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Ponte ameaça sítios arqueológicos na Amazônia


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Os arqueólogos caminham olhando para o chão. Um olha o que para mim é uma pedra. Exclama: "cerâmica!" O chão é tomado por cerâmicas. De todos os tipos, decoradas. O que eram pedras, agora torna-se fragmentos de civilizações. Sob os nossos pés, a terra é preta. Eduardo Neves apresenta o sitio arqueológico do Laguinho como se falasse de seu bairro. Aponta o centro da aldeia, onde ficava as casas, a parte onde atracavam os barcos, faz imaginar um complexo universo social. Na trilha sobre a qual caminhamos, ele diz: "aqui embaixo era uma paliçada. Ano 1000, 1100 depois de cristo. Foi construída para a defesa da cidade."

 

Fonte: Terra Magazine por Felipe Milanez

 

A sociedade que habitou o Laguinho e construiu a muralha, seja a cultura que os arqueólogos chamam de Paredão (séculos 7 a 12) ou Guarita (séculos 10 a 16), pode se preparar para uma nova invasão de suas terras. Talvez, até refazer a muralha de paliçadas.

 

Com a construção da ponte sobre o rio Negro, que liga Manaus a Iranduba e terá 3.505 metros de comprimento, a pressão sobre os mais de 200 sítios arqueológicos da área vai causar destruição de boa parte deles, que deverão ficar soterrados de baixo de condomínios ou de planos de agronegócio. A inauguração estava prevista para outubro - mas pelo vão que se nota e que falta ser construído, ainda pode levar mais uns meses. Não houve um plano satisfatório para a preservação dos sítios - e a obra teve que ser embargada algumas vezes pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Sempre, na sequência, liberada, sem que as medidas fossem satisfatórias para a preservação do patrimônio arqueológico.

 

"Para a arqueologia, a ponte vai ser uma catástrofe", diz Eduardo Neves, professor da Universidade de São Paulo.

 

"Montículos de terra", ele diz, e fico pensando no que é isso. Pequenas elevações, como um morrinho que se eleva da terra plana onde caminhamos. A nossa frente, uma pequena elevação. Na subida, uma linda cerâmica, padrão Guarita. Rodrigo Baleia, o fotografo parceiro, se fascina com a peça. Mais adiante, chegamos a um barranco.

 

A vista daqui de cima é linda. Vejo a várzea do Solimões. Lagos de águas negras abaixo - que dão nome ao sitio. Penso nas descrições da sociedade que vivia aqui, acompanhando as explicações de Neves. Imagino um grande chefe sentado aqui, tendo a mesma vista. Fim de tarde, a floresta linda e verdejante se estendendo ao horizonte, entrecortada por faixas de água. Brisa.

 

"Educação é essencial. Arqueologia é pública. Educação é tão importante quanto a pesquisa na academia", diz Neves, partilhando a vista comigo.

 

Os sítios estão nas áreas mais férteis - e são mais férteis justamente por se encontrarem sobre uma área de ocupação humana antiga, das terras pretas. Isso, logicamente, atrai a agricultura.

 

Muitos sítios estão também nas áreas mais bonitas. Partes altas, com vistas. Eram as preferidas pelos antigos povos que habitavam a região. E também são aquelas preferidas dos condomínios.

 

"Os sítios vão ser destruídos. São 170 deles", lamenta Neves. "E são tantos que é até difícil pensar em um roteiro turístico que desse conta."

 

A platéia que nos acompanha assiste e lamenta. Aqui estão os grandes arqueólogos da Amazônia, recém saídos de um encontro de arqueologia que durou a última semana em Manaus, o II Encontro Internacional de Arqueologia Amazônica.

 

Clássicos como Alceu Ranzi, que descobriu os geoglifos no Acre.

 

Ana Roosevelt, que comprovou a ocupação de uma grande sociedade, complexa e sofisticada, na Ilha do Marajó - derrubando o mito de que na Amazônia o meio ambiente não permitiria existir sociedades complexas.

 

William Ballée, que mostrou como a floresta é formada pelo homem, as interações entre a ocupação histórica e a floresta, através das inteirações dos índios no Maranhão e o meio ambiente - derrubando o mito de que a floresta que conhecemos surgiu sozinha, "naturalmente", mas sim que é um produto da interação do meio com o homem.

 

Mais algumas dezenas de importantes pesquisadores. Todos carregando no semblante o ar de desolação. Da impossibilidade de que a ocupação da sociedade contemporânea não danifique as marcas deixadas pelas anteriores. Para que a gente pudesse aprender como elas viveram. E como desapareceram. Como nós vamos, um dia.

 

"Para a ciência, a destruição que pode acontecer nesses sítios vai ser um desastre", repete Neves. Não só para a ciência, penso.

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