupo se adiantou, mas eu não pude seguir, fiquei ali, alguns minutos olhando para ela, olhar meio que perdido, como a me despedir daquele lugar, como a tentar exorcizar os fantasmas que me atormentaram durante muito tempo depois do ocorrido naquela tragédia de 2015. Talvez eu precisasse daquele momento, um último olhar, um último adeus, para poder seguir minha vida definitivamente e para isso, posicionei meu celular numa pedra e botei no time, para tirar uma última e derradeira foto.

 

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Apressei o passo para alcançar o grupo, que se adiantou e ao pular de uma pedra para outra, dei uma titubeada e escorreguei e despenquei de uns 2 metros, vindo a bater o joelho violentamente contra uma rocha. Fiquei lá, urrando por mais um minuto, até que sai do buraco onde estava e apressei a passada. Seguimos descendo o rio até depois das cinco da tarde, quando do lado esquerdo nos surgiu um lugar perfeito para montar acampamento. Estávamos exaustos, acabados fisicamente e sem muita conversa, cada qual foi tratar de encontrar 2 árvores para montar sua rede. Nessas horas sempre tem os espertinhos que pegam os melhores lugares, mas eu não fui um deles, fiquei meio amortizado, sentei-me ali, tirei minhas botas, a roupa molhada, coloquei roupas secas, belisquei alguma coisa e depois é que fui cuidar da minha vida.

 

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Naquela noite estávamos bem animados. Enquanto cozinhávamos, nos divertíamos, confraternizávamos, sabendo que nossa missão naquele rio estava prestes a ser cumprida. Nossa posição na altimetria era menor que 180, ou seja, o encontro do Capivari com o Branquinho não estava a mais que 100 metros de desnível, onde uma trilha nos esperava. Às 6 da manhã, estávamos em pé, mas só depois das sete foi que conseguimos partir. Botar a roupa molhada logo sedo chega a ser uma tortura, mas quando você lembra que já de cara terá que se jogar na água fria matutina, então apenas se conforma com o seu destino. E não é qualquer travessia de rio, é simplesmente um mergulho para dentro de uma correnteza que vai te arrastando até te jogar para dentro de um poço profundo e gelado, fazendo você nadar desesperadamente para voltar a se aquecer.

 

A caminhada vai alternando pulos na água e escalaminhada em grandes pedras, passando por algumas pequenas grutas e foi numa delas que a gente parou para ver o Júlio fazer seu show: Do nada, vimos quando o Júlio se embestou de onde estava, correndo freneticamente, pulando de rocha em rocha, até que se jogou para dentro de uma gruta escura, por onde o rio corria por baixo. Eu particularmente não entendi foi nada, fiquei vendido, só acompanhando com os olhos e sem saber no que daria aquela maluquice, até que vimos o doido sair de lá com uma serpente nas mãos.

 

O desgraçado sorria, num tom meio sarcástico, feliz por ter agarrado aquela cobra e eu com os olhos arregalados, me perguntando porque aquele “cretino” foi pegar uma jararaca, animal que eu só faço correr e passar longe depois que fui picado por uma há mais de uma década atrás.

 

- Calma Diva, é apenas uma falsa jararaca, segura aqui para você ver.

 

- Foda-se, sai pra lá com essa porra dessa cobra.

 

Não dava para negar, era um animal extremamente bonito e as características não deixavam dúvidas que era uma FALSA JARARACA, mas meu mecanismo de defesa achou melhor ignorar essa informação, melhor apreciar de longe, mas iria chegar a hora para curar esse trauma que me acompanha por todos esses anos.

 

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O rio se aplainou de vez, a tal ponto que o caminhar ficou suave e desimpedido, mesmo que a gente ainda continuasse a se jogar nas pequenas correntezas, mas agora muito mais por diversão do que por necessidade e antes das dez da manhã, chegamos à GRANDE ILHA DO RIO, ainda que houvesse outras, mas essa era uma marcante, tanto pelos acontecimentos passados, quanto pelo que viria a acontecer em instantes.

 

Antes da tragédia de 2015, parte do grupo fez uma tentativa de descer o Capivari. O grupo pouco viu do rio e acabou varando muito mato na época, inclusive o Prince e o Loures estiveram naquela primeira expedição, juntamente com o explorador que viria a desaparecer em 2015. Na ocasião, eles passaram pelo lado direito da ILHA e numa tentativa de cruzar um braço do rio, o Loures e o explorador, acabaram caindo numa tormenta e despencaram para dentro de um refluxo e foram cuspidos pelo rio, tomaram um susto, mas saíram são e salvos daquela vez e agora, o Loures tomou a decisão de tentar repetir a descida, só que dessa vez irai se jogar de propósito.

 

Cada qual como pode, tomou o seu assento. Eu me posicionei bem à frente da fenda, bem onde o rio se jogava. Ficamos na expectativa de saber no que aquela maluquice do Loures iria dar. Uma coisa era cair uma vez, outra coisa era entrar naquele turbilhão de água de propósito, mas enfim, nos preparamos para acompanhar o show.

 

O Loures de capacete, colete, perneiras e luvas, agarrou na sua mochila estanque e só fez deixar que a força brutal da agua se encarregasse de lhe arrastar e lhe jogar de cima da cachoeirinha. Foi uma bela queda, bateu e subiu rapidinho e sem deixar com que a mochila lhe escapasse, surfou encima dela, corredeira à baixo, até que conseguiu voltar para a margem, sobre o aplauso de todos os presentes.

 

O show não terminou, novos artistas se prontificaram a continuar, por isso , também continuei sentado no mesmo lugar, pena não ter uma pipoquinha para acompanhar. O Prince logo se posicionou. Ele era um dos que estavam também quando o Loures caiu acidentalmente, mas agora iria testar a sensação de se jogar propositadamente. Subiu mais acima do rio e se jogou. Rodopiou, caiu e foi engolido pela torrente e demorou uma eternidade para subir e quando emergiu, agarrou-se como pode na sua mochila, mas não saia do lugar, ficou girando perigosamente, desesperadamente, até que o Loures, que acompanhava tudo bem de pertinho, conseguiu agarrar a mão dele e os dois foram parar na correnteza, que os arrastou rio abaixo, enquanto a galera gritava freneticamente, como a saudar o pica-pau descendo as Cataratas do Niágara num barril. ( hahahahahha)

 

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O Prince se lascou todo, emergiu cheio de hematomas, mas não deu nem tempo de contar isso para ninguém, muito porque, mais um trouxa ( opssss corajoso)se posicionou. Mas dessa vez, além de estar sem os equipamentos de segurança, ainda se deu ao disparate de tentar descer sem a mochila estanque que obviamente, serviria de uma boia para poder jogá-lo de volta para a superfície. Na verdade, ele levou a mochila, mas jogou-a na água e saltou no rio e o resto foi história. Afundou e virou passageiro numa máquina de levar, foi debulhado, triturados, esfolado, um boneco a serviço das forças da natureza. Quando subiu , não se deu conta, talvez pela adrenalina do momento, tentou resgatar sua mochila, mas desistiu e se deixou levar pela correnteza até poder voltar onde estávamos e constatar que os deuses das profundezas haviam zuado com ele, estava trucidado, cheio de machucados e hematomas em todo o corpo e essa foi a primeira vez que vimos o Júlio fora de combate. Mas ficou o aprendizado, de que equipamento de segurança sempre vão ajudar, tanto que o Loures saiu intacto, enquanto o Prince e o Júlio foram moídos pelo rio. Para o Júlio ao menos sobrou a honra de batizar o salto, que ele felizmente chamou de FENDA DE HADES, em homenagem ao Deus do submundo, para onde vão as almas dos mortos na mitologia grega .

 

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Findado a brincadeira, foi hora de quase todos se jogarem na correnteza abaixo da fenda e se deixar levar pelo rio, caindo em lagos calmos. O rio aplainou de vez e quando dava, usávamos as margens para ganharmos terreno ou mesmo cruzando por dentro de ilhas até que às 11: 30 da manhã, interceptamos o RIO BRANQUINHO, com águas extremamente transparentes, fazendo jus ao nome. É um encontro maravilhoso, uma amplitude linda de ver.

 

Ali é onde finda o RIO CAPIVARI, é onde ele encontra com o Branquinho e vai dar vida ao GRANDE RIO BRANCO. A gente estava extremamente feliz e eu estava radiante por essa conquista especial, mesmo que ainda faltasse umas 2 horas de caminhada até a tribo. Senti como se uma tonelada fosse tirada das minhas costas, era algo que eu precisava riscar da minha vida, por tudo que aconteceu no passado. E ali, no encontro dos rios, juntamos todo os 6 integrantes do grupo e tiramos uma última foto juntos, para marcar mais essa conquista e botar definitivamente nossos nomes na história das expedições na Serra do Mar Paulista.

 

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E por que dessa última foto, se ainda faltavam 2 horas para terminarmos definitivamente essa travessia? É que esse encontro dos rios, marca duas possibilidades para se voltar à civilização: Subindo o Rio Branquinho e consequentemente um morro enorme, pode-se acessar novamente a Estrada de Ferro e caminhando por uns 10 km, voltar ao bairro da Represa, onde se pode pegar um ônibus de volta para São Paulo. Essa é uma opção duríssima e cansativa, mais muito mais barata porque não tem que descer até o litoral e voltar a subir a serra. Já a outra opção, apesar de mais fácil, é preciso contar com a sorte de, ao chegar na tribo indígena, conseguir um carro que te leve ao litoral de Itanhaém, onde tem que pegar um ônibus para São Paulo.

