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Amigos! Esse relato também está disponível em https://guilhermebboth.wordpress.com/ , com os mapas e algumas fotos a mais.

Introdução

Não lembro quando pensei pela primeira vez que queria pedalar o litoral gaúcho de ponta a ponta. Também não tenho uma boa explicação do porquê: só queria e pronto, sem grandes motivações ou sentimentos de desafio. A verdade é que sempre me senti bem ali e adoro o litoral do Rio Grande do Sul, sua natureza e sua singularidade: uma reta de 650 km, simples e brutal, que eu queria percorrer inteira.  Em 2011 me mudei de Porto Alegre para São José dos Campos – SP, o que dificultou a realização da viagem, e a saudade que veio com a distância aumentou a vontade de fazê-la. Decidi que a hora era agora: tinha 20 dias de férias e temia que fosse ficar mais difícil cada ano que adiasse. O trecho era curto para preencher os 20 dias, então resolvi esticar o pedal até Montevideo. Minha companheira Débora se juntou a mim na parte uruguaia, há tempos queríamos viajar de bicicleta juntos e seria a primeira ciclo viagem dela. Na parte gaúcha, preferi ir sozinho: as condições são duras e as distâncias longas, com trechos bastante isolados. Soa simplório dizer que esse era um sonho que eu tinha, afinal não é uma subida ao Everest ou uma pedalada de volta ao mundo; mas foi exatamente isso, um sonho que tive a felicidade de realizar, pelo simples prazer de fazer.

 

Dia 1: Torres à Rainha do Mar

  • Domingo, 25/02/2018
  • Total: 73,77 km
  •  Média: 18,8 km/h
  • Máxima: 34,7 km/h
  • Tempo pedalado: 3:55

Após um pernoite em Capão Novo, saímos cedo para Torres com a bicicleta amarrada no carregador atrás do carro; eu, meus pais Mário e Ana e minha companheira Débora, costumazes parceiros/vítimas das minhas empreitadas. O ponto óbvio de partida era o Rio Mampituba, que faz a separação do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, com a chegada também óbvia no Rio Chuí, fronteira com o Uruguai. Paramos na margem gaúcha do rio, fiz os ajustes finais na bicicleta, tiramos algumas fotos, nos despedimos e parti.

A partida foi mais para apreensiva do que para empolgada. Quarenta e cinco dias antes do início planejado tive uma lesão muito feia jogando futebol, um estiramento atrás da coxa direita que passou de feia para horrorosa duas semanas depois ao tentar ficar de pé em um stand-up paddle. A lesão sangrou internamente e deixou um hematoma enorme, que doía muito e impediu qualquer treinamento antes da viagem. Fui fortemente desaconselhado a ir pelo médico, fisioterapeuta, amigos e família. Fiz 22 sessões de fisioterapia em pouco mais de duas semanas, e a única volta de bicicleta nesse período foi na quinta-feira anterior ao sábado que embarcaria para Porto Alegre para ver se devia mesmo abandonar a ideia ou ir contra os conselhos que recebi. Boa minha perna não estava, mas resolvi iniciar e caso fosse preciso abandonaria já no litoral norte.

Comecei pela ciclovia da Avenida Beira-Mar, a praia estava muito lotada por que era o final de semana de encerramento da temporada. Circulei o morro do Farol, enxergando a Lagoa do Violão à minha esquerda, até passar por trás do parque da Guarita e costear o morro da Guarita até a beira da praia. Nela, me livrei da bermuda que usava por cima do short de ciclismo e coloquei meu chapéu de Machu Picchu, muito feio porém providencial no solaço que fazia. Livre dos pudores bestas da pedalada urbana, segui os primeiros quilômetros de areia até as pedras que marcam o final do Parque Estadual de Itapeva. Por desinformação minha, achei que ali era o começo do parque, e depois de carregar a bicicleta pelas pedras foi com espanto que dei de cara com uma grande farofada do outro lado, com muitos carros e pessoas na beira da praia.

Avancei rapidamente, favorecido pelo baixo peso da bicicleta – estava com só um dos alforjes e carregando apenas poucas ferramentas e água –, pelo vento a favor e pela areia firme. As praias de Rondinha, Arroio do Sal, Curumim e arredores estavam lotadas, muitas pessoas usando camisetas do Caxias e Juventude e poucas da dupla Grenal, evidenciando a presença majoritária dos gringos da serra. Isso e o bronzeado vermelho-camarão, é claro.

Já no primeiro dia precisei usar minha defesa contra os cães. Não pensem que sou um maltratador dos animais ou algo do tipo, mas depois de ser perseguido várias vezes e até mordido em ciclo-viagens anteriores, achei por bem buscar algum tipo de prevenção. Meu medo tinha endereço: nas regiões isoladas do litoral sul, quando pedalaria sozinho, já havia visto grupos de cachorros praticamente selvagens e fui corrido por eles na ocasião. E se me pegassem? Queria algo que impedisse o ataque, mas que não fizesse mal ao cachorro. Procurei em fóruns de ciclistas e a resposta estava lá: um spray de pimenta, que devido ao faro sensível do animal, bastava borrifar em sua direção sem atingi-lo diretamente que ele desistiria da perseguição. Passando por Arroio do Sal havia vários vira-latas, e percebi que o maior deles notou minha presença e se preparou para correr atrás de mim assim que passasse por eles. Peguei o spray que levava pendurado no guidom e finquei pé no pedal, na esperança de deixar o cusco para trás e não precisar usá-lo. O cachorro era enorme, uma verdadeira besta-fera (pelo menos é assim que lembro), corria rosnando, babando e latindo, e logo vi que não havia a menor chance de deixa-lo para trás. Esperei ele se aproximar e psssss!, disparei na direção dele. Pareceu funcionar em um primeiro momento: o cachorro parou e deu dois espirros, só que a recuperação foi imediata e ele ficou mais bravo ainda, reiniciando a perseguição para grande diversão dos veranistas. Para complicar, o vento na minha direção fez eu respirar um pouco do gás e dificultou a fuga, mas no fim venci a corrida. Usei o spray mais duas vezes na viagem com resultados um pouco melhores, mas acho que o que assustava mesmo os bichos era o barulho que ele fazia. Uma buzina teria sido mais eficaz e mais saudável para ambas as partes.

Cheguei no apartamento da família em Capão Novo ao meio-dia, depois de 50 km. Almoço com os pais e companheira, sesta e depois pedal de novo até Rainha do Mar. Nesse trecho eu estava em casa, anos frequentando a faixa de litoral entre Capão Novo e Capão da Canoa. Os 24 km foram vencidos rapidamente, diminuindo um pouco o ritmo na passagem pela multidão em Capão da Canoa, e no meio da tarde já estavam na casa dos meus sogros em Rainha do Mar.

À noite, compenetrado nos ajustes dos alforjes, fui testa-los e esqueci de montar pelo lado direito da bicicleta, o que era obrigatório pela lesão da perna. Ouvi um pequeno estalo e a dor característica, e pensei que a viagem tinha acabado de ir por água abaixo. Coloquei gelo e torci para não acabar ali o que mal tinha começado. Seria o fim?

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Partida em Torres no Rio Mampituba, Santa Catarina do lado de lá

Dia 2: Rainha do Mar à Lagoa do Bacupari

  • Segunda-feira, 26/02/2018
  • Total: 100,1 km
  • Média: 14,9 km/h
  • Máxima: 26,2 km/h
  • Tempo pedalado: 6:42

Saí por volta das 8 horas, querendo aproveitar o sol mais fraco da manhã. Neste e nos demais dias percebi que o melhor não era sair cedo se o vento estivesse a favor: o vento ia se intensificando ao longo do dia, e as melhores horas para pedalar eram do meio para o final da tarde. Minha sogra queria me acompanhar na saída, mas vendo que a minha patroa gostou muito da ideia, emprestou a bicicleta para ela e fomos juntos até os limites de Rainha do Mar.

