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Quase morri na Bolívia

 

Existem algumas coisas que as pessoas consideram completamente insanas e eu, ainda não sei porque, considero natural como o nascer do sol. Uma dessas era que deveria viajar. Ainda no meu trabalho fui surpreendido por um colega vendo fotos de uma viagem de moto até a Patagônia. Ele achou um absurdo quando disse que gostaria de fazer a mesma coisa. Alguns dias depois voltava para aquela sala de escritório no vigésimo sétimo andar para assinar minha demissão. O mesmo colega, quando me viu, perguntou:

-Ei, voce veio assinar a demissão? Achei que estava no Chile.

Saí dali, comprei uma mochila, uma barraca e uma lanterna e fui para Monte Verde. Não importava que nunca havia armado uma barraca na vida. Se bem que eu havia feito uma tentativa, mas meu quarto na república em que morava não comportava o espaço da barraca para duas pessoas e acabei levando a incerteza da capacidade daquela tarefa. Era assim que eu constumava agir: levava a incerteza da capacidade das tarefas ao invés de me preparar. Eu preferia dizer que nascera preparado, mas era apenas da boca pra fora.

Andei alguns quilómetros pelas serras dos Brasil como quem procura algo por todos os cantos e esquece de checar sob cama. Chequei em tudo quanto foi lugar, até no tecido adiposo sub cultâneo e nada. Quando me dei conta estava indo para a Bolívia jurando que havia deixado lá.

-Mas se voce nunca saiu do Brasil, como pode ter deixado lá?

Eu tinha sonhos tão complexos quanto um pequeno burguês. Índias nuas dormindo na minha barraca sob luares hipnotizantes e os Andes sob meus pés eram os pensamentos que carregava na garupa da moto ainda perto de São Paulo.

A primeira parada era em Campo Grande, local que havia visitado alguns meses antes. Andar mil quilómetros de uma vez só não se mostrava uma boa estratégia, mas eu corria todos os riscos possíveis. Na minha cabeça chegaria em La Paz tres dias depois de ter saído de São Paulo, dormindo em Campo Grande, em Santa Cruz de La Sierra e, enfim, na capital boliviana. No caminho eu sabia que não ia dar certo, mas continuava. Não tinha a menor idéia do que estava fazendo.

Para chegar em Campo Grande pegara estrada à noite, o que é o exato contrário da regra mais importante dos viajantes de moto. Cheguei cansado e acabei adaptando meus planos, deixando o dia seguinte para descanso, para retomar o caminho apenas na sexta-feira. A companhia em Campo Grande era agradável, o que ajudava. Porém, dali pra frente eu não sabia o que me esperava e o que imaginava se distanciava muito da realidade.

Saí muito cedo de Campo Grande com destino a Santa Cruz e logo tomei o primeiro susto. Em algum lugar que não tenho a menor idéia do nome, a estrada é cheio de rotatórias em que se tem que reduzir a velocidade. Porém eu ia quase no limite. Em alguma delas eu peguei uma mancha de óleo. A moto já estava quase de lado quando, num reflexo, bati o pé esquerdo no chão, sendo devolvido a posição de equilíbrio. Ufa!

Viagens de moto são cansativas, tanto fisicamente como emocionalmente. Eu pretendia passar mais de dez horas sentado ali, naquele banco, porém eu não havia me preparado para o tédio. Quando se anda de moto por horas, nem estamos prestando atenção na estrada nem em outra coisa, de maneira que os pontos de referências no caminho ficam relacionados com os pensamentos que temos na hora em que passamos por eles. Assim uma base policial me fez lembrar de quando quebrei a perna e um restaurante a beira da estrada me lembrou o SESC Interlagos.

Depois comecei a cantar, o que me levou a crer que a pior desvantagem de uma moto para um carro não é a chuva ou o banco, mas a falta de um rádio. Então, para compensar minha imaginação limitada que só conseguia pensar em duas ou tres músicas, passei a investir em verdadeiras performances enquanto cantava Paralamas ou Legião. O som abafado pelo capacete fechado fica realmente intenso com um "quando o sol bater na janela do teu quarto" bem gritado.