 

Acontece que o Prince mora perto da Estrada de Ferro e o Loures havia deixado seu carro na casa dele , então os dois resolveram que o melhor era subir para a linha do trem. Poderíamos subir todos, mas o Júlio ficou muito machucado depois de cair na Fenda de Hades e ainda tinha o caso do Florido e do Potenza que não conheciam a tribo e faziam questão de passar lá. Então nos despedimos do Prince e do Loures e cada qual foi se perder numa direção, os 2 subindo o Branquinho e nós 4, atravessamos a foz do Capivari e interceptamos a trilha indígena do outro lado, onde uma placa avisa que estamos entrando em reserva protegida.

 

A trilha é plana e irá atravessar uma dezena de afluentes do Rio Branco, que vai estar sempre a nossa esquerda, mas não andamos nem 200 metros e a abandonamos em favor de uma picada que nos levará ao GRANDE POÇO, bem na primeira curva do rio, um lugar deslumbrante, onde a gente fez uma parada para um lanche mais demorado, mesmo porque, o dia já ia pela metade e ainda não tínhamos almoçado.

 

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Depois de vários mergulhos, resolvemos nos adiantar e então retomamos a trilha principal e metemos marcha a todo vapor, mas não se passou nem uma hora, quando o Júlio resolveu aprontar novamente. Pulou no mato e saiu de lá com uma COBRA GIGANTE nas mãos. Era um exemplar lindíssimo de uma CANINÃNA. Mesmo com medo, apesar de saber que é uma serpente sem peçonha e inofensiva, dessa vez tinha que curar essa minha fobia e fiz questão de segurá-la , mesmo que com a supervisão do Júlio, que até deixou a cobra picá-lo , pra mostrar que não tinha perigo algum, mas é um exemplo que não deve ser seguido por ninguém , porque cobras devem ser deixadas em paz.

 

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Pois não passou meia hora e já tivemos mais um encontro com outra cobra, dessa vez um legítimo filhote de jararaca e esse, eu não quis nem graça. Passamos por um grande pé de laranja, onde no passado encontrei uma grande Anta, até que duas horas depois, desde que deixamos o Capivari, atravessamos o último afluente, já perto das malocas dos índios. Ficamos muito apreensivos, já que fazia muitos anos que eu não me encontrava com meu amigo VERA TUPÃ, uma espécie de líder ancião da TRIBO RIO BRANCO, o único índio a morar desse lado do rio.

 

A casa dele estava vazia, mas logo chegamos à outra casa, cercada por dezenas de palmeiras Jussara. Batemos palma e lá veio ele. Baixinho, cara de índio mesmo. Diz ele ter quase 90 anos, mas não precisa nem se esforçar muito para ver que pouco passa dos 70, porque ele mesmo se contradiz nas conversas. Sentamos sobre a área de sua habitação e nos pomos a conversar sobre causos antigos. Seu Vera Tupã é dos nossos, carrega o bom humor e o sarcasmo na alma. Perguntei como a tribo estava em tempos de pandemia e ele com a cara meio triste, nos disse que a coisa estava feia, que não estavam podendo comer nem suas mulheres. Depois, levantou a cabeça e disse que comer, só as mulheres dos outros, e então soltou uma gargalhada que ecoou por toda a tribo. ( rsrsrsrsrsrsrssr)

 

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A situação econômica da tribo nos pareceu um pouco melhor do que havíamos encontrado anos atrás, mas o seu Vera ainda nos pareceu viver com muitas dificuldades e como não havíamos tido tempo de comprar um presente, deixei um bom dinheiro para que ele pudesse comprar algo, mesmo que ele não tenha pedido. Ele nos informou que havia um índio com uma VAN fazendo o trajeto até o litoral, coisa que nos deixou muito contentes, porque o lugar até onde se pode pegar um ônibus está há mais de 5 horas de caminhada, numa estradinha para lá de enfadonha.

 

Nos despedimos do nosso amigo índio e atravessamos o Rio Branco para outra margem, mas antes de adentrar de vez na tribo, paramos para um último banho demorado, uma despedida glamorosa num dos mais belos rios do Estado.

 

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A tribo também não mudou muito, talvez tenha aumentado algumas casas. Logo alguns curumins atravessam o nosso caminho pedindo doces, mas nós já não temos mais nada de comida. Exatamente 20 anos atrás, quando estive por aqui, numa travessia, encontrei índias que ainda viviam seminuas e curumins que só falavam guarani. Encontramos o índio dono do transporte e combinamos a viagem até o litoral. Quando a Van passou na entrada da Cachoeira dos 3 Tombos, surpreendentemente, encontramos um grupo de amigos que havia feito a Travessia do Rio Branquinho e aí foi aquela festa quando eles também vieram à bordo e a farra se estendeu até Itanhaém, onde pegamos o ônibus para São Paulo e cada qual foi para um canto da região metropolitana e eu peguei o caminho da roça, chegando ao interior Paulista só na madruga.

 

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No meio da expedição, Paulo Potenza me disse que aquela travessia era VALENDO A VIDA a todo momento e eu voltei com isso na cabeça, um jeito simples de dizer que havia perigos o tempo todo, sempre caminhávamos no fio da navalha. Mas isso a gente já sabia, toda travessia selvagem na Serra do Mar Paulista, o risco que se corre é gigantesco, tanto que naquele mesmo rio, a gente já tinha perdido um amigo. Mas a minha concepção de “ valendo a vida “ era outra, era como se precisássemos voltar ali naquele lugar, exorcizar todos nossos fantasmas, para que a própria vida voltasse a fluir normalmente. Era preciso destravar, era preciso enterrar de vez aquela história que nos atormentou por tantos anos. Juntamos um grupo excelente, mesclado com exploradores do passado e do presente, mais do que isso, um grupo de amigos, que atravessou de um lado e saiu do outro como uma família e é isso que verdadeiramente faz a VIDA VALER A PENA e agora o Vale do Capivari é passado, é história.

 

 

 

 

 
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  • 5 meses depois...
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Em 19/08/2022 em 00:22, lucci disse:

Fala, pessoas! Zero sinal do Kamal nesses últimos anos? 

Alguns anos atrás chegou até mim algumas informações sem pé nem cabeça, conversas fiadas jogadas ao vento, mas o certo é que esse caso permanece como sempre esteve , um dos maiores enigmas dos esportes ligados a Aventura de todos os tempos, muito mais que o caso do escoteiro dos Marins, muito porque, o Kamal não tinha costas quentes, era só mais  na multidão, não tinha gente influente que pudesse levar esse caso adiante e foi simplesmente deixado de lado pelas autoridades, que com uma semana, deram as buscas ( nas coxas) encerradas. Nós ainda ficamos por 6 meses, fazendo as coisas por conta própria, mas nenhuma pista, nada , nadica de nada .

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  • 3 meses depois...
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Em 02/03/2022 em 15:58, divanei disse:

TRAVESSIA VALE DO CAPIVARÍ : Valendo a Vida .

TRAVESSIA VALE DO CAPIVARÍ : Valendo a Vida .

Travessia pelo vale do Capivarí , da tragédia à contemplação da vida, em um dos vales mais lindos da Serra do Mar Paulista.

Acampamento Cachoeira Trekking
 
 

TRAVESSIA VALE DO CAPIVARÍ

 

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Foi numa manhã um pouco fria, no início de maio de 2015, que a tragédia nos apanhou. Já fazia algum tempo que vínhamos conversando sobre a possibilidade de um dia, termos que sair daquelas expedições, tendo que carregar um corpo e por isso mesmo, havíamos decidido que a partir daquela travessia, iríamos implantar uma série de equipamentos, começando pelo capacete, mas infelizmente o grupo acabou crescendo muito e a recusa por partes de alguns em adotar o equipamento de segurança, acabou por desencadear uma série de acontecimentos que no final, terminaria com uma cabeça rachada ao meio e outro desaparecido e provavelmente MORTO.

 

Por incrível que pareça, apesar de um grupo extremamente grande, a enorme maioria era formada pelo que havia de melhor em exploração e travessias selvagens no Estado de São Paulo, gente tarimbada, acostumada a enfrentar terreno hostil, que só a Serra do Mar Paulista pode nos dar e talvez por isso, o excesso de confiança acabou por nos encaminha para essa tragédia. E a desgraça acabou por começar a se desenhar logo antes da primeira curva do rio. Metade do grupo atravessou para a margem esquerda, mas foi uma travessia tensa, porque o Rio Capivari tem a premissa de ser um rio caudaloso e aquela era uma parte dele onde o seu leito se afunilava e formava uma torrente potencialmente perigosa. A outra metade, não querendo ariscar, resolveu que subiria um grande barranco, cruzaria por cima e encontraria a outra metade um pouco mais à frente, coisa de menos de 80 metros, mas essa tomada de decisão não contava com a instabilidade das encostas íngremes, onde pedras se soltavam apenas com as vibrações dos passos.

 

Do lado esquerdo, olhávamos toda a movimentação do grupo que iria subir o barranco, mas até então, sem nenhuma apreensão, já que essas ações eram comuns e corriqueiras naquelas travessias. Dois exploradores tomaram à frente e escalaram a parede cheia de mato e tomando cuidado para não soltar nenhuma rocha e acabar desencadeando uma avalanche de pedra sobre quem estava embaixo, esperando a sua vez de subir. Aqui preciso abrir um parêntese: O Eduardo Loures havia convidado uns amigos para essa expedição, mas esses amigos dele, já começaram a dar pit quando havíamos botado os pés no rio. Os caras não tinham se dado conta de que aquelas travessias não eram caminhadas clássicas, como por exemplo uma Serra Fina, uma Marins x Itaguaré, que são travessias duras, mas comparadas com essas travessias selvagens, não passavam de um passeio no jardim da infância. Quando viram o tamanho da encrenca, começaram a definhar e se perguntarem se valia a pena continuarem seguindo ou se deveriam voltar e quando viram que tinha que escalar uma parede protegida pelos guardiões do inferno, aí foi que começaram a aloprar a cabeça do Eduardo e ele se sentiu na obrigação de abrir caminho para seus 3 amigos, como a tentar incentivar os caras a seguirem em frente.