O plano do dia era pedalar até Quintão (60 km) e lá decidir se ficava ou se tinha perna para ir até a Lagoa do Bacupari (85 km). Logo saí da areia e passei na ponte sobre o Rio Tramandaí, a primeira das três interrupções fluviais do litoral gaúcho, sendo as outras duas a barra da Lagoa do Peixe em Tavares e a barra da Lagoa dos Patos, em Rio Grande. A plataforma de pesca de Tramandaí ficou para trás e depois de um trecho com menos casas cheguei a Cidreira.

Parei para almoçar no centro de Cidreira, no buffet excelente do Restaurante Junior’s por módicos R$19,90. Antes de entrar ouvi de uma velhota sentada na frente que não era permitido traje de banho – e eu estava de tênis, camiseta e calção. Como gosto muito da combinação de boa comida (que era mesmo ótima) e preço baixo, cometi o erro de comer demais, três pratarrazes. Tentei escapar do sol e fazer a digestão embaixo da aba de um bar fechado na praça da beira da praia, sem grande sucesso: a lembrança do peixe frito, berinjela à milanesa, nhoques, lasanha, etc, me acompanharam o resto do dia.

Não soube diferenciar Cidreira de Pinhal e Magistério, todas parecem uma só vistas da beira. Neste trecho tem uma vila bem grande praticamente a beira mar, sem a separação das dunas como o restante do litoral. Pareceu uma área muito pobre, a maioria das construções eram casebres feitos de restos de madeira e brasilit, com vielas muito estreitas entre eles. Havia também algumas peixarias e barracões com botes de borracha na frente, e muitas cabeças de violas ainda com a espinha espalhadas junto da linha d’água. Ninguém na praia neste trecho, com exceção dos salva-vidas nas guaritas. 

 Quase passei reto por Quintão, as dunas altas e íngremes escondiam a cidade. Perguntei para uma viatura da Brigada na praia se ali era Quintão e se sabiam que distância tinha até a estrada das Garças, entrada para a Lagoa do Bacupari. Aparentemente interrompi algo muito importante que eles tratavam no celular, pela pouca simpatia que disseram que ali era o final de Quintão e não tinham nem ideia de onde era essa estrada. Era cedo e pelas minhas anotações faltavam 25 km até a estrada, me sentia bem e resolvi continuar.

Depois de Quintão o litoral começa a ficar mesmo deserto, sem nenhuma aglomeração de casas e poucas pessoas, que estão lá quase sempre pescando em camionetes. Nenhuma delas soube me dizer exatamente onde era a entrada da estrada, e a referência que eu tinha era que era junto de uma casa de madeira com um arroio do lado... igual a tantas que eu já havia passado no caminho, não era uma boa referência. A salvação foi ter o mapa off-line do Google Maps no celular, só que como vinha pela praia era impossível traçar a rota, olhava de 5 em 5 minutos para não perder a entrada. O local era exatamente idêntico a muitos outros, impossível saber onde era sem o mapa. Sabia de antemão que a estrada não estava em boas condições, mas não estava preparado para o que vinha a seguir.

A estrada estava mais para um caminho aberto no meio das dunas, com trechos de areial, barro, e água – em alguns trechos a estrada e o arroio se confundiam. O dia estava terminando e o cenário era muito bonito, alternando entre cômoros e banhados, com vista da lagoa dos Barros enquanto o sol baixava, mas foi duro arrastar a bicicleta nesse terreno difícil por 8 km que eu não tinha incluído no planejamento. Levou uma hora e meia com poucos trechos de pedalada. De companhia no caminho, apenas seis guris que passaram em três motos, sem capacetes e de chinelos, correndo como loucos pela estrada e as vezes fora dela. Cheguei quase noite, muito cansado e disposto a ficar no primeiro local que encontrasse. Acabei na Pousada Duas Lagoas, um quarto com cozinha muito simples, que era o que eu precisava. Não tinha mangueira no lugar e precisei lavar a bicicleta no chuveiro, rindo da situação em um banheiro bem pequeno de tijolo a vista. Jantei uma massa com linguiça da colônia e dormi depois de espantar a maior quantidade que consegui dos milhares de insetos que queriam ficar no quarto comigo.

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Saída de Rainha do Mar, praia em condições perfeitas

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Chegada na Lagoa do Bacupari

Dia 3: Lagoa do Bacupari ao Balneário Mostardense

  • Terça-feira, 27/02/2018
  • Total: 93,95 km
  • Média: 14,6 km/h
  • Máxima: 26,4 km/h
  • Tempo pedalado: 6:26

Acordei pouco animado com a perspectiva de fazer o caminho de volta pela estrada, mas o jeito era reunir forças e partir. De novo empurrei a bicicleta por uma hora e meia, dessa vez tirando os tênis para passar dentro das partes com água e evitando os lugares fundos. Na chegada na praia três garças de espécies diferentes, uma delas enorme, me esperavam no fim da estrada. Se estivessem ali ontem teria sido mais fácil achar a entrada da estrada das Garças!

Logo enxerguei o farol da Solidão – aprendi que a distância que se enxerga um farol com tempo limpo são 12 km. O nome não faz mais jus ao lugar, existe uma vila com várias casas ali. Comecei a seguir com mais disciplina o método que uso para me motivar: estabeleço uma meta, 10 km se estiver cansado ou 20 se estiver disposto ou precisando vencer distâncias, e cada vez que cumpro faço uma pausa e me dou algum prêmio, que pode ser uma rapadura ou um gole de Gatorade. Parar antes está proibido, mesmo que apareça algum lugar apetecível para descansar faltando só 50m para a meta: sempre é preciso ultrapassar objetivo e só aí me permito parar, mesmo que precise andar mais um tanto. Como já tinha passado mais de 10 km que tinha visto o farol, me presentei com duas paçocas.

Os maiores bandos de aves que vi foram nesse dia. Grupos enormes de gaivotas, maçaricos, socós, talha-mares, trinta-réis, garças, e muitos outros faziam a festa nos mariscos, as vezes reunidos em um só tipo, as vezes misturados em um grande número de indivíduos de várias espécies. Evito fazer barulho para não incomodar os bichos, mas as revoadas eram inevitáveis e lindas. Nessa parte a areia se estende para longe da praia e a vista fica muito ampla para todos os lados, com o mar à esquerda, o céu acima e areia até onde a vista alcança para frente e para a direita, com os grandes grupos de aves de tempo em tempo. Não sei se era efeito do calor e do sol na cabeça, mas sentia uma felicidade enorme por estar ali!

O resto do dia seguiu nessa toada, praia e deserto. Passei por várias mães-d’água do tipo caravelas na praia, venenosíssimas, lilases e infladas, e por ovos secos de arraias enormes, de quase um palmo de comprimento. Fiquei quase sem água e precisei invadir o pátio de uma casa para encher minhas garrafas, num dos poucos grupos de casas de pescadores que passei. Estavam com cara de habitadas e com uma parafernália de pesca na volta, mas não tinha ninguém; fiquei com medo que tivessem saído sem levar os cachorros junto, mas nenhum apareceu.

Quando avistei o Balneário Mostardense ao longe, passei por um albatroz na areia, o único que vi em toda a viagem. Estava sentado e com as asas longas e negras abertas e apoiadas na areia, uma pose estranha. Imaginei que estivesse doente ou machucado e senti pena dele. Dois minutos depois ele passou por mim voando e pensei que éramos companheiros nessa, ambos meio estropiados, mas seguindo em frente!