Logo cheguei aos bloqueios na estrada. No primeiro perdi a passagem por alguns minutos. Por conta de uma reforma a pista fica aberta apenas em um sentido. Cada intervalo demorava cerca de meia hora nessa primeira. Mas, quem é o burro que resolve reformar dez quilómetros de pista de uma só vez? E se eu passasse pelo bloqueio imporvisado com uma periguete responsável pela operação? Fiquei torrando no sol por meia hora pensando nisso e, logo após começar a andar um posto da polícia federal deu a entender que seria burrisse. As armadilhas da estrada.

Cerca de meio dia cheguei a Corumbá, a última fronteira. Eu nunca havia saído do Brasil e estava um tanto emocionado, porém como minha primeira vez seria logo com a Bolívia, a desconfiança era maior.

Parei no primeiro posto que vi para almoçar na tentativa de adiar ao máximo uma refeição do outro lado da fronteira. Ainda aproveitei para ver o Brasil perder da Holanda. O resultado do jogo era tão importante para mim quanto para um astronauta numa estação espacial.

Na fronteira eu ainda não tinha a menor idéia de quais papéis deveria pegar, carimbar, se deveria pagar proprina ou se estava tudo certo. Resolvi tudo, troquei alguns pesos por ali mesmo e resolvi pegar a estrada. Era umas tres da tarde e eu queria chegar a Santa Cruz de La Sierra ainda naquele dia. Nem precisa abrir o Google Maps pra saber que era uma burrisse que beirava a inocência. Aliás, abra o Google Maps, por favor. Pede o caminho que vai de Campo Grande a Santa Cruz. O caminho que o Google dá não é o que eu fiz, mas pelo Paraguai. É que na verdade por ali não tem bem uma estrada, é mais um caminho. É tudo de terra e quando chove é preciso cruzar os rios, pois se não há estrada não há pontes. Aliás, se não há estrada, não há postos de gasolina, muito menos hotéis. Sabe o que tem de monte? Plantação de coca e traficantes. Sair às tres da tarde era uma burrisse sem tamanho.

Eu estava na estrada. Achava engraçado as placas diferentes, escritas em espanhol. O sol brilhava. Por conta da demora na fronteira eu estava de camiseta, sem a jaqueta que protegeria de algum acidente. Mas que acidente porra nenhuma, eu queria era respirar liberdade.

Logo veio uma placa: Plaza de pedágio: 1km. Aqui também deve ter um monte disso. Espero que seja barato, pelo menos.

Andei bem mais de um quilómetro sem ver nenhuma cancela e fiquei pensando se a causa era uma decisão do Evo ou dos narcotraficantes. Depois avistei bem na frente uma casa na beira da estrada que parecia um boteco. Queria ver se vendia gasolina, por em Puerto Qujaro é proíbida a venda para veículos com placas brasileiras. Nem estava tão rápido, cerca de noventa por hora. Não consegui entender o que era aquilo com umas cadeiras e uma mesa para fora. Passava exatamente pela frente da casa de madeira direto quando senti algo no meu peito. Olhei para a esquerda e vi que havia um poste de madeira, como de varal, segurando um fio, e era esse fio que eu havia sentido. No curto instante de tempo que se seguiu eu não fui capaz de concluir que deveria parar. Ao invés disso, a lógica era de que logo o fio, que interpretei como sendo uma corda de pipa, seria cortado pela velocidade em que eu estava. Ledo engando. Era um cabo de aço. Apenas senti o fio esticando e fui puxado para trás, sendo derrubado da moto e caindo de costa no chão. Apaguei.

Quando abri os olhos vi o céu azul, sem nenhuma nuvem. Durante o inverno na Bolivia o céu é sempre assim, limpo, azul. Senti o asfalto quente nas minhas costas. Eu acho que a única maneira de ficar deitado no asfalto quente é sofrendo um acidente. Que droga, por que eu não estava com a minha jaqueta?