 

Nesse tempo de indecisão, os DOIS EXPLORADORES que subiram o barranco primeiro, sumiram no mato, pensando que o grupo estava vindo na sua cola, já que foram abrindo o caminho e deixando um rastro atrás de si. E ainda do outro lado do rio, eu, o Marcos Prince e mais seis aventureiros, continuávamos acompanhando toda a movimentação, só esperando que o grupo todo subisse o barranco e depois descendo, atravessasse o rio num lugar mais raso e viesse se juntar a nós do lado esquerdo.

 

A situação ficou tensa com os três amigos do Loures, que já estavam quase dando meia volta, então o Loures decidiu que abriria caminho no barranco, escalando também a parede e tentaria encontrar o rastro de trilha que os dois exploradores haviam deixado. Segundo o que me contaram, o Loures subiu se agarrando no mato e foi aí que a tragédia começou a se desenhar de verdade: Uma PEDRA GIGANTE de uns 30 kg se desprendeu do barranco e rolou na direção da cabeça do Loures e só houve tempo dele tentar desviá-la com a mão, mas mesmo assim, ela atingiu sua cabeça e ele despencou, caindo no chão ensanguentado e totalmente desnorteado.

 

Do outro lado do rio, conversávamos descontraídos, sentados sobre uma grande rocha, só esperando que os caras se juntassem a nós. Mas foi com grande surpresa que ouvimos silvos de um apito que era precedido com balançar de braços, indicando claramente que alguma merda havia acontecido. Rapidamente retornamos, atravessamos novamente o rio e já encontramos o Eduardo Loures recebendo os primeiros socorros e tendo sua cabeça totalmente enfaixada. Estava consciente, mas com os olhos arregalados, como se tivesse totalmente fora de si. A ação foi rápida, não havia telefonia para se chamar um possível resgate, então decidimos evacuar o ferido nós mesmo, já que ele ainda podia caminhar, mesmo que amparados por duas pessoas, afinal de contas, ainda estávamos no máximo há umas 2 ou 3 horas de onde se podia conseguir um socorro.

 

Mas uma pergunta precisa ser respondida: Que fim havia levado os dois exploradores que haviam subido o barranco e não retornaram? Pois é, ao invés de voltarem, continuaram descendo, pensando que o grupo estava no seu encalço e na serra do Mar a gente sabe que uma vez que você desce um barranco, voltar a subir é algo quase impossível ou ao menos muito penoso. Então ao descer para o outro vale, se mantiveram parados, esperando que o grupo pudesse se juntar aos dois, coisa que não aconteceu por causa do acidente.

 

Vendo que os dois não voltavam, destacamos uma pessoa para tentar descer o rio por um instante a fim de localizar os desgarrados, enquanto dois ou três ficaram parados no lugar do acidente, caso eles retornassem. Quem desceu o rio não os encontrou, mas ficamos sabendo que os dois ouviram os apitos, que eram o alerta para que eles retornassem, mas os dois fizeram uma leitura errada e ao ouvirem o som dos apitos no rio, pensaram que todo o grupo tinha mudado de estratégia e ao invés subirem também o barranco, teriam atravessado o rio e já estavam todos no fundo do vale e aceleraram o passo a fim de nos alcançar e acabaram foi se distanciando mais.

 

O resumo daquele dia de expedição foi um com a cabeça quebrada e dois perdidos no vale. O Eduardo Loures foi levado ao hospital, onde recebeu todos os cuidados e levou umas duas dezenas de pontos na cabeça. Eu e mais três exploradores nos posicionamos estrategicamente e acampamos na antiga usina, onde começa a descida do rio, a fim de esperar caso os dois resolvessem retornar.

 

Passou-se o resto do dia, a noite todo e quase o meio dia posterior e ninguém retornou, então chegamos à conclusão de que os dois desgarrados haviam descido o vale e mesmo sabendo que era um vale extremamente perigoso, confiávamos plenamente na capacidade dos dois, mas mesmo assim, resolvemos retornar para a cidade, mais precisamente para a casa do Prince, onde conseguimos um carro para nos levar até o litoral, até a aldeia indígena, onde seria a saída, o final de toda a travessia e assim, poderíamos ajudar os dois a voltarem para casa mais rápido, evitando que perdessem quase um dia andando numa estradinha enfadonha para chegarem ao litoral.

 

No final do terceiro dia, desde que começamos a expedição, chegamos à tribo e lá encontramos, já na entradinha, um dos dois exploradores. Surpresos por não encontrarmos os dois juntos, perguntamos onde estaria o outro e ficamos sabendo que os dois haviam se separados no início da manhã. Houve um desencontro, depois que um resolveu seguir um pedaço pelo rio, enquanto o outro resolveu varar uns 80 metros de mato morro acima, para evitar a água gelada. O que foi pelo rio esperou o que foi pelo mato e vendo que ele não chegava, nadou de volta até onde haviam se separado, mas também não o encontrou mais e depois de esperar por muito tempo, resolveu seguir descendo pelo rio, muito porque, já estavam na parte plana do rio, onde não havia mais perigo algum, estando eles a não mais que 3 horas da trilha que os levaria direto para a aldeia indígena.

 

Vendo que faltava um dos companheiros de aventura para sair do mato, resolvemos que acamparíamos na tribo para poder recebe-lo, já que ainda havia a possibilidade dele estar por chegar. Mais ele não chegou, nem naquela noite, nem no dia seguinte, o que nos levou a pensar que ele poderia ter tomado o rumo contrário, já que ao interceptar a trilha que leva à aldeia, também havia a possibilidade de pegar outra trilha subindo para a Estrada de Ferro e de lá caminhar uns 10 km até onde se pode pegar um ônibus para voltar para São Paulo, então, tomamos o caminho de casa e retornamos, eu para o interior Paulista e os outros foram se perder nos quatro cantos da região metropolitana.

 

Já em casa na segunda-feira, soubemos que, apesar da gravidade, o Loures estava super bem e já em boa recuperação, mas por hora, o outro explorador ainda não havia dado notícias, mas até então não achamos que deveríamos nos preocupar, já que naquela época a comunicação era horrível, sendo que a telefonia móvel ainda deixava muito a desejar, além do que, os celulares poderiam estar descarregados.

 

Passou toda a segunda, passou toda a terça-feira e nada do desaparecido dar sinal de vida, aí foi hora de acender o alerta. Destacamos uma pessoa para ir até a casa dele para saber se havia dado alguma notícia para os parentes ou se até já estaria em casa, mas as notícias não eram nada animadoras, então havia chegado o momento difícil que nunca imaginávamos ter que enfrentar: HORA DE ACIONAR O RESGATE.

 

Os seis meses que se seguiram foram de tempos difíceis para todo mundo, mesmo que o resgate só tenha ficado na serra por pouco mais de uma semana, acabamos nos mobilizando por meses, para tentar encontra-lo, mas esse é um mistério que perdura até os dias de hoje e dizer o que realmente aconteceu, é só especulação e sinceramente, vou me abster de entrar nesse mérito e só contei essa história porque realmente não tive como evitar, porque todo o clima que antecedeu essa nossa NOVA TRAVESSIA, passado anos depois dessa tragédia, estavam ligados entre si .

 

Depois dessa tragédia, parte do grupo se reciclou, alguns nunca mais voltaram a se juntar, mas outros continuaram unidos e cerca de um ano depois, voltaram aos projetos de explorações selvagens na Serra do Mar e em muitos outros lugares Brasil afora, mas o Vale do Capivari ficou como uma pedra no sapato, uma travessia entalada na garganta, pelo menos dos que ainda seguiram nesse tipo de aventura. Muitas foram as vezes que cogitamos a volta ao vale, mas havia algo que nos barrava sempre, ou eram as mudanças repentinas de tempo ou a gente que acabava por inventar desculpas esdrúxulas para não realizar a travessia, sei lá, formou-se uma barreira psicológica do qual parecíamos não conseguir transpor.

 

Sobre as minhas costas, pairava esse fracasso, essa travessia inacabada, uma espécie de fardo que eu tinha que eliminar da minha vida, precisava passar uma borracha para poder seguir, afinal de contas, já havia se passado meia dúzia de anos desde o fatídico dia. E aí, as coisas começaram a acontecer do nada, quando procurávamos ver se alinhávamos alguma travessia e foi quando alguém sugeriu do nada, que fizéssemos a TRAVESSIA DO VALE DO CAPIVARÍ. Na hora meio que tomei um susto, porque não esperava que ela poderia entrar na pauta ainda esse ano, mas mesmo diante de um calafrio repentino, comprei a ideia, mas pouco depois de dar o meu sim, me senti um pouco mal, não sei, parece que ainda não estava preparado, mas mantive meu compromisso.

 

O grupo que estava por se formar, eram de pessoas muito diferentes das que estiveram na primeira tentativa do passado, muito porque, foram poucos que ainda se mantiveram na ativa e os que ainda estavam no grupo, haviam sobrado apenas eu e mais um( Trovo) e mesmo assim, esse outro sobrevivente não conseguiu data para poder ir, então pedi para os caras, pelo menos uma ou duas vagas para eu tentar chamar alguém do grupo de 2015, porque poucos eram os que eu realmente teria um grande prazer em retornar naquele vale e por fim, conseguimos convencer dois a descerem com a gente, mas não eram dois quaisquer, eram simplesmente o EDUARDO LOURES E O MARCOS PRINCE, dois protagonistas, não só daquela tentativa de descida no passado, mas também dois dos ícones das explorações Selvagens da Serra do Mar, que começaram comigo uma dezena de anos atrás e isso me deixou extremamente contente.