Cheguei no Balneário, lugar muito simpático e já bem vazio pelo final da temporada. Encontrei com outro ciclista viajando, vinha de Florianópolis com pouco dinheiro e se alimentando de mariscos e arroz com moçambiques, rumo a Montevideo. Fui procurar a pousada que tinha combinado e ele foi atrás de um posto de gasolina para acampar. Havia falado por WhatsApp com a Cleusa, proprietária da Pousada Balneário, mas não conseguia encontrar onde era. Parei em frente a uma casa muito bonita de dois andares, com uma família reunida na frente em torno de uma mesa com o tampo de uma única tora, e perguntei pelo local. Um cara que parecia o James Hetfield, vocalista do Metallica, prontamente se ofereceu para me levar lá e andamos algumas quadras. Chegando lá ele perguntou meu nome e logo depois minha idade. Quando eu disse 34 ele disse pois é, meu filho também se chamava Guilherme e hoje ele teria 32... não consegui pensar em nada para dizer, ele deu tchau e foi embora. Ainda penso no que poderia ter dito e até agora não me ocorreu nada.

A Cleusa era a simpatia em pessoa e passei muito bem na pousada. Ganhei frutas na chegada, café passado de manhã, e até uma batata doce cozida embrulhada em papel alumínio antes de sair. “Boa para quem faz exercício!”, disse ela. Me mandou mensagem todos os dias da viagem perguntando se estava tudo bem. Recomendo o lugar para quem passar pelo Balneário: https://www.facebook.com/pousadabalneario/

Saí a noite para ir no mercado e comer e desabou o mundo. Pelo menos não trouxe a capa de chuva para nada, pensei. Entrei em uma lanchonete e enquanto comia um xis e tomava um latão de Polar ouvi um sujeito falar para a garçonete que tinha atravessado a barra da Lagoa do Peixe de moto de tarde. Essa era uma das minhas preocupações para o dia seguinte, como atravessar o rio na beira da praia. Será que ia subir por causa da chuva?

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Estrada das Garças

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Filhotão de baleia com corda presa no rabo

Dia 4: Balneário Mostardense ao Bojuru

  • Quarta-feira, 28/02/2018
  • Total: 92,86 km
  • Média: 14,1 km/h
  • Máxima: 28,1 km/h
  • Tempo pedalado: 6:33

A Cleusa me tranquilizou quanto à travessia da barra da Lagoa do Peixe: era época de pesca de camarão e ia ter gente lá para me atravessar de barco. Imaginei que haveria vários pescadores e que por alguns trocados iriam me levar para o outro lado sem grandes problemas.

Entrei no Parque Nacional da Lagoa do Peixe e apesar dos avisos de proibido pescar, vários cabos prendiam redes de pesca. Pior ainda, ao lado de alguns desses cabos havia uma e até duas toninhas mortas, animal ameaçado de extinção e com população estimada de apenas 9500 indivíduos entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Já havia visto outras mortas mais ao norte, mas o fato de estarem junto dos cabos de rede em uma unidade de conservação tornava a coisa ainda mais indignante.

O parque é um santuário de aves migratórias e um patrimônio natural brasileiro, mas vi menos aves que no dia anterior. Depois descobri que para observar pássaros o melhor é contratar algum passeio, a maior parte delas fica concentrada em lagoas que estão para trás das dunas, e não nas pequenas poças d’água e lagoinhas que se formam a beira mar.

Passei por apenas três carros no trecho de 30 km entre o balneário e a barra da Lagoa. Quando cheguei nela, o silêncio só era quebrado pelo barulho do mar e do rio, nem sinal de pessoas. O lugar é muito bonito, a barra estava com cerca de 10 metros de largura, água muito transparente e correndo rápido na parte que afunila para o mar. Em vários pontos dava para ver o fundo, pensei em atravessar carregando a bicicleta nos ombros mas no meio já parecia mais profundo, e os vários caranguejos que enxergava através da água me desencorajavam. Bem longe na margem oposta dava para ver um galpão e duas casas, com barcos ancorados na frente e armadilhas de camarão, mas nenhum movimento. Parecia que não dava para chegar na frente, um riozinho se conectava ao rio principal e impedia minha passagem. Achei a água parada e pensei que podia ser só um braço morto da lagoa, fui contornando enquanto olhava as tainhotas pulando para fora da água e era isso mesmo, depois de uma meia hora consegui parar na margem bem em frente às casas do lado oposto, onde havia um barco amarrado em um toco.  Para meu alívio saiu alguém de dentro da casa, e travamos o seguinte diálogo, dificultado pela distância e vento forte:

Eu: Ei! Quero atravessar!

Ele: Pega o barco e vem!

Eu (pensando que não tinha escutado direito): Quero atravessar!

Ele:  Pega e vem, tchê!

E entrou para dentro da casa. Eu não tinha certeza se tinha escutado direito, achei o rio meio desafiador e fiquei com receio de despertar a ira do pescador pegando o barco dele sem autorização. Fiquei ali com cara de tacho pensando no que fazer até que ele apareceu de novo, gritou umas palavras que não entendi, mas que pareciam dizer para eu ir mesmo. Na pressa não quis desmontar os alforjes da bicicleta e foi duro colocá-la com todo peso para dentro do barco.  Como o rio era raso, o esquema era empurrar o barco com uma taquara até o outro lado, sem remo. A maré tinha subido e o mar estava botando para dentro da lagoa, me empurrando para as armadilhas. Comecei empurrando pela popa e não conseguia direcionar, mas me espertei a tempo de correr para a proa e evitar o desastre eminente, retomando o controle do barco. Na chegada ainda levei um tombo, perdi o equilíbrio enquanto erguia a pesada bicicleta e ao mesmo tempo espantava o caranguejo que tentava beliscar meu pé descalço. As únicas testemunhas foram dois cavalos, então conservei meu orgulho intacto.

Deixei a bicicleta e fui até a casa, que ficava a uns 300 metros de onde amarrei o barco. A casa era uma tapera, sem luz elétrica nem água, usada só sazonalmente para a pesca mesmo. Nela estavam três pessoas, dois pescadores e o filho de um deles. Mal dei boa tarde e já me ofereceram almoço, estavam fritando papa-terra, camarão da lagoa, e tinham também arroz, feijão, ki-suco gelado e até carne de avestruz de uma fazenda ali perto. A comida estava com uma cara ótima e não me fiz de rogado. Conversamos bastante, eu interessado na lagoa e em como eles viviam da pesca, eles na minha viagem; as vezes é difícil explicar por que se faz uma coisa desse tipo simplesmente por que tive vontade. Reclamaram de uma multa que tomaram, a casa está em área protegida e na rota migratória dos maçaricos. “Mas tu me diz: a casa está aqui há trinta anos, será que os passarinhos não podiam desviar dela”? Contamos alguns causos uns para os outros e demos risadas, e fizeram até a pergunta que sempre escuto: Não tem medo de andar por aí nesses lugares desertos sozinho? A resposta é não, em toda a viagem não passei por nenhuma situação que me senti constrangido ou ameaçado, muito pelo contrário, sempre contei com a ajuda, simpatia e generosidade de pessoas como eles. Obrigado, amigos!

                Meus anfitriões estavam quase sem água, então não peguei nada com eles. Me indicaram que 30 km para a frente encontraria algumas casas junto de um farol e que ali teria uma bomba. Perto do farol havia um pessoal pescando, em um método para mim inédito: usavam um salva-vidas com camiseta por cima, pescavam com a tarrafa e depois colocavam os peixes para dentro da camisa, que já estava bem cheia. Eram os donos das casas, me disseram para ir lá que tinha um moreno que cuidava delas e que eu seria super bem recebido (palavras exatas). Era verdade, fui muito bem recebido, conversei bastante com o pessoal e ganhei água, café e bolo. Fora o senhor moreno que morava lá e dava uma mão com as casas dos outros, eram todos de Araranguá em Santa Catarina e a julgar pelas camionetes novas praticavam alguma modalidade mais profissional de pesca. Reclamaram muito da fiscalização da Fepam e do ICMBio, ao que concluí que devem estar fazendo um bom trabalho.