Essa não era a pergunta correta a se fazer. Eu não precisaria de nenhuma jaqueta se eu não tivesse sido puxado por um cabo de aço pelo pescoço à noventa por hora. Por que eu fui puxado por um cabo de aço? Acho que essa era a pergunta correta. Levantei e vi um boliviano correndo em minha diração. Vi estrelinhas e achei que ia apagar denovo. Respirava com dificuldade. Corri do boliviano, devagar o suficiente pra não apagar, rápido o suficiente pra fugir de um ladrão.

Achei que iam roubar a minha moto e corri em direção a ela. Estava jogada no meio do mato vários metros a frente. Porra, eu tenho que chegar até Santa Cruz ainda hoje. Não posso ficar sofrendo acidentes assim.

Tentei tirar a moto dali mas ela estrava presa no mato. Voltei pra estrada e o boliviano que corria atrás de mim falou qualquer coisa que não entendi. Parou um caminhão e tiramos a moto dali. Após algumas tentativas ela ligou. Estava um pouco torta mas acho que poderia seguir caminho.

Eu estava adrenado. Voltei até a casinha que parecia boteco e que na verdade era o pedágio. O cabo de aço era pra evitar que passassem sem pagar. Não é que essa porra funciona mesmo?

A adrelina começou a ceder. Eu percebi que minha vista estava avermelhada. Sangue. Pelo espelho restrovisor quebrado pude ver que estava mal. Logo meu pescoço começou a dar dicas que o acidente havia sido feito. Mal conseguia virar. Os bolivianos me avisaram que eu não poderia seguir pois uma ambulância fora chamada. Eu já havia desistido.

Logo chegou uma viatura da polícia. Acho que ambulância deve significar viatura em espanhol. Eu deveria seguir para o hospital na viatura e o outro policial levaria minha moto para o mesmo destino enquanto eu estivesse sendo atendido. Enquanto saia da cena do acidente, fiz grande esforço com o pescoço dolorido para poder olhar pelo retrovisor da viatura a moto, sentindo que a veria pela última vez.

No hospital fui suturado por uma jovem médica. Ela parecia que sabia o que estava fazendo e ganharia minha confiança não fosse pelo fato que durante todo o procedimento seu celular tocava Shakira bem alto, pendurado no seu pescoço, no meu ouvido.

Pode ser que um dia a Shakira venha para o Brasil, eu a encontre e acabemos trepando. Eu só lembrarei do moderno sistema anti-fraude do pedágio boliviano.

O policial que me acompanhou pediu todos os meus documentos. Todos. Não tinha escolha e entreguei. Logo após o procedimento pedi para que o chamassem para saber se minha moto já havia chegado. O policial havia ido embora. Eu já pensava na minha volta pra São Paulo, de ônibus, com o rabo entre as pernas. Não sem antes tentar de tudo.

Não sei bem porque acabei conversando com o motorista da ambulância. Deve ser pelo fato que todos estavam curiosos acerca do brasileiro burro que não sabia como funciona um pedágio. Eles deviam pensar: será que não existe pedágio no Brasil?

O tal motorista era o único que entendi meu portunhol ainda prematuro. Disse a ele que se encontrasse a moto eu lhe daria dinheiro. Ele sorriu quando abri a carteira e dei alguma coisa pra motivar a busca.

Em poucos minutos voltou com uma notícia boa. Os policiais estavam com a moto e me devolveriam, mas só na manhã seguinte, pois queriam falar comigo. Ele também me disse que eu precisaria pagar mil reais para reavê-la.

Opa, claro. Mil reias? Só se for agora. Ele estranhou, mas quanto lhe ofereci mais algumas notas ele saiu para chamar um enfermeiro que tirasse o soro. Não precisava do enfermeiro já que eu mesmo arranquei o soro.

Fui de ambulância até a delegacia, onde encontrei minha moto. Peguei a corrente do baú e prendi ela num posto. Ninguém tiraria ela dali.