 

O grupo foi tomando corpo e para completar a seleção, Paulo Potenza, Alan Flórido e Júlio Ronchese, formaram um dos “elencos” mais forte que já tivemos, ainda que hajam outros, que não puderam estar com a gente e a partir daí, começamos a monitorar o tempo, que a priori, estaria perfeito para essa travessia.

 

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EM PÉ: ( Paulo Potenza, Júlio Ronchese, Divanei, Eduardo Loures) AGACHADOS: ( Alan Flórido e Marcos Prince)

 

Na semana que antecedeu a expedição, eu estava tenso, muito tenso. Muito porque, o tempo começou a mudar e outros exploradores, além de caírem fora, ainda começaram a fazer piadinhas macabras sobre a situação atmosférica , que havia virado para frio e chuva, além de outras tantas conversas sobre possíveis acidentes, mesmo que isso viesse em tom de brincadeira, mesmo assim, aquilo foi me deixando com o nervo a flor da pele , mas a gota d’água veio quando um amigo me mandou uma mensagem e essa não era em tom de galhofa, me dizendo que havia sonhado com uma tragédia na travessia. Fiquei mais apreensivo ainda, mas toquei o foda-se, como sempre faço em relação a essas coisas, “dito sobrenaturais” e além do mais, eu mesmo tinha prometido ao Loures que desceria aquele rio com ele, nem que fosse o dia do juízo final, já que eu estava devendo isso pra ele, por já ter dado mancadas de outras vezes.

 

 

 

O Rio Capivari localiza-se no extremo sul da cidade de São Paulo. O lugar é tão distante do centro da capital, que mais um pouco, já estamos no litoral. O lugar é tão surreal, que além de comportar o rio mais limpo da cidade, ainda tem a honra de abrigar a maior cachoeira (Cachoeira da Usina), algumas aldeias indígenas e estar próximo do Bairro da Colônia, que fica surpreendentemente dentro da cratera de um meteoro. É um rio extremamente volumoso, um pouco acima das características da maioria dos rios da Serra do Mar, mas com acesso relativamente fácil, sendo frequentado na parte do planalto, onde há até camping estruturado. Mas a partir da Cachoeira da Usina, onde o rio se joga do planalto em direção a planície litorânea, ele se torna num monstro quase indomável, pronto para arrastar qualquer um que se meta em seu caminho, aonde paredões e gargantas quase intransponíveis ficam à espreita, tentando aniquilar os desavisados que lá se metem.

 

Mas tinha um outro, porém. As coisas haviam mudado um pouco desde 2015 e agora a fiscalização na linha férrea, que é o caminho natural até a Cachoeira da Usina, estava muito mais intensa e não foram poucos os que foram barrados e obrigados a retornar quando se dirigiam para visitar a grande cachoeira. Além do mais, na programação inicial, voltaram a discutir a possibilidade de tentar pegar o trem de cargas que desce a Serra do Mar para podermos passar pela fiscalização encima dele, sem levantar muita suspeita, mas isso me remeteu novamente a primeira expedição de 2015, quando pegamos o trem a noite e ao saltar dele em movimento, tropecei num dormente e fui arremessado no chão e sai rolando com mochila e tudo e ao me levantar, estava todo ralado e por muito pouco, não tinha me espatifado contra as paredes de um túnel .

 

Essa questão do trem estava tirando meu sono, eu não queria mais subir naquela desgraça, não a noite, mas o Júlio e o Prince insistiam que era o melhor a fazer, porque nos evitaria uma dezena de quilômetros de caminha enfadonha pela linha do trem, além de nos protegermos contra a fiscalização, mas eu estava resoluto e fui confabular com o Loures sobre a gente deixar os caras irem de trem e nós irmos a pé mesmo, já que todos tínhamos um só destino, que era a usina em ruínas. Mas o Eduardo loures, além de comungar com minha ideia, fez mais, propôs que a gente pudesse arrumar 2 veículos que nos levasse bem perto, há não mais que 3 km de caminhada da trilha de acesso a usina, evitando que tivéssemos que usar o trem.

 

Às nove da noite, na estação Santo Amaro, me encontro com Júlio, com o Potenza e com o Flórido e a última vez que fizemos algo juntos, foi na Expedição ao cume do Eixo em Ilhabela, alguns anos atrás e dessa vez a travessia prometia ser sensacional. Pegamos um ônibus para Parelheiros e lá nos encontramos com o Eduardo loures e o Prince, cada um em um carro, com seus respectivos motoristas e em pouco mais de uma hora, estávamos passando pela Estação Evangelista de Souza, lá perto do Bairro da Barragem, um fim de mundo perdido a meio caminho de lugar nenhum. A noite estava ainda meio embaçada, alguns chuviscos esporádicos e a partir da estação histórica, seguimos por uma estradinha paralela até que ela nos devolveu novamente à linha de trem, onde passamos no silêncio total a fim de evitarmos ser pegos por alguém.

 

A caminhada nesses quase 4 km de linha férrea, foi meio tensa, já que a todo momento pensávamos que pudéssemos ser pegos pela fiscalização, mas menos de uma hora depois, abandonamos ela em favor de uma trilha à direita, que em mais meia hora nos desovou direto ao Rio Capivari, bem onde antes havia uma ponte que se sustentava sobre trilhos e que hoje só sobraram 2 ou 3 trilhos paralelos, que não tardam em cair também e é por ele que temos que seguir. É possível cruzar o rio por baixo da ponte se valendo de uma corda, mas aí tem que ver a profundidade do rio, ter que tirar a roupa e as botas, então fomos por cima, mas é um tanto ariscado, trabalhoso e é possível que uma hora alguém despenque daqueles trilhos e cause mais um acidente grave e para falar a verdade, quando se está lá no meio da ponte é que você se arrepende da estupidez que resolveu fazer.

 

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Por mais uns 20 minutos, seguimos descendo, usando uma trilha enlameada, que faz alguns descer de quatro pés, até que nos vimos na entrada do grande galpão da antiga USINA DO CAPIVARI, hoje completamente em ruínas. Na verdade, em 2015 ela já estava bem deteriorada, mas agora até o teto caiu e a gente ficou vendidos, sem saber onde acampar, já que o próprio chão é um mar de lamas e entulhos. O Loures e o Júlio esticaram suas redes nas paredes que ainda se mantiveram em pé, já o resto do grupo subiu na laje dos dois banheiros, limpou os entulhos de telhas e esticou uma lona encima e embaixo e lá nos esticamos até as sete horas da manhã.

 

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Olha que maravilha !!!! O dia que amanhece é um dia quente, de muito sol e totalmente aberto, tanto que é possível ver até os prédios lá do litoral, coisa rara em se tratando de Serra do Mar. A previsão era a pior possível, mas não era o que estávamos presenciando naquela manhã e tudo estava correndo tão bem que isso chegava a me assustar um pouco. Mas não poderíamos nos enganar, podia ser uma grande cilada do Vale do Capivari, porque até ali na usina todo mundo chega, mas dali para baixo é terreno reservado à meia dúzia, cada metro daquele vale seria uma surpresa, por isso nos agarramos uns aos outros e demos início a mais essa AVENTURA. Era agora ou nunca mais, finalmente eu estava de volta ao meu maior pesadelo e como sempre digo, É CHEGADO A HORA DE BOTAR A FACA NOS DENTES.

 

Depois do acidente de 2015, o único que teve a oportunidade de descer o vale foi o Prince, mesmo porque ele é morador ali da região, na verdade desceu mais de uma vez e em duas oportunidades, estava acompanhado do Júlio Ronchese, mas a gente sabe que nunca se desce o mesmo vale, sempre que se retorna, o caminho não é o mesmo, mas claro, sempre tem algumas passagens que ficam gravadas, então esperávamos que eles se lembrassem desses caminhos para facilitar um pouco nossa progressão, porque não tínhamos mais que três dias para realizarmos todo a travessia até o litoral.

 

Saindo de dentro da USINA em ruínas, pegamos para a esquerda. Andamos por cinco minutos e nos detivemos por uma meia hora, junto a um pequeno córrego que é um afluente do rio, para tomarmos um café, mas ainda sem acessar o vale. A descida até o Rio Capivari é feita usando uma espécie de escadaria de cimento e logo de cara somos apresentados a MAIOR CACHOEIRA da cidade de São Paulo. A CACHOEIRA DA USINA é mesmo um monstro, despenca de mais de 60 metros, afunilada numa gargantinha lateral e é por causa dela que a usina existiu.

 

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Ali, diante daquele monstro aquático, ficamos parados por um tempo para contemplações. Mas é preciso ficar esperto porque é um terreno mais liso que costas de lobó e qualquer descuido pode levar a um acidente grave, porque pouco dá para ficar em pé. Tirada todas as fotos que foi possível, seguimos margeando do lado direito, varando algum mato até descermos quase uns 200 metros abaixo da cachoeira, onde uma gruta de granito forma um grande salão e esse é um dos pulos do gato para continuarmos seguindo, é ali que está a passagem secreta para o grande vale.