Neste trecho sumiram os anéis de areia que foram o mistério e sensação da temporada, que estavam por toda a praia desde Torres. Tratava-se do ninho feito de muco dos caramujos do gênero Natica, coisa nunca vista antes no litoral gaúcho e impressionante pela quantidade e abrangência.

O resto da tarde seguiu sem percalços, vento a favor e areia muito boa para pedalar. A chegada no Bojuru, outra não incluída no planejamento, é que não foi fácil. Pedi informação sobre onde sair da praia para os pescadores e cada um tinha uma opinião, se a melhor era a entrada ao norte ou ao sul. As duas saiam na BR-101 e achei melhor pegar logo a entrada norte, para não precisar voltar e evitar pedalar a noite na estrada. De partida, duas passagens por dentro da água pelos joelhos. A próxima surpresa foi que os 6 km seguintes eram totalmente subindo, a maior parte de areia fina e solta que não deixava pedalar. O caminho ia entre plantações de pinus, e como se o ar não estivesse fantasmagórico por si só com o sol se pondo, havia uma caveira de boi cravada numa estaca com duas bolas vermelhas no lugar dos olhos, com os chifres também pintados de encarnado. Cheguei na BR depois de empurrar a bicicleta a maior parte do caminho, e no lusco-fusco cheguei no Bojuru depois de pedalar rapidamente os 10 km que faltavam.

O lugar era menor do que eu esperava, e logo achei onde me hospedar: Pousada Freitas, humilde, mas com ar-condicionado no quarto e baratíssima. A bicicleta estava com um cheiro estranho e lavei-a no posto de gasolina na frente da pousada. Várias larvas de água-viva do mesmo azul da pintura estavam grudadas nela, deixando-a com um cheiro misturado de maresia e peixe morto.  Saí para procurar um lugar para comer, as ruas de terra estavam bem iluminadas pela lua cheia. O único lugar com movimento era um bar que não aparentava ser muito receptivo com forasteiros; o Restaurante Santos, do outro lado da rua, parecia fechado. Espiei pela janela e o dono apareceu de supetão; perguntei se estava aberto e ele respondeu: agora tá! Comi um prato enorme de asas de galinha, duas chuletas de porco de dois dedos de altura cada, arroz, feijão, ovo frito, salada e dois refris. Uma das melhores coisas de viajar de bicicleta é comer sem culpa! No fim o dono ainda queria me dar um desconto de 1/3 do preço, não achei justo e fechamos num meio termo.  

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Barra da Lagoa do Peixe aberta

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Margem sul da Lagoa do Peixe após atravessar

Dia 5: Bojuru ao Cassino

  • Quinta-feira, 01/03/2018
  • Total: 115,70 km
  • Média: 14,9 km/h
  • Máxima: 25,1 km/h
  • Tempo pedalado: 7:43

Comi uma torrada (misto-quente, dependendo de onde for o leitor) e um café com leite na padaria e parti cedo, antes das sete. Voltei para a beira pelo que seria a entrada sul do dia anterior; uma estrada menos íngreme, o que é uma desvantagem na descida, e mais arenosa ainda. Empurrei a bicicleta boa parte do caminho sob o sol muito forte e observado por gaviões e corujas pousados nas cercas. Cheguei na praia e o vento tinha virado, estava de sul. No litoral sul quando isso acontece o mar sobe, sumindo com a faixa de areia pedalável e justificando o nome de Praia do Mar Grosso. Andava um pouco e os pneus afundavam na areia; em alguns lugares o mar fazia barrancos na beira do mar, tentava passar por ali rápido entre as ondas para logo atolar de novo. Demorei 3 km para me convencer que aquilo ali era inviável. Só me conformei em dar meia volta por que em 2012 já tinha pedalado de Bojuru a Rio Grande e em 2009 de Rio Grande ao Chuí – o que quer dizer que indo de Torres até Bojuru já podia dizer que tinha pedalado 100% do litoral gaúcho pela beira da praia. Usei isso como consolo e voltei, alterando os planos de ir sempre pela areia para seguir pela BR-101.

Cheguei perto das 10 da manhã na estrada – frustrado e cansado de percorrer o caminho de volta, total de 24 km perdidos, boa parte empurrando a bicicleta. Na BR o ritmo mudou: o acostamento está muito bom e permite pedalar com segurança, a velocidade de cruzeiro aumentou de entre 14-16 km/h da areia para 20 km/h, mesmo contra o vento. Parei para comer uma paçoca e tomar um toddy e passou por mim outro ciclista, o Christian. Suíço, tinha saído do Ushuaia, subido até Mendoza, pego um ônibus para Foz do Iguaçu e vinha descendo de lá até Montevideo, em uma viagem de 3 meses e 7000 km. A comunicação era difícil: ele falava quase nada de inglês, espanhol aprendeu em um curso intensivo de 2 meses mas não parecia ter praticado muito no caminho, e o meu alemão se resume a meia dúzia de palavras e frases. Pedalamos juntos por um tempo, mas o ritmo dele era bem mais forte e o perdi de vista.

Pedalei bastante tempo sem passar por nenhum posto de gasolina, restaurante ou mercado. A estrada era muito bonita, alternando entre pastagens e plantações de arroz, com figueiras antigas e casas esparsas. Na primeira venda parei decidido a almoçar, mas o dono explicou que sua esposa tinha saído e quando era assim não tinha comida. Paciência, comprei umas paçocas e um refri, armei meu fogareiro e fiz um miojo. Vendo a situação ele se compadeceu e perguntou se eu queria um prato de comida, imaginei que a comida que queria compartilhar era o próprio almoço dele, agradeci mas recusei.  Enquanto isso chegou um caminhão e começaram a descarregar uns engradados de refrigerante. O motorista sentou do meu lado enquanto eu comia e conversamos, ao mesmo tempo que ele assistia vídeos no celular. Lá pelas tantas ele encheu os olhos de lágrimas, e sem disfarçar disse com o sotaque do sul do Estado: “Bah tchê! Mas é bem triste esse vídeo”!

Pelos meus cálculos ainda faltavam uns 60 km, e me preocupava já serem duas e meia da tarde. O pessoal insistiu para eu colocar a bicicleta no caminhão e ir junto, não ia nem precisar pagar para atravessar na balsa de São José do Norte para Rio Grande. Confesso que balancei, porém fiquei firme e recusei; os dois do caminhão simplesmente não entendiam por que eu queria ir de bicicleta se podia ir com eles mas cansaram de insistir, me desejaram sorte e partiram. Várias vezes no meio do caminho pensei que devia ter aceito a carona.

Na chegada em São José do Norte, outro ciclista: Jean Claude, ciclista francês, barba e cabelos brancos com cara de quem beira os 60 anos, só com um colete reflexivo e colar de dente no pescoço. A conversa deve ter sido só uns 10 minutos, mas me contou muita coisa: tinha saído da Guiana, contornado toda América do Sul pelo Pacífico e agora iria subir toda a costa do Brasil e voltar para o ponto inicial. Fazia 30 anos que estava na estrada e tinha visitado 133 países, falava bem português por que era a oitava vez no Brasil. Examinou minha bicicleta e perguntou por que as dos brasileiros nunca tem pezinho e por que eu não levava bagagem na frente, disse que tinha uma mountain bike nova como a minha, mas que a que ele estava (mais estradeira) tinha alma! ESSA BICICLETA TEM ALMA! Se exclamava e só faltava saírem faíscas pelos olhos! Contei sobre a minha viagem pela Alsácia e Alemanha com meu pai e meu irmão, obviamente ele já tinha rodado aquele caminho também. Tiramos fotos juntos e fomos cada um para o seu lado.

