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ARGENTINA: NÃO SE ESQUEÇAM DE...

 

Edmilson Vieira

 

Em Buenos Aires no ano de 2004 aconteceu uma tragédia com repercussão

mundial. Deixaram entrar num recinto fechado, 4 mil pessoas para o show de

uma banda de rock. Um fã teve a idéia de soltar fogos de artifício. Fez

ligação com o fósforo e começou a girar e democratizar a chuva de fogo com a

multidão. As faíscas se juntaram ao teto altamente inflamável e ensinaram

pela segunda vez à sociedade argentina, que ali não era a Europa imaginada.

A primeira decepção foi na Guerra das Malvinas, aquele conflito inventado

por um militar em fim de carreira e de regime.

 

O ingrediente do horror foi o mesmo que destruiu Tróia. O cavalo de pau,

neste caso, o artefato pirotécnico entrou pela porta sem ser proibido pelos

seguranças. As saídas de emergência estavam trancadas e foi um salve-se quem

puder. Querer viver e não ter condições. Imagine o sofrimento do público

para fugir do fogo e da fumaça. Formou-se competição para chegar à calçada,

passando por uma única porta estreita. Morreu gente pisada, sufocada. 194

corpos espalhados na rua e imensa quantidade de feridos nos hospitais, entre

a vida e a morte. A população tomada de dor e revolta. A vida na sua

essência deixou de ter valor naquela noite de 30 de dezembro...

 

O tempo passou em Cromañon e todo mês têm passeata até a casa do governo.

Carregam uma reivindicação concreta: justiça. Desde a época do acontecimento

os familiares se revezam e ficam em vigília 24 horas por dia nesse local.

Esticaram arames com dois metros de altura e coloriram o lugar pendurando os

tênis dos mortos. Querem lembrar os passos desesperados daquelas vítimas que

procuravam vida a todo custo. Acreditam que para sempre estarão caminhando

por cima de todos. Recentemente fizeram uma geometria de fotos na parede. O

que era guerra, agora tem plantas para lembrar que eles estavam na flor da

idade, com uma média de 18 anos.

 

A nossa chegada nesse espaço foi às 11 horas da noite. Estava com dois

brasileiros hospedados no mesmo hotel. Sentir o clima e a dimensão do

ocorrido foi um golpe interior. Os familiares e sobreviventes dizem que a

fatia de culpa está coberta pela impunidade. Falam que a justiça fingiu

que puniu e só prendeu uma pessoa, prejudicando a democracia argentina.

 

Descobrir Cromañon é mostrar a si mesmo o resultado do que foi um país onde

os militares truculentos operaram na surdina para entregar a riqueza ao

capital estrangeiro; para sucatear o serviço público que em outras épocas

poderia ter fiscalizado esse local, e para completar a façanha no país, os verde-oliva, na calada da noite mataram 25 mil cérebros com

intenção de tornar o povo escravo e alienado feito boa parte dos brasileiros. E por aí

vai...

 

Parece que assumir Cromañon é lutar contra a injustiça e desvincular a

Argentina do sonho europeu de viver, ou pelo menos que fiquem com a

aparência por lá, mas com um pé ou 194 tênis na América Latina.

 

 

Edmilson Vieira é artista plástico e cronista. dnv01@uol.com.br

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