 

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A GRUTA DE PASSAGEM é uma formação natural, onde uma espécie de claraboia vai nos levar para o outro lado, mas a passagem é tão estreita que o Florido foi obrigado a ser puxado por cima e empurrado por baixo para poder desentalar. Ali tem que ter mesmo uma certa habilidade de escalador e mesmo os mais ágeis vão sofrer um pouco, meio que parecendo que você está vivenciando um parto, é como sair do útero da sua mãe. Claro que seria possível varar mato pelas paredes laterais, mas o terreno é terrivelmente perigoso e as pedras rolam o tempo todo e tivemos essa desagradável experiência em 2015, que veio a culminar com o acidente grave, portando a passagem pela gruta foi um excelente achado e ainda nos deu a possibilidade de podermos cruzar o rio em um ponto menos perigoso.

 

 

 

Estamos descendo a grande reta do rio. De qualquer lugar, ainda é possível visualizar a grande Cachoeira da Usina, mas menos de 100 metros antes do rio se curvar de vez, é preciso cruzar para o lado esquerdo do rio, tentando se manter em pé na correnteza e tomando cuidado para não ser levado. Essa é a hora de molhar as bolas, é o batismo definitivo, é quando realmente você fica sabendo que não tem mais volta, é quando a água extremamente gelada faz você acordar, faz você lembrar que aquilo ali não é um passeio e que você está diante de uma das mais desafiadoras travessias do Brasil. É um sacode que o rio te dá, ele grita na sua cabeça para você ficar esperto, respeitar e se apegar à oportunidade que será lhe dada, sair vivo agora é com você, é hora da concentração, olhos firmes, passadas decisivas para não errar o pulo e não se quebrar todo.

 

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Abandonamos tudo, deixamos para trás a grande queda, demos um adeus e quando o rio se curvou definitivamente e entrou numa sequência de gargantas, caímos no mato pela esquerda de quem desce o rio. Estávamos na cota 550 de altitude e agora o que nos restava era abrir mato no peito, escalar grande paredes, escorregar de vale em vale, atravessar pequenas depressões até que os meninos que iam à frente de batedores , conseguiram descer um barranco que nos levou acima de uma grande cachoeira, de onde o rio se jogava no vazio, então foi hora de nos sentarmos por um instante, apreciar o salto e comer alguma coisa, já que a manhã chegou a sua metade e o relógio marcava umas 10:30 e a barriga roncava um pouco, mas ainda não era hora do almoço.

 

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Voltamos para o mato e começamos a descida na tentativa de interceptarmos a base da cachoeira. Continuamos pelo lado esquerdo e fomos comendo mato, perdendo altitude entre grandes buracos, que eram atravessados alcançando seu fundo e voltando a subir do outro lado da parede, num terreno totalmente instável, aliás, como todo os terrenos que compreendem a Serra do Mar de São Paulo. Ficamos enroscado, sem encontrar uma mísera rampa que pudesse nos devolver ao rio, até que resolvemos encarar uma fenda de um pequeno afluente, onde ao descermos, desencadeamos uma avalanche de matérias soltos até que finalmente tocamos o solo e consequentemente o rio.

 

O meu sentimento sobre o Rio Capivari, sempre foi achar que era um rio sombrio, com pouca luz, cânions fechados com pedras lisas, onde a mata abraçava tudo, mas minha impressão foi desabando, como as pedras que se ancoram nos barrancos ao serem tocadas. Mas tocado, foi o meu coração diante daquele cenário. O rio se abriu e de cima de nossas cabeças, desabava uma cachoeira deslumbrante, com várias quedas, se espalhando de um lado ao outro, sendo finalizada com uma outra grande queda que se jogava num poço que se escondia atrás de outra grande pedra.

 

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Cada qual soltou sua mochila, deixou em qualquer lugar e se jogou no rio atrás do melhor ângulo, numa corrida frenética para ver quem chegava primeiro na rocha que dava de frente para o grande espetáculo. O dia chegara a sua metade, o tempo melhorou consideravelmente e mesmo a água ainda estando um tanto fria, não vimos problemas em nos esbaldarmos de tanto nadar de um lado a outro e teve os mais afoitos que foram mais longe, tentando pegar uma boa foto da galera reunida encima da grande rocha que adornava o leito do rio, na COTA 500 de altitude.

 

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Aquele era um grupo forte, não tínhamos dúvida disso, mas além da grande experiência que cada membro daquela expedição carregava, a gente se juntou numa comunhão poucas vezes vista, cada um ajudando o outro a superar os obstáculos e talvez isso tenha feito a gente ir ganhando cada vez mais confiança e ir dissipando a áurea ruim que se abateu sobre a gente antes da descida desse rio. A descida do rio foi fluindo, fomos vencendo etapas, às vezes boiando em corredeiras potencialmente perigosas, outras vezes nadando em remansos tranquilos, onde poços fundos eram cruzados de um lado a outro e pedras eram escaladas de um lado e serviam de escorregador natural para irmos perdendo altitude e avançando, mesmo que lentamente, mas sempre seguindo.

 

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Depois de perdermos bastante altitude e nos enfiarmos de vez num mundo completamente selvagem e sem chances nenhuma de escaparmos de lá, tendo que contar com ajuda de alguém, a gente se sente só. Somos meia dúzia de humanos que vagueiam num ambiente completamente hostil, tentando sobreviver a nós mesmos e as besteiras e erros que podemos cometer. Somos reféns das nossas próprias escolhas e escolhemos estar ali, mesmo que o mundo nem saiba onde estamos, mesmo que sejamos apenas meia dúzia de vidas alheias ao mundo, presos no centro selvagem de uma serra quase intransponível, mesmo assim, somos tomados por uma satisfação indescritível, porque a gente ama fazer isso.

 

Pouco antes de uma da tarde, fomos descendo meio que emparedados, passando por algumas piscinas naturais com águas muito transparente, até darmos de cara com uma bela CACHOEIRA, que despencava de um afluente que vinha da nossa esquerda, uma queda d’água estreita, mas caindo de uma parede até com uma altura considerável. Ali formou-se um cenário muito bonito, onde troncos gigantes enfeitavam o leito do rio, eram arvores mortas dando vida e beleza ao lugar.

 

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As paredes foram se fechando e se elevando, formando uma fortaleza quase que intransponível e a gente foi se afundando cada vez mais num caminho sem volta, tanto que eu estranhei muito a atitude do Prince e do Júlio, que não caíram fora daquela armadilha e não tomaram o caminho do mato, subindo o barranco bem antes para podermos nos librar daquela arapuca. Fomos nos enfiando, desescalando grandes pedras, aliás, eram pedras cada vez maiores e estava na cara que ia chegar um certo momento no rio que a vaca iria para o brejo. Mesmo assim continuamos seguindo, confiando de que os meninos tinham um plano, já que estiveram ali outras vezes, mas chegou uma hora que o caminho se fechou de vez, não havia mais como continuar descendo, fim da linha para nós, parecia que o terreno simplesmente havia nos levados para uma cilada.

 

À nossa frente, apenas um buraco que sugava parte do rio e parecia encanar a água para as entranhas do inferno. Uma CAVERNA formada por grandes matacões sobrepostos. Essa era a passagem secreta que segundo o Júlio e o Prince, nos levaria para o mundo de baixo, vencendo um desnível importante, que nos faria avançar sem ter que escalar grandes paredões ao nosso redor. No começo duvidei que fosse possível descer ali, primeiro porque nos pareceu ir além da nossa capacidade em dominar ambientes perigosos, do qual um simples escorregão, poderia significar um acidente grave, mas o Júlio tratou de mostrar que era possível e se enfiou no buraco, levando água gelada na cara e ao descer uns 2 metros ou 3 metros, conseguiu apoiar os pés numa pequena ranhura de pedra, até se pendurar e ir perdendo altura e ganhar novamente parte do leito do rio.

 

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Aquela ação, sem nenhuma proteção, me pareceu meio suicida e não tardei em protestar e pedir para que se instalasse uma corda de proteção ali e minha voz foi seguida com um coro de outras vozes, até que sacamos logo uma cordinha e na ponta dela, dois aventureiros fizeram a proteção. Me enfiei no buraco. Uma mão na corda e a outra caçando rocha para me segurar, num esforço tremendo, usando meu corpo para fazer atrito nas pedras, até alcançar algo que me desse sustentação e apoio para os pés e também baixei ao rio, reencontrando minha mochila, que havia sido passada sem mim, já que a porta do inferno era tão estreita que mal passava um homem magrelo.

 

Quando todos desceram, seguimos, mas como eu já havia dito, apesar do dia estar com um tempo muito bom, apesar das previsões de muita chuva, a água continuava um pouco fria, mesmo já beirando as duas da tarde e eu já começava a sofrer com isso. A sequência que se seguiu, foi de muitos poços e corredeiras e toda vez que a gente era obrigado a cair na água, eu nadava desesperadamente, tentando sair logo e mal respirava. Escalávamos as paredes laterais até quando dava e quando ela simplesmente se tornava quase uns noventa graus de inclinação, não tinha jeito, erámos automaticamente catapultados para dentro do rio profundo. Se por um lado isso se tornava algo muito divertido, por outro lado, era a hora do sofrimento com as baixas temperaturas dos lagos profundos. Eu tentava usar minhas habilidades de escalador meia boca o máximo que podia, mas a força da gravidade se encarregava de zoar com a minha cara e me jogava na água , só para ver o meu desespero, nadando feito um maluco .

 

Mas a gota d’água se deu pouco depois das três da tarde, quando a sequência de saltos para dentro do rio se tornou frequente. O rio não deu mais tréguas, era subir numa pedra e já se jogar e nessa hora eu fui definhando, de tal maneira que já não conseguia mais gerar calor. Aí já sabemos qual é a sequência dessa história, porque já fica difícil raciocinar, manter a concentração e cuidar da segurança. Fiquei amoado, não queria dar o braço a torcer, não queria ser o responsável por quebrar o ritmo que até então, era intenso e fui cada vez mais sofrendo com isso, tremendo de uma tal maneira que mal conseguia falar e já estava nadando com sofrimento e senti que já era o fim da linha para mim.