Não tinha decidido ainda onde ficar quando peguei a balsa para Rio Grande. A travessia é muito legal, com São José do Norte com cara de interior de um lado e a linha de prédios modernos de Rio Grande do outro. Decidi que não queria entrar em uma cidade grande sem saber para onde ir e resolvi ir até o balneário do Cassino, mesmo que isso representasse um aumento na quilometragem do dia e da manhã seguinte. O pedal da balsa para o Cassino não é dos mais agradáveis: depois de uma vila, onde o pedal é tranquilo, passa-se por uma área portuária e fabril que é um verdadeiro apocalipse industrial. Era bem o horário de saída do trabalho e o tráfego de carros e caminhões era insano, não havia viva alma a pé ou de bicicleta e percorri sem parar esse trecho, passando por indústrias químicas e pelo estaleiro parado da Ecovix. O acostamento na frente do terminal graneleiro era uma nojeira: os caminhões derrubavam grãos, que atraiam ratos, que eram atropelados por outros caminhões. O resultado eram ratos amassados e achatados como em desenho animado, em alguns trechos formando quase um tapete no asfalto.

Finalmente cheguei no Cassino, que estava com bastante movimento. Me pareceu que já não é mais só um balneário de Rio Grande, muitas pessoas devem morar ali como se fosse um bairro afastado da cidade. Fiquei no hostel Rio140, muito novo e bem localizado. Peguei uma cama no quarto coletivo mas era o único hóspede, pude ficar à vontade para organizar as minhas tralhas e lavar roupa. Também pude comprar um relaxante muscular, estava sem e os locais que parei nos últimos dois dias não tinham farmácia. Terminei o dia longo em um desses pavilhões que tem feira de artesanato e praça de alimentação, com um xis quatro queijos e um latão de Polar. Tudo está bem quando termina bem!

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Jean Claude: 30 anos de estrada

Dia 6: Cassino ao Paradouro Costa Doce

  •  Sexta-feira, 02/03/2018
  • Total: 133,23 km
  • Média: 17,2 km/h
  • Máxima: 32,3 km/h
  • Tempo pedalado: 7:44

Para começar o dia, que seria longo, pizza e achocolatado de alpino no café da manhã - já disse antes mas repito que comer sem culpa é uma das melhores coisas de viajar de bicicleta. Enchi uma das caramanholas com gelo e água de coco com abacaxi, couve e gengibre, comprei por engano achando quer era só coco. Água gelada na outra caramanhola mais dois gatorades completavam o kit hidratação.  Antes de pegar a estrada fui até a orla ver a estátua de Iemanjá. Nove anos atrás foi dali que começou a expedição da autointitulada Banda Mais Calor com os amigos Testa, Teteu e Sapulha, minha primeira viagem de bicicleta, em uma travessia tanto épica como mambembe pela praia do Cassino rumo ao carnaval de Santa Tereza no Uruguai. Tocado pela lembrança, dei tchau para a Rainha das Águas e peguei a RS-734 na direção de Pelotas.

O vento não ajudava. Vinha acompanhando todos os dias a previsão pelo site WindFinder e a perspectiva era de vento contra ou lateral, o que se confirmou. No entroncamento com a BR-392 encontrei com uma turma pedalando, parei-os com o pretexto de pedir informação, mas era mais para conversar mesmo. Eles faziam parte do Pedal Corta Vento, um grupo de Rio Grande que organiza passeios e voltas ciclísticas. Trocamos contatos e segui para o viaduto que entra na BR-471, a estrada que conduz até a fronteira com o Uruguai.

A distância a percorrer era grande, por isso fazia intervalos apenas a cada 20 km.  Os locais de parada eram poucos, alguns pontos de ônibus e as unidades do Grupo 4 Irmãos / Granjas Joaquim Oliveira, fazendas com vilas para os trabalhadores, oficinas, silos e o que mais envolve o agronegócio. Parei em uma delas para abastecer água e almocei carrapinhada sentado embaixo de um pinheiro.

A estrada era um pouco monótona e em vários trechos o acostamento era péssimo. Precisei fazer algo que nunca faço, ir na contramão. Pedalava pelo lado errado próximo à guia e descia para o acostamento quando se aproximava um veículo, desviando das touceiras de capim e buracos. O movimento era baixo, mais caminhões do que carros.

A monotonia acabou na Estação Ecológica do Taim. Já tinha passado por ali outras vezes de carro, só que em quatro rodas não dá para ter ideia de quão incrível é o lugar. A estrada é elevada em relação ao terreno, e em cada lateral corre um curso d’água. Uma cerca de tela de meio metro de altura em cada lado impede a circulação de animais, o que diminuiu muito o número de atropelamentos. No lado esquerdo centenas de capivaras e campo com gado; no lado direito o banhado com pequenas praias na vegetação alta, tarrãs, garças, martins-pescadores, muitos outros pássaros que não identifiquei, e jacarés pegando sol de boca aberta. A minha passagem espantava uma bicharada que ficava no capinzal do lado da estrada, que fugia fazendo barulho. Uma tartaruga solitária atravessava a estrada e se encolheu toda para dentro da casca quando me aproximei, bem entre as duas pistas. Pensei em parar para colocá-la do outro lado mas achei que ela voltaria a caminhar quando eu me afastasse, segui e olhei para trás a tempo de vê-la sumir no mato.  Já estava bem cansado, a reserva começa a 80 km do Cassino e tem 17 km de extensão, mas percorri-a com um sorriso no rosto.

O resto da tarde foi uma corrida para chegar no Paradouro Costa Doce, um posto de gasolina no meio do caminho entre Cassino e Santa Vitória do Palmar. Quase parei no camping da Praia da Capilha, na Lagoa Mirim antes do Taim, mas o dia seguinte ficaria longo demais. Da estrada vi o pôr do sol na lagoa enquanto grupos grandes de biguás voavam em formação V. Coloquei a lanterna de cabeça piscando amarrada no alforje e vinte minutos depois cheguei no posto. Esperava comodidades para caminhoneiros – leia-se chuveiro – mas não tinha. Armei o acampamento no estacionamento de motos, um canto entre eucaliptos que passava um arroio por trás, tomei um banho de gato e jantei um prato feito de chuleta no restaurante. O posto fechou e ficou só um caminhão pernoitando. Dormi bem com a luz da lua passando pela barraca.

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Estação Ecológica do Taim

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Acampamento no Paradouro Costa Doce

 Dia 7: Paradouro Costa Doce à Santa Vitória do Palmar

  • Sábado, 03/03/2018
  • Total: 104,0 km
  • Média: 19,3 km/h
  • Máxima: 28 km/h
  • Tempo pedalado: 5:22

Acordei às cinco da manhã, quando o dia começou a clarear. Na noite anterior me disseram que o posto abria as seis e meia, então queria estar com tudo pronto, tomar café e sair. Seis e vinte estava com o acampamento desmontado, a bicicleta equipada e o protetor solar aplicado. Muitos carros esperavam para abastecer, até o ônibus de uma banda chegou. Sete horas, sete e meia, oito e nada. A maioria dos carros tinha desistido e ido embora, só não fiz o mesmo por que não tinha mais água; a única torneira do posto despejava uma água preta e embaixo dela jazia um sapo morto. Oito e meia abriram e comi um enrolado de salsicha, uma torrada e um café. Já do lado de fora chegou o Christian, o suíço de anteontem. Ele parou para comer e combinamos de nos encontrar mais adiante, já que o ritmo dele era mais rápido.