As fardas dos policiais pareciam as daquelas tropas dos programas do Didi. Eu estava cheio de sangue seco numa camiseta do Che Guevara rasgada. Sete pontos no pescoço e dois no supercílio. Mal conseguia mover o pescoço e os braços e os policiais queriam mil reias. O responsável por me falar que tinha que dar dinheiro pra pegar a moto acabou sendo o motorista da ambulância. Eu respondi em alto e bom som: Não vou dar nenhum dinheiro a ninguém. E não saio daqui sem a minha moto. Se preciso, durmo abraçado nela.

Me fizeram esperar. Eu precisava falar com o coronel. Eu esperava por alguém no estilo do sargento pincel, e não fui desapontado. O bigode do cara lembrava o Leôncio. Ele me chamou pra uma sala com poltronas e senti que não sairia dali vivo. Ele pegou todos os documentos e disse que faltava um. O tal do documento de trânsito.

Esse relato não tem como objetivo informar ninguém sobre preços, caminhos, dicas ou coisas do tipo. Mas, se numa situação semelhante lhe pedirem o documento de trânsito, não vá pensar que esqueceu de algo. Ele não existe e serve apenas como pretexto para proprina.

Nessa hora fiquei nervoso. Levantei da poltrona e disse que não existia porra de documento de trânsito e que tudo que precisava estava ali. Ele murmurou que no país dele quem ditava as regras era ele. Eu respondi que ele estava certo. Então dormiria ali mesmo, abraçado à moto, e no dia seguinte entraria em contato com a embaixada para providenciar o documento de trânsito.

Ele olhou bem pra mim, e notou que, devido ao meu estresse o pescoço havia recomeçado a sangrar. Entregou a chave da moto e os documentos e me disse para ir embora.

Voltei ao hospital de dei mais um dinheiro ao motorista da ambulância. Finamente poderia descansar. Veio então o enfermeiro e me pediu cinqueta pesos para recolocar o soro. O motorista da ambulância deve ter falado que ganhou dinheiro e ele queria se aproveitar do gringo brasileiro.

O problema não era pagar pra ter o soro, mas o que poderia ter no soro. Levatei da maca, peguei a mochila decidido que voltaria ao Brasil naquele instante. Um monte de gente tentou me impedir, não sei se por prudência ou na esperança de arrancar algum dinheiro. A moto tinha o baú solto, o alforje rasgado, mas minha caixa de ferramentas deu jeito. Sem farol e com a moto torta andei uns quarenta quilómetros até Corumbá, sentindo um vento frio que parecia que entrava nos meus pulmões pelo corte no pescoço. Na primeiro hotel que vi, parei a moto e chamei o garoto que carrega malas com um gesto que parecia ter saído de "Onde os Fracos Não Têm Vez".

Pedi que guardasse a moto e a bagagem e chamasse um taxi. Segui para um hospital e só voltei no dia seguinte para pegar a mala e voltar a Campo Grande.

Quinze dias depois estava novamente em Corumbá. Ainda não para pegar a moto, mas apenas de passagem. Já sem os pontos no pescoço eu voltaria a Quijaro para pegar o trem da morte e seguir para La Paz. A viagem estava apenas começando.

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Qnd eu acho q li ou ouvi boas histórias, venho aki e sigo me surpreendendo... Nossa q começo de trip... vou acompanhando seus posts e para saber como as coisas aconteceram... Gostei da frase da sua assinatura e dos 'links' q vc faz contando seu relato....

 

Inté mais!

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Davi, eu sempre me supreendo com as tuas narrativas. Essa, está fantástica, apesar da situação pouco confortavel vivida.

Espero que esta sua viagem guarde aventuras menos arriscadas, porém tao interessantes quanto de se ler.

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Caraca....arrepiante......história digna de Alexander Supertramp...Into The Wild (Na Natureza Selvagem).....chocante, sensacional, sinistra, belo relato.

 

Só falta a relato final de sua trip......que deve ter sido bem mais calma no trem da morte e os outros lugares.

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