 

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Quando nos elevamos em mais uma rocha, avistamos do outro lado uma PRAINHA DE SEIXOS, junto a um lago de águas transparente. Era um lugar incrivelmente belo, um paraíso que se apresentava à nossa frente, como uma tábua de salvação que se apresenta para um naufrago. Quando vi que parte do grupo se dirigiu em direção a ela, já saquei que ali seria o lugar do nosso acampamento, então saltei pela última vez na agua aquele dia e meio capenga, nadei o mais rápido que consegui e quando meus pés tocaram as pedrinhas da praia, joguei minha mochila ao chão e cai sobre a quentura da rocha e lá fiquei por um bom tempo, deitado, recebendo o calor do sol, até que recobrei as energias e fui retirar a roupa molhada e vestir roupa seca.

 

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Não poderia haver lugar melhor para acampar. Uns 10 metros longe do rio e acima o suficiente para não ser pego por uma cabeça d’água, um terreno plano e cheio de grandes árvores, nos dava tranquilidade para fazermos daquele lugar, nossa casa por uma noite. Cada qual tratou de montar suas redes, conforme seus equipamentos. Como ainda era muito cedo, alguns trataram de colocar suas coisas para secar, enquanto outros já foram cuidar da janta, mas eu, assim que armei minha rede, tratei foi de me jogar para dentro do saco de dormir e tirar um cochilo e só lá para as cinco da tarde é que fui fazer algo para comer, mas aí já renovado. O Loures já fez logo um banquete junto com o Prince, mas eu também não me furtei em fazer uma janta encorpada e fiz questão de comer até não aguentar mais. De barriga cheia, ficamos no ACAMPAMENTO DA PRAINHA DE PEDRAS, apenas jogando conversa fora e vendo a vida passar sem compromisso algum, enquanto alguns outros malucos resolveram tomar banho, coisa que nem me passou pela cabeça, já que havia tomado 528 banhos ao longo do dia.

 

A noite foi maravilhosa e 12 horas de sono é capaz de renovar qualquer pessoa, muito porque, sabíamos que o dia seria de desafios intensos, que a nossa frente teríamos um terreno duro onde seríamos desafiados pela mãe natureza .

 

Estávamos ali, mais ou menos na cota 370 de altitude e logo de cara iríamos ter que desafiar uma garganta gigante. Atravessamos o rio logo pela manhã, antes das oito e isso é algo que nos traz um certo sofrimento, o de ter que se jogar na água fria tão cedo. A caminhada segue no mesmo ritmo de sempre, revezando travessias de rios, pulo em poço, escalando paredes laterais, varando algum matinho. Tudo corria conforme os protocolos, mas em um desses pequenos vara mato, afim de nos livrarmos de uma pequena garganta, mas que era impassável pela água, fomos tentar subir um barranco pela esquerda, sendo que o Júlio e o Potenza tomaram à frente, enquanto eu e o Loures nos mantínhamos atrás e abaixo deles. Era uma parede de quase 90 graus, onde a gente tinha que se valer das raízes para ganharmos altura. O Potenza ganhou uns 3 ou 4 metros da gente e num movimento rápido, deslocou uma pedra de mais de um quilo, que surpreendentemente, mais uma vez, veio a EXPLODIR bem na cabeça do Loures e depois chocou-se contra o meu ombro. O Loures ficou parado, olhos arregalados. Demorou um tempo para que ele dissesse algo e eu mesmo nem tive forças para falar nada na hora. Eu e o Loures nos olhamos e não teve como não nos vir a cabeça a tragédia de 2015, era como se o vale nos desse o recado, de que deveríamos nos apegar a segurança e por sorte, o Loures dessa vez, estava munido com um resistente capacete de escalada e não sofreu nada, só o susto e a lembrança de tempos difíceis passado no mundo da aventura.

 

Passado essa vara mato, voltamos ao rio bem encima da grande cachoeira, um gigante que se jogava vale abaixo, então tivemos que subir um grande barranco e começar a varar mato até atingir uma altitude considerável e descermos numa diagonal nos valendo de um afluente seco até nos vermos de volta ao rio, mas agora aos pés da grande queda d’água, hora de parar e apreciar essa grande obra da natureza.

 

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Ali estava ela, a grande CACHOIERA DOS TREZENTOS, que é como eu chamei ela desde os primeiros estudos há muitos anos atrás, por estar localizado mais ou menos na cota de altimetria dos 300 metros. É um gigante despencando num vale aberto, mostrando todo o poder desse rio, um volume de água avassalador que despenca abaulada, em um salto que tem seguramente mais de 50 metros de altura, mas que, do lado que estamos, nem é possível vê-la na sua totalidade. Largamos as mochilas e corremos para escalar suas grandes pedras e nos posicionarmos o mais perto possível da sua queda. O grupo estava frenético, em êxtase, por termos a consciência de estarmos em um lugar onde poucos tiveram a chance de estar e aproveitando o momento, tratamos logo de mandar um “CHUPA” para os amigos que desistiram e outros que desdenharam, uma brincadeira que fazemos com a galera que sempre nos acompanha nessas aventuras no coração da serra do Mar.

 

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Abaixo dessa queda, coisa de não mais que uns 10 minutos, o rio Capivari simplesmente resolve se espremer e se joga numa garganta incrível, fim da linha para a gente, o jeito foi retornar e tentar um vara mato pela direita, desviando de enormes blocos de pedras, abrindo caminho num mar de espinhos e pedras soltas até conseguimos sair em um afluente, onde uma cachoeirinha nos barrou a passagem.

 

Estávamos dentro de um vale e a nossa frente, uma parede nos barrava o caminho e vimos logo que nosso destino seria tentar descer o riacho para voltar ao rio Capivari, torcendo para que ele nos levasse bem abaixo do salto da garganta. O Júlio instalou a corda e desceram no exato lugar onde o vale começa, já eu e o Loures, aproveitamos a sobra da corda e baixamos ao fundo do vale um pouco mais à frente, mas ao descermos por uns 50 metros, fomos obrigados a nos valer novamente da corda para vencermos mais um degrau. Fomos desescalando, perdendo altitude e ouvindo cada vez mais perto o barulho do rio se jogando e em vinte minutos desembocamos justamente no GRANDE POCO, de onde uma CACHOEIRA de uns 20 metros emoldurava um lugar de sonhos.

 

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Aquela GARGANTA, sem dúvida, perfazia uma das coisas mais bonitas já vistas nesses rios paulistas e não tardou para os mais malucos escalarem uma grande pedra e saltarem de lá para dentro do poço profundo, mas é um salto ariscado porque uma correnteza pode levar o cara direto para um salto mais abaixo, onde a chance de sair vivo não é lá muito grande. Aliás, o Prince e o Júlio disseram que talvez fosse possível continuar seguinte, tentando desescalar a próxima cachoeira, mas numa análise mais apurada, decidimos que o risco não valeira a pena e poderíamos correr o risco de ficarmos emparedados, então nos reunimos para tomar uma decisão sobre a sequência daquela expedição.

 

É preciso abrir um parêntese : esse afluente que usamos pra chegar até essa GARGANTA, com certeza é o único caminho viável para se chegar até aqui, caso contrário, corre-se o risco de passar direto e não conseguir acessar essa parte do rio, mas por hora, também não nos pareceu ser possível mesmo, conseguir descer depois da garganta partindo do seu grande lago, então a única decisão para seguir com segurança, foi subir novamente pelo afluente até as suas cachoeirinhas e de lá empreender um vara mato na diagonal até atingir o final da garganta, uns 100 metros de desnível, mas antes disso acontecer, esteja preparado para tomar um surra do terreno.

 

Portando, abandonamos de vez a GRANDE GARGANTA DO CAPIVARI e voltamos a subir o afluente que havíamos pego para chegar até ali. Subimos de volta até as cachoeirinhas, onde instalamos novamente a cordinha para facilitar a subida até um degrau, onde poderíamos passar para o lado esquerdo do riacho, vencendo uma parede íngreme. A intenção era ganhar altura e depois empreender uma diagonal de volta até o rio mais a frente, nos livrando da garganta espremida. O planejamento era perfeito, mas faltou combinar com o terreno.

 

Nossa saga começa ali mesmo, na parede do outro lado do rio, onde teríamos que escalar e contornar imensos blocos de pedras. Nessa jornada de passagem, acabei ficando para trás e quando chegou a minha vez de escalar a parede, já não havia mais terreno para eu me segurar. Então me vi completamente perdido, sem lugar para apoiar as mãos, junto a uma parede que insistia em querer me jogar para o fundo do vale. Gritei para que alguém pudesse me jogar uma corda, mas todos já havia feito a curva atrás da pedra e não me ouviam mais. E para piorar, eu estava me apoiando numa pedra que não tardava em despencar e me levar junto com ela. Nessas horas a gente além de perder o chão, também perde o rumo, fica meio que vendido, meio que em transe, o medo vai tomando conta da gente, que fica ali, parado, inerte, na iminência de cair e não importa quantas vezes você tenha passado por isso. Tentei manter a calma, chutei a terra para que um buraco no barraco se abrisse e eu pudesse apoiar o pé esquerdo e tirar força do direito que se apoiava levemente sobre a rocha que ameaçava cair. Cravei a unha no barro da parede, já que hão havia nenhuma bromélia, raiz ou qualquer outra vegetação em que eu pudesse me segurar. Os dedos entraram na parede úmida e então botei o pé direito no mesmo instante em que retirei o esquerdo e avancei. A cara foi raspando no barro. Me mantive a noventa graus e quando me dei conta, já consegui me agarrar a um arremedo de raiz e me elevar para fora da via exposta, completamente abalado pela situação de risco em que me coloquei. Quando a gente conta, ninguém acredita, mas na Serra do Mar, você anda o tempo todo no fio da navalha e essa foi mais uma vez em que me perguntei se já não estava mesmo velho para ficar passando por isso.