A estrada era monótona como ontem, o que permitiu uma boa velocidade. Encontrei com o Christian e fui no vácuo dele boa parte do caminho, enquanto consegui acompanhar. Passamos por um ciclista russo que falava como uma matraca, em uma mountain bike dos modelos antigos, com o quadro em seção achatada. Usava chinelos de dedo, camisa xadrez amarela e um calção jeans rosa esfarrapado. A vara de pesca e uma grande quantidade de tralha na bicicleta completavam a figura singular. Disse que vinha da Colômbia e que nos últimos dias estava vivendo praticamente só da pesca e da fruta amarela que abundava na estrada: o butiá. Parou de falar do nada, deu tchau e foi.  Eu e Christian separamos e nos encontramos de novo no posto, 10 km antes de Santa Vitória, onde almoçamos no buffet em clima de fim de festa, já passava muito da hora do almoço.

De surpresa, meu amigo que iria me hospedar em Santa Vitória chegou de moto. O Gustavo é irmão do Glauco, grande amigo dos veraneios em Capão Novo e quando viu minhas postagens no Facebook convidou para um churrasco na passagem por lá. O churrasco evoluiu para uma estadia de dois dias! Conversamos um pouco, ele voltou para a cidade depois de dar as direções da casa e fomos logo atrás de bicicleta.

No posto da polícia rodoviária alguns bichos-grilos com jeito de castelhanos dormiam enquanto outros pediam carona, rumo ao norte. Chegamos no pórtico de Santa Vitória e me despedi do Christian, que foi para o Chuí, naquele diálogo a duras penas em três línguas e gestos e que no final se entende quase nada. Cheguei na casa do Gustavo e demos uma volta pela cidade, comemos um pancho na praça e fomos ver o final do dia no Cais do Porto Pindorama, lugar muito bonito na beira da Lagoa Mirim. Depois, fomos para a casa dele no Hermenegildo, balneário a 20 km de Santa Vitória. Comemos churrasco e ligamos por vídeo para o Glauco, agora morador da Bahia.  

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Com Christian na entrada de Santa Vitória do Palmar

Dia 8: Descanso

  • Domingo, 04/03/2018
  • Total: 0 km
  • Média: 0 km/h
  • Máxima: 0 km/h
  • Tempo pedalado: 0

Ninguém é de ferro, foi bom tirar um dia para descansar. De manhã caminhamos na praia do Hermenegildo, que tem as casas muito próximas do mar, protegidas por barreiras de contenção de pedras e concreto. A casa do Gustavo foi uma das menos atingidas na grande ressaca de 2016, mas muitas ainda estão em escombros, visíveis em toda orla. Além de levar a casa, o mar levou até o terreno de algumas, deixando só a praia. Um termo de ajustamento de conduta impede as novas construções e reformas nas casas que estariam irregulares sobre a área de dunas, quem consertou ou ergueu casa nova agora enfrenta ou teme ordens demolitórias e os outros esperam uma definição sobre o que fazer com as casas destruídas. Por hoje o mar estava mais calmo e aproveitamos para andar de stand-up paddle, eu ainda receoso por causa da lesão da perna, que aconteceu justamente numa prancha dessas. De fato, era difícil ficar de pé, o músculo puxava muito e me resignei em andar de joelhos enquanto o Gustavo pegava ondas. Almoçamos carreteiro das sobras do churrasco e voltamos para Santa Vitória a tempo de assistir Grêmio e Juventude pelo campeonato gaúcho.

Despachei na rodoviária meus itens de camping para Porto Alegre. Pretendia ter usado mais do que uma única vez, mas a estadia foi tão barata no Balneário Mostardense, Bojuru e Cassino que não valia a pena. Na semana seguinte, no Uruguai, já estaria com a Débora e não pretendíamos acampar. Ela chegaria na manhã seguinte na rodoviária do Chuí, no mesmo ônibus que a esposa do Gustavo voltava da Capital. Dormi cedo para pedalar até a fronteira antes que a Débora chegasse. Agradeci ao Gustavo, a acolhida foi realmente sensacional e nem parecia que já fazia alguns anos que não nos víamos. Disse a ele que me senti como se fosse da família, ao que ele retrucou: Mas tu é!!!

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Frente da casa no Hermenegildo

Dia 9 parte 1: Santa Vitória do Palmar – Chuí – Barra do Chuí

  • Segunda-feira, 05/03/2018
  • Total: 39,12 km
  • Média: 17,5 km/h
  • Máxima: 30,4 km/h
  • Tempo pedalado: 2:10

Parti as 6 horas da manhã em ponto. Descansado, pedalei com uma parada só até o Chuí mas precisei da estratégia de todos os dias: pedalar os 10 minutos iniciais ou depois de cada parada em ritmo lento até aquecer e passar a sensação de fadiga nas pernas. O sol nascia em meio a neblina, que deixava a mostra só as pás dos aero geradores do maior parque eólico da América Latina. Bandos de joão-grandes (também conhecidos como cabeça-seca) despertavam, bem como o gado gordo, pretos ou vermelhos de cara branca. Angus e Hereford, raças de dar pena nos zebus de São Paulo.

Logo cheguei no Chuí, que recém começava o dia, com o comércio fechado e os varredores na avenida central limpando dois países ao mesmo tempo. A Débora chegou oito e meia, empolgada com a viagem que para ela começava ali. Tiramos a caixa do ônibus e a bicicleta da caixa, em meia hora já estava montada e equipada. Compramos víveres para o dia e comemos um pancho de café da manhã no lado brasileiro da rua. Do lado uruguaio fizemos câmbio e compramos um chip da Antel. Vi vários haitianos na rua, que sobreviviam trabalhando como camelôs. Um senhor mais velho e maltrapilho viu nossas bicicletas, nos abordou e contou sobre as viagens dele, por todo o Uruguai com uma carretinha a reboque. 

Um dilema me incomodava desde o dia anterior: devíamos seguir pela estrada direto do Chuí ou ir até a Barra para ver o encontro do rio com o mar, um caminho 10 km mais longo? O planejado eram 47 km até Punta del Diablo e não queria forçar a Débora logo no primeiro dia. Lembrei da história de decidir no cara ou coroa, mas não pela sorte: antes da moeda cair eu saberia para qual lado estaria torcendo. Não precisei nem atirar a moeda para saber, íamos até a Barra.

No final da descida que chega na praia aconteceu o único acidente da viagem. Eu vi a areia solta no final da rua, coloquei uma marcha leve e passei rápido. A Débora veio mais devagar e em uma marcha pesada, derrapou e foi ao solo, bateu com o guidom na coxa e ganhou um belo roxo. Nada sério mas abalou um pouco a moral dela logo na saída, com uma consequência na bicicleta que só descobriríamos no dia seguinte. 

Alternamos entre pedalar e empurrar a bicicleta na areia fofa até os molhes. Subi os tetrápodes de concreto correndo sem dar muita bola para a perna lesionada até ver a Barra del Chuy do outro lado do rio. Consegui! Dei um abraço na Débora para comemorar e esconder os olhos marejados; fazia anos que pensava nessa viagem, cheguei a duvidar se teria a oportunidade de fazê-la e agora estava ali, terminada! Estava emocionado e muito feliz: com a recuperação da lesão, com a lembrança dos amigos da primeira travessia, com o que vivi nesses dias. Com a realização de um sonho entre dois rios.