 

Voltei a me juntar ao grupo, que não foram mesmo muito longes, já que o terreno simplesmente não deixava progredir. Começamos a subir degraus, quando deveríamos era descer, mas o terreno não nos deixava. Sem querer, fomos ganhando altitude, mas surpreendentemente, não progredíamos em direção a sequência do rio, só nos afastávamos dele. Paramos para conversar e analisar o terreno, já que outra parede que se anunciou, fez com que parte do grupo protestasse quanto a falta de segurança, onde pedras gigantes despencavam e ameaçavam atingir a cabeça de quem vinha atrás. Então foi preciso tomar uma decisão radical: Ou a gente ariscava descer aqueles degraus gigantes na cordinha ou corríamos o risco de não voltar mais para o rio naquele dia, mesmo porque, já havíamos chegado a parte da tarde.

 

Cada qual tentou achar um caminho de descida, mas o único que nos restou, foi tentar avançar por um vale, mas para lá chegar, tivemos que instalar a cordinha e fazer um RAPEL. Montamos os equipamentos e usamos uma fita e um freio ATC, mas infelizmente acabamos botando o cara mais robusto (gordo) para ir primeiro e o Alan Flórido desceu com a cordinha vagabunda chiando, como se fora estourar e arremessá-lo de uns 10 metros de altura sobre umas pedras perigosas. Agora com a cordinha mais comprometida ainda, descemos todos, cada qual implorando para o seu Deus, que não a deixasse arrebentar e os que não tinham a quem se apegar, apenas desceram resilientes de que a vida já havia valido a pena.

 

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Juntos, ganhamos a descida do vale, e fomos descendo em meio a uma vegetação caótica, entrelaçada com cipós e bambus, por onde um pequeno riacho que ia ganhando vida, até que uma grande rampa, nos devolveu ao Rio Capivari, mais ou menos na altimetria 250 e aí foi hora de abandonarmos tudo e nos jogarmos no rio, lavar a alma e comemorar mais essa passagem, agora com uma sensação de que aquele rio estaria prestes a ser vencido, mesmo que não fosse naquele dia, conforme planejamos.

 

O dia passou de pressa, a hora voou. Já passava das três e meia da tarde quando retomamos nossa descida e o ambiente não mudou em nada, continuávamos escalando pequenas paredes e nos lançando freneticamente nas corredeiras do rio, algumas vezes beirando cachoeirinhas potencialmente perigosas, onde a correnteza arrastava tudo, querendo nos jogar nos pequenos abismos. A temperatura havia melhorado muito e dessa eu vez eu não sofria com a temperatura da água, mas obviamente que todos estavam já cansados pela surra que o terreno nos deu naquele dia. Pouco antes das 17 horas, trombamos do que nos pareceu ser o local onde o explorador desapareceu em 2015, mas minha cabeça sofreu um bloqueio e sinceramente não consegui ter a certeza do local exato onde um teria seguido pela água e o outro teria subido o barranco para varar mato e nunca mais teria sido visto, desaparecendo para sempre.

 

Aquela cachoeirinha não me era estranha, muito porque, eu já havia botado os olhos nela vindo de baixo, nas ocasiões da tentativa de resgate. O grupo se adiantou, mas eu não pude seguir, fiquei ali, alguns minutos olhando para ela, olhar meio que perdido, como a me despedir daquele lugar, como a tentar exorcizar os fantasmas que me atormentaram durante muito tempo depois do ocorrido naquela tragédia de 2015. Talvez eu precisasse daquele momento, um último olhar, um último adeus, para poder seguir minha vida definitivamente e para isso, posicionei meu celular numa pedra e botei no time, para tirar uma última e derradeira foto.

 

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Apressei o passo para alcançar o grupo, que se adiantou e ao pular de uma pedra para outra, dei uma titubeada e escorreguei e despenquei de uns 2 metros, vindo a bater o joelho violentamente contra uma rocha. Fiquei lá, urrando por mais um minuto, até que sai do buraco onde estava e apressei a passada. Seguimos descendo o rio até depois das cinco da tarde, quando do lado esquerdo nos surgiu um lugar perfeito para montar acampamento. Estávamos exaustos, acabados fisicamente e sem muita conversa, cada qual foi tratar de encontrar 2 árvores para montar sua rede. Nessas horas sempre tem os espertinhos que pegam os melhores lugares, mas eu não fui um deles, fiquei meio amortizado, sentei-me ali, tirei minhas botas, a roupa molhada, coloquei roupas secas, belisquei alguma coisa e depois é que fui cuidar da minha vida.

 

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Naquela noite estávamos bem animados. Enquanto cozinhávamos, nos divertíamos, confraternizávamos, sabendo que nossa missão naquele rio estava prestes a ser cumprida. Nossa posição na altimetria era menor que 180, ou seja, o encontro do Capivari com o Branquinho não estava a mais que 100 metros de desnível, onde uma trilha nos esperava. Às 6 da manhã, estávamos em pé, mas só depois das sete foi que conseguimos partir. Botar a roupa molhada logo sedo chega a ser uma tortura, mas quando você lembra que já de cara terá que se jogar na água fria matutina, então apenas se conforma com o seu destino. E não é qualquer travessia de rio, é simplesmente um mergulho para dentro de uma correnteza que vai te arrastando até te jogar para dentro de um poço profundo e gelado, fazendo você nadar desesperadamente para voltar a se aquecer.

 

A caminhada vai alternando pulos na água e escalaminhada em grandes pedras, passando por algumas pequenas grutas e foi numa delas que a gente parou para ver o Júlio fazer seu show: Do nada, vimos quando o Júlio se embestou de onde estava, correndo freneticamente, pulando de rocha em rocha, até que se jogou para dentro de uma gruta escura, por onde o rio corria por baixo. Eu particularmente não entendi foi nada, fiquei vendido, só acompanhando com os olhos e sem saber no que daria aquela maluquice, até que vimos o doido sair de lá com uma serpente nas mãos.

 

O desgraçado sorria, num tom meio sarcástico, feliz por ter agarrado aquela cobra e eu com os olhos arregalados, me perguntando porque aquele “cretino” foi pegar uma jararaca, animal que eu só faço correr e passar longe depois que fui picado por uma há mais de uma década atrás.

 

- Calma Diva, é apenas uma falsa jararaca, segura aqui para você ver.

 

- Foda-se, sai pra lá com essa porra dessa cobra.

 

Não dava para negar, era um animal extremamente bonito e as características não deixavam dúvidas que era uma FALSA JARARACA, mas meu mecanismo de defesa achou melhor ignorar essa informação, melhor apreciar de longe, mas iria chegar a hora para curar esse trauma que me acompanha por todos esses anos.

 

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O rio se aplainou de vez, a tal ponto que o caminhar ficou suave e desimpedido, mesmo que a gente ainda continuasse a se jogar nas pequenas correntezas, mas agora muito mais por diversão do que por necessidade e antes das dez da manhã, chegamos à GRANDE ILHA DO RIO, ainda que houvesse outras, mas essa era uma marcante, tanto pelos acontecimentos passados, quanto pelo que viria a acontecer em instantes.

 

Antes da tragédia de 2015, parte do grupo fez uma tentativa de descer o Capivari. O grupo pouco viu do rio e acabou varando muito mato na época, inclusive o Prince e o Loures estiveram naquela primeira expedição, juntamente com o explorador que viria a desaparecer em 2015. Na ocasião, eles passaram pelo lado direito da ILHA e numa tentativa de cruzar um braço do rio, o Loures e o explorador, acabaram caindo numa tormenta e despencaram para dentro de um refluxo e foram cuspidos pelo rio, tomaram um susto, mas saíram são e salvos daquela vez e agora, o Loures tomou a decisão de tentar repetir a descida, só que dessa vez irai se jogar de propósito.

 

Cada qual como pode, tomou o seu assento. Eu me posicionei bem à frente da fenda, bem onde o rio se jogava. Ficamos na expectativa de saber no que aquela maluquice do Loures iria dar. Uma coisa era cair uma vez, outra coisa era entrar naquele turbilhão de água de propósito, mas enfim, nos preparamos para acompanhar o show.

 

O Loures de capacete, colete, perneiras e luvas, agarrou na sua mochila estanque e só fez deixar que a força brutal da agua se encarregasse de lhe arrastar e lhe jogar de cima da cachoeirinha. Foi uma bela queda, bateu e subiu rapidinho e sem deixar com que a mochila lhe escapasse, surfou encima dela, corredeira à baixo, até que conseguiu voltar para a margem, sobre o aplauso de todos os presentes.