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Nascer do sol depois de Santa Vitória do Palmar

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Tetrápodes dos molhes da Barra

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Rio Chuí, Uruguai do outro lado

Dia 9 parte 2: Barra do Chuí – Punta del Diablo

  • Segunda-feira, 05/03/2018
  • Total: 64,95 km
  • Média: 14,7 km/h
  • Máxima: 30,4 km/h
  • Tempo pedalado: 2:10

Comemorada a chegada no Uruguai, voltamos um pouco pelo mesmo caminho que viemos e paramos para almoçar. A Débora estranhou ainda estarmos no Brasil e os cartazes do restaurante estarem todos em espanhol. Saímos com o sol bem forte depois do almoço, ainda havia uma boa distância e não podíamos nos dar ao luxo de esperar enfraquecer. Pegamos a estrada de acesso a Barra del Chuy, que em 11 km nos deixaria na ruta 9, por onde seguiríamos até Punta del Diablo. Cruzamos a ponte sobre o Arroio Chuí e entramos em definitivo no Uruguai, mas logo de cara já tivemos uma má notícia. O posto Aduaneiro não servia para registrar a entrada no país, só para fiscalização de mercadorias. Tivemos que ir até a ruta 9 e voltar 4 km em direção à fronteira para carimbar os passaportes, tentando alcançar a sombra das nuvens que fugiam de nós. Eu que me preocupava em acrescentar 10 km na conta da Débora, precisei acrescentar mais 8.

O movimento na estrada era intenso, o que foi uma surpresa.  Em viagens de carro anteriores, sempre tinha ficado com a impressão que as estradas eram desertas. A Débora seguia devagar e eu precisava cuidar para não aumentar a velocidade, estávamos em piques diferentes, ela no primeiro dia e eu fortalecido pela semana anterior. Passamos pelo conhecido trecho que a estrada alarga e vira pista de emergência para aviões. Um grupo de uns 30 cavalos galopava no campo ao lado, enquanto mordiam uns aos outros, escoiceavam e davam pinotes. Passamos pela Fortaleza de Santa Teresa, que já conhecíamos de outros carnavais (literalmente) e por isso e por estar no alto de um cerro resolvemos não entrar. O vento contra soprava forte e nos castigava nesse trecho com algumas subidas duras. Na entrada de Punta Del Diablo, a placa com o nome da cidade estava totalmente tapada de adesivos de grupos de motoqueiros, jipeiros, etc, do Brasil, Argentina e Uruguai.

A Débora chegou bem cansada em Punta Del Diablo, depois dos quilômetros extras do dia, do vento contra e das subidas.  A internet no celular não estava funcionando e fomos procurar um lugar para ficar à moda antiga, perguntando. Perguntamos no Hostel Vente Al Diablo, simpático mas achei meio caro (admito que sou sovina). Resolvi dar uma olhada rápida para o lado do centrinho, deixei a Débora sentada numa duna e dei o sprint final no meio de uma grande ventania. Não achei nada e ficamos lá mesmo, um bom lugar. Terminamos a noite nos tratando com uma milanesa napolitana e um chivito.

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Débora, a Companheira

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Placa adesivada em Punta del DIablo

 Dia 10: Punta del Diablo – Cabo Polônio

  • Terça-feira, 06/03/2018
  • Total: 64,89 km
  • Média: 12,6 km/h
  • Máxima: 38,9 km/h
  • Tempo pedalado: 5:06

Acordamos cedo e fomos caminhar e matear na Playa de Los Pescadores, onde ficam os icônicos barcos de pesca de Punta Del Diablo, estacionados na areia. Voltamos para o dulcíssimo café da manhã no hostel, como seria de praxe pelo resto da viagem: café, pão, doce de leite e geleia. Voltamos para a ruta 9 e pedalamos vendo a Laguna Negra a nossa direita por um bom trecho.

Eu estava incomodado com a velocidade da Débora – na verdade, com a falta dela. Muito lerda! O pedalar não engrenava e íamos muito devagar entre os butiazeiros, palmeiras nativas do sul do Brasil e Uruguai. Em uma descida achei estranho que nem ali ela chegava na minha velocidade. Resolvi fazer uma inspeção e o disco do freio traseiro estava raspando na pinça, provavelmente desde o tombo dela no dia anterior.  Soltei e alinhei a roda e a partir daí foi um pouco menos sofrido para ela e as velocidades aumentaram.

Um porto-alegrense passou por nós no sentido contrário com uma bicicleta quase toda de bambu: faltava só a roda da frente, ainda convencional.  Depois pedalamos juntos com o Ramon, que ia na mesma direção que nós, e conversamos bastante: suíço de mãe peruana, veio visitar a família em Cuzco e estava indo de bicicleta para Montevideo, onde ia pegar um navio de carga para voltar para a Europa com escala no Rio de Janeiro. Simpatizei com ele, ciclista no estilo mochileiro, meio gordito e reclamando que a perna doía depois de ficar na casa de amigos tomando cerveja por uma semana em Barra del Chuy. A estrada se afasta do litoral para passar em Castillos e fomos juntos até ali, quando ele seguiu para Barra de Valizas e eu e Débora entramos na cidade para almoçar.

Em Castillos saímos da ruta 9, que vai direto para Montevideo, e pegamos a ruta 16 para ir até a ruta 10, que costeia o litoral. Uma ingrata surpresa: as duas rodovias estavam em obras, o asfalto tinha sido removido, circulação em meia pista, muita poeira, maquinário pesado e operários circulando.  A paisagem era muito bonita, formada por campos com palmeiras enormes até onde a vista alcança: estávamos nos Palmares de Rocha, patrimônio mundial da Unesco. Em algum ponto da estrada depois do palmar recomeçou o asfalto, mas nossa vida não ficou mais fácil: a estrada era desprotegida e o vento contra nos castigava. Dei um gás por que tinha medo de perder o último transporte para Cabo Polônio e cheguei na entrada do parque um pouco antes da Débora. Deixamos as bicicletas em um depósito (carros e bicicletas não são permitidos em Polônio), montamos no segundo andar do caminhão 4x4 e fomos chacoalhando pelas dunas e beira da praia até o povoado.

Cabo Polônio foi fundada como colônia de pescadores e já viveu da caça de lobos-marinhos e pesca de tubarões, mas hoje o negócio é o turismo. A estrutura lá já está bem organizada mas mantém o apelo de lugar rústico e pé no chão, o que quer dizer que muita gente vai até lá viver por um dia a fantasia do viajero rodando a América do Sul com uma mochila nas costas, sem abrir mão de ter onde carregar o celular e postar fotos no Instagram. Comentários maldosos a parte, o lugar é legal mesmo, com suas ruas de areia e casas espalhadas sem organização. Demos risada quando descemos do caminhão: o hostel que eu tinha reservado era bem na frente da parada, uma tapera minúscula caiada de branco com o nome Lo De Peri pintado na parede. Por dentro era simples mas razoável, com donos e cachorros muito simpáticos; um bom lugar. Escolhemos uma pedra do lado de uma casa fechada e vimos um pôr-do-sol maravilhoso, com vista para a praia e para o farol, na companhia de um cavalo amarrado ali. Jantamos uma milanesa de peixe e um chivito numa lanchonete a luz de velas (luz elétrica é escassa e só dos cata-ventos), acompanhados por uma Zillertal de litro, minha cerveja uruguaia favorita, versão oriental da Heineken que não deve nada para sua irmã holandesa.

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Com Ramón

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Estrada em obras no Palmar

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Caminhão na reta final para Cabo Polônio

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Lo de Peri

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Pôr do sol no Cabo

Dia 11: Cabo Polônio – La Paloma

Quarta-feira, 07/03/2018

Total: 52,69 km

Média: 14,4 km/h

Máxima: 27,7 km/h

Tempo pedalado: 3:39

Pegamos o primeiro caminhão de volta. A pedalada de manhã foi mais agradável que no dia anterior, a estrada era margeada por matos de eucalipto que davam sombra e proteção do vento e era um leve sobe-desce, que deixava aproveitar as descidas sem cansar muito nas subidas. Seguimos sem grandes acontecimentos até La Pedrera, com uma pausa para comer salame e amendoim embaixo das árvores, cantarolando uma música do Ventania: “Estou aqui sentado na beira da estrada, fazendo uma fogueirinha, enrolando uma palhinha, escrevendo essas linhas, vendo o caminhão passar...”.

Entramos em La Pedrera para o almoço. Reencontramos com o Christian, meu amigo suíço. Apresentei-o para a Débora, demos um passeio pela praia e fomos em um restaurante. Se a comunicação dele comigo era difícil, com a Débora era inexistente. Seguimos juntos os 12 km que faltavam para La Paloma.

Chegamos em La Paloma por uma entrada confusa com muitas rotatórias, em uma estrada agradável em descida no meio de um bosque de pinheiros. Fomos para o La Balconada Beach Hostel, o Christian normalmente acampava, mas nos acompanhou. La Paloma é a maior das praias do litoral norte uruguaio, mas o clima era que a temporada tinha acabado, pouca gente e a maioria das casas fechadas. Eu e a Débora tínhamos um programa certo lá: comer na Heladeria Popi, uma sorveteria incrível na avenida central. Comi sorvete de chocolate amargo com gotas de doce de leite e butiá, a Débora comeu doce de leite e maracujá. Sensacional! Terminamos o dia vendo o sol baixar no mar na praia La Balconada. Eu queria tomar banho, mas o vento estava forte e a praia tomada de algas e de umas esferas transparentes do tamanho de bolas de tênis, cheias de água. Pesquisando para este texto descobri que eram cápsulas ovígeras (bonito nome) do caracol negro, que contém entre 5 e 33 embriões do bicho.

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Popi Heladeria

Dia 12:  La Paloma – Punta del Este

  • Quinta-feira, 08/03/2018
  • Total: 93,06 km
  • Média: 13,7 km/h
  • Máxima: 33,5 km/h
  • Tempo pedalado: 6:46

A barra da Laguna de Rocha estava aberta ou fechada? Essa era a dúvida para o dia. Se estivesse aberta atravessaríamos um trecho de 12 km de areia e seguiríamos pela ruta 10; caso fechada, teríamos que arrumar alguém de barco para nos atravessar ou contornar pela ruta 9, um acréscimo de 60 km. Expliquei para o Christian em alemão batatônico meu temor: Meer und See vielleicht zusammen, aber ich weiss es nicht (mar e lago talvez juntos, mas eu não sei). Não tenho certeza se ele entendeu, mas pareceu que sim. Fomos pela estrada até onde deu, até que ficou muito arenoso para pedalar. O Christian tinha um aplicativo que indicava o caminho, supostamente pela beira era melhor que pela estrada. As condições da estrada deviam ser horríveis, por que pela beira foi muito difícil: o mar estava alto devido ao vento contra, a areia muito fofa e arrastamos a bicicleta por quase todo caminho, debaixo de sol e muito calor. O aplicativo indicou onde sair da praia e fomos por uma estrada de terra até a barra da lagoa, que para nossa alegria estava mesmo fechada.

A Laguna de Rocha é bem interessante. É cercada por campos gramados e quando está baixa é formada por vários corpos de água menores ligados entre si rodeados de areia e barro. O lugar onde a lagoa se conecta com o mar quando está cheia é bem visível, e dava para ver os respingos voando alto quando as ondas batiam. Já quase do outro lado havia uma grande quantidade de caranguejos, centenas, que fugiam quando passávamos empurrando as bicicletas.

Os 8 km até a ruta 10 eram de terra em más condições, com muitas costeletas. Em um campo vimos muitas emas ou ñandus, como são chamadas no Uruguai. Não almoçamos neste dia, apenas paramos para comer salame embaixo de uns eucaliptos e descansar um pouco. Já no asfalto, passamos pela famosa ponte circular de Laguna Garzon, e pedalamos vendo o braço da lagoa entre o mar e a estrada até José Ignácio.

Jose Ignácio é a praia dos magnatas que querem exclusividade e fogem do agito de Punta del Este. No caminho até a praia, várias placas indicam as lojas de grifes de alto padrão, que não são poucas. Subimos no farol, que tem uma vista incrível da península e das suas casas chiques. Além de aproveitar a vista, eu e a Débora conversamos sobre o que fazer quanto ao nosso acompanhante na viagem.

Nossa ideia era fazer uma viagem de casal, um terceiro elemento não estava nos planos. Além disso, a Débora sofria para seguir o ritmo quase sem paradas do suíço, e a impressão que tínhamos era que estávamos abrindo mão de parte da diversão. Decisões como onde e quando parar, comer e dormir preferíamos que pudessem ser tomadas só por nós, sem precisar discutir com outra pessoa. Me incomodava também que os dois não trocassem nenhuma palavra, e no seu jeito germânico o Christian não parecia fazer esforço para se comunicar com ela. Decidimos que eu precisava ser direto e explicar a situação, entender indiretas não é o forte dos europeus e eu já havia feito várias tentativas sem efeito. A Débora concordou em eu colocar a culpa nela e logo que descemos do farol chamei o Christian para conversar, pedi desculpas e disse que a Débora estava incomodada em viajarmos juntos por que estávamos em uma “couple trip”. Ele fez uma cara de quem não tinha entendido nada, eu suava frio e pensava em como me explicar, aí disse “romantic trip”! Vi nos olhos dele que a ficha tinha caído, ele disse que tudo bem e que compreendia.   Para mim foi um grande alívio pois a conjuntura me perturbava desde o dia anterior; estava com pena do Christian, imagino que deve ter sido duro passar quase incomunicável a viagem inteira e não queria ser rude, logo eu que era uma das poucas pessoas que conseguia ter alguma conversa com ele, ainda que mínima. Aliviado com a resolução em bons termos da situação, ainda pedalamos juntos até Balneário Buenos Aires, embora ainda tivesse um pouco de dúvida se ele tinha entendido mesmo o que eu disse. Ufa!

A diversão depois de Jose Ignácio era ver as casas na estrada. A arquitetura do litoral uruguaio é muito particular, caracterizada por casas com telhado de baixo ângulo ou só com o teto reto, uso de detalhes de madeira como sacadas ou pergolados e amplas janelas, tudo muito elegante sem perder a simplicidade. Conversávamos e ríamos com nossa indecisão, se quando fossemos construir nossa casa ela seria uruguaia ou caiçara nos moldes das casas de Ubatuba. O fim da tarde se aproximava e o movimento de carros tinha aumentado bastante. Chegamos em Balneário Buenos Aires e de cara eu não simpatizei com o local, uma praia pequena que parecia ter fechado tudo com o final da temporada. Fomos até o hostel que eu tinha reservado pelo Booking.com e surpresa(!), fechado e até com cara de abandonado. Peguei o celular e tinha uma mensagem da dona perguntando que horas chegaríamos, ou seja, ela ia abrir só para a gente. O lugar não era legal, e isso foi decisivo para resolvermos não esperar e seguir para Punta del Este. Faltavam 16 km, pode parecer pouco, mas depois de ter feito a travessia exaustiva da Laguna de Rocha e de um dia todo pedalando, isso é uma distância considerável.

Rodamos até La Barra e pensamos em parar ali, mas não achei nenhum lugar em conta nos sites de reserva. A Débora já estava com a língua de fora e eu tentava mantê-la motivada, ainda que para isso precisasse mentir um pouco na distância que faltava. Já era noite quando atravessamos o sobe-desce da Puente de La Barra, também conhecida como ponte ondulante. Desde La Barra pedalávamos em ciclovias, o que dava tranquilidade para pedalar de noite na rodovia. Ao longe contra o céu avermelhado, víamos a silhueta e as luzes de Punta Del Este