 

O show não terminou, novos artistas se prontificaram a continuar, por isso , também continuei sentado no mesmo lugar, pena não ter uma pipoquinha para acompanhar. O Prince logo se posicionou. Ele era um dos que estavam também quando o Loures caiu acidentalmente, mas agora iria testar a sensação de se jogar propositadamente. Subiu mais acima do rio e se jogou. Rodopiou, caiu e foi engolido pela torrente e demorou uma eternidade para subir e quando emergiu, agarrou-se como pode na sua mochila, mas não saia do lugar, ficou girando perigosamente, desesperadamente, até que o Loures, que acompanhava tudo bem de pertinho, conseguiu agarrar a mão dele e os dois foram parar na correnteza, que os arrastou rio abaixo, enquanto a galera gritava freneticamente, como a saudar o pica-pau descendo as Cataratas do Niágara num barril. ( hahahahahha)

 

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O Prince se lascou todo, emergiu cheio de hematomas, mas não deu nem tempo de contar isso para ninguém, muito porque, mais um trouxa ( opssss corajoso)se posicionou. Mas dessa vez, além de estar sem os equipamentos de segurança, ainda se deu ao disparate de tentar descer sem a mochila estanque que obviamente, serviria de uma boia para poder jogá-lo de volta para a superfície. Na verdade, ele levou a mochila, mas jogou-a na água e saltou no rio e o resto foi história. Afundou e virou passageiro numa máquina de levar, foi debulhado, triturados, esfolado, um boneco a serviço das forças da natureza. Quando subiu , não se deu conta, talvez pela adrenalina do momento, tentou resgatar sua mochila, mas desistiu e se deixou levar pela correnteza até poder voltar onde estávamos e constatar que os deuses das profundezas haviam zuado com ele, estava trucidado, cheio de machucados e hematomas em todo o corpo e essa foi a primeira vez que vimos o Júlio fora de combate. Mas ficou o aprendizado, de que equipamento de segurança sempre vão ajudar, tanto que o Loures saiu intacto, enquanto o Prince e o Júlio foram moídos pelo rio. Para o Júlio ao menos sobrou a honra de batizar o salto, que ele felizmente chamou de FENDA DE HADES, em homenagem ao Deus do submundo, para onde vão as almas dos mortos na mitologia grega .

 

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Findado a brincadeira, foi hora de quase todos se jogarem na correnteza abaixo da fenda e se deixar levar pelo rio, caindo em lagos calmos. O rio aplainou de vez e quando dava, usávamos as margens para ganharmos terreno ou mesmo cruzando por dentro de ilhas até que às 11: 30 da manhã, interceptamos o RIO BRANQUINHO, com águas extremamente transparentes, fazendo jus ao nome. É um encontro maravilhoso, uma amplitude linda de ver.

 

Ali é onde finda o RIO CAPIVARI, é onde ele encontra com o Branquinho e vai dar vida ao GRANDE RIO BRANCO. A gente estava extremamente feliz e eu estava radiante por essa conquista especial, mesmo que ainda faltasse umas 2 horas de caminhada até a tribo. Senti como se uma tonelada fosse tirada das minhas costas, era algo que eu precisava riscar da minha vida, por tudo que aconteceu no passado. E ali, no encontro dos rios, juntamos todo os 6 integrantes do grupo e tiramos uma última foto juntos, para marcar mais essa conquista e botar definitivamente nossos nomes na história das expedições na Serra do Mar Paulista.

 

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E por que dessa última foto, se ainda faltavam 2 horas para terminarmos definitivamente essa travessia? É que esse encontro dos rios, marca duas possibilidades para se voltar à civilização: Subindo o Rio Branquinho e consequentemente um morro enorme, pode-se acessar novamente a Estrada de Ferro e caminhando por uns 10 km, voltar ao bairro da Represa, onde se pode pegar um ônibus de volta para São Paulo. Essa é uma opção duríssima e cansativa, mais muito mais barata porque não tem que descer até o litoral e voltar a subir a serra. Já a outra opção, apesar de mais fácil, é preciso contar com a sorte de, ao chegar na tribo indígena, conseguir um carro que te leve ao litoral de Itanhaém, onde tem que pegar um ônibus para São Paulo.

 

Acontece que o Prince mora perto da Estrada de Ferro e o Loures havia deixado seu carro na casa dele , então os dois resolveram que o melhor era subir para a linha do trem. Poderíamos subir todos, mas o Júlio ficou muito machucado depois de cair na Fenda de Hades e ainda tinha o caso do Florido e do Potenza que não conheciam a tribo e faziam questão de passar lá. Então nos despedimos do Prince e do Loures e cada qual foi se perder numa direção, os 2 subindo o Branquinho e nós 4, atravessamos a foz do Capivari e interceptamos a trilha indígena do outro lado, onde uma placa avisa que estamos entrando em reserva protegida.

 

A trilha é plana e irá atravessar uma dezena de afluentes do Rio Branco, que vai estar sempre a nossa esquerda, mas não andamos nem 200 metros e a abandonamos em favor de uma picada que nos levará ao GRANDE POÇO, bem na primeira curva do rio, um lugar deslumbrante, onde a gente fez uma parada para um lanche mais demorado, mesmo porque, o dia já ia pela metade e ainda não tínhamos almoçado.

 

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Depois de vários mergulhos, resolvemos nos adiantar e então retomamos a trilha principal e metemos marcha a todo vapor, mas não se passou nem uma hora, quando o Júlio resolveu aprontar novamente. Pulou no mato e saiu de lá com uma COBRA GIGANTE nas mãos. Era um exemplar lindíssimo de uma CANINÃNA. Mesmo com medo, apesar de saber que é uma serpente sem peçonha e inofensiva, dessa vez tinha que curar essa minha fobia e fiz questão de segurá-la , mesmo que com a supervisão do Júlio, que até deixou a cobra picá-lo , pra mostrar que não tinha perigo algum, mas é um exemplo que não deve ser seguido por ninguém , porque cobras devem ser deixadas em paz.

 

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Pois não passou meia hora e já tivemos mais um encontro com outra cobra, dessa vez um legítimo filhote de jararaca e esse, eu não quis nem graça. Passamos por um grande pé de laranja, onde no passado encontrei uma grande Anta, até que duas horas depois, desde que deixamos o Capivari, atravessamos o último afluente, já perto das malocas dos índios. Ficamos muito apreensivos, já que fazia muitos anos que eu não me encontrava com meu amigo VERA TUPÃ, uma espécie de líder ancião da TRIBO RIO BRANCO, o único índio a morar desse lado do rio.

 

A casa dele estava vazia, mas logo chegamos à outra casa, cercada por dezenas de palmeiras Jussara. Batemos palma e lá veio ele. Baixinho, cara de índio mesmo. Diz ele ter quase 90 anos, mas não precisa nem se esforçar muito para ver que pouco passa dos 70, porque ele mesmo se contradiz nas conversas. Sentamos sobre a área de sua habitação e nos pomos a conversar sobre causos antigos. Seu Vera Tupã é dos nossos, carrega o bom humor e o sarcasmo na alma. Perguntei como a tribo estava em tempos de pandemia e ele com a cara meio triste, nos disse que a coisa estava feia, que não estavam podendo comer nem suas mulheres. Depois, levantou a cabeça e disse que comer, só as mulheres dos outros, e então soltou uma gargalhada que ecoou por toda a tribo. ( rsrsrsrsrsrsrssr)

 

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A situação econômica da tribo nos pareceu um pouco melhor do que havíamos encontrado anos atrás, mas o seu Vera ainda nos pareceu viver com muitas dificuldades e como não havíamos tido tempo de comprar um presente, deixei um bom dinheiro para que ele pudesse comprar algo, mesmo que ele não tenha pedido. Ele nos informou que havia um índio com uma VAN fazendo o trajeto até o litoral, coisa que nos deixou muito contentes, porque o lugar até onde se pode pegar um ônibus está há mais de 5 horas de caminhada, numa estradinha para lá de enfadonha.

 

Nos despedimos do nosso amigo índio e atravessamos o Rio Branco para outra margem, mas antes de adentrar de vez na tribo, paramos para um último banho demorado, uma despedida glamorosa num dos mais belos rios do Estado.

 

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A tribo também não mudou muito, talvez tenha aumentado algumas casas. Logo alguns curumins atravessam o nosso caminho pedindo doces, mas nós já não temos mais nada de comida. Exatamente 20 anos atrás, quando estive por aqui, numa travessia, encontrei índias que ainda viviam seminuas e curumins que só falavam guarani. Encontramos o índio dono do transporte e combinamos a viagem até o litoral. Quando a Van passou na entrada da Cachoeira dos 3 Tombos, surpreendentemente, encontramos um grupo de amigos que havia feito a Travessia do Rio Branquinho e aí foi aquela festa quando eles também vieram à bordo e a farra se estendeu até Itanhaém, onde pegamos o ônibus para São Paulo e cada qual foi para um canto da região metropolitana e eu peguei o caminho da roça, chegando ao interior Paulista só na madruga.

 

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No meio da expedição, Paulo Potenza me disse que aquela travessia era VALENDO A VIDA a todo momento e eu voltei com isso na cabeça, um jeito simples de dizer que havia perigos o tempo todo, sempre caminhávamos no fio da navalha. Mas isso a gente já sabia, toda travessia selvagem na Serra do Mar Paulista, o risco que se corre é gigantesco, tanto que naquele mesmo rio, a gente já tinha perdido um amigo. Mas a minha concepção de “ valendo a vida “ era outra, era como se precisássemos voltar ali naquele lugar, exorcizar todos nossos fantasmas, para que a própria vida voltasse a fluir normalmente. Era preciso destravar, era preciso enterrar de vez aquela história que nos atormentou por tantos anos. Juntamos um grupo excelente, mesclado com exploradores do passado e do presente, mais do que isso, um grupo de amigos, que atravessou de um lado e saiu do outro como uma família e é isso que verdadeiramente faz a VIDA VALER A PENA e agora o Vale do Capivari é passado, é história.

 

 

 

 

 

òtimo relato!

  • Amei! 1
  • 3 meses depois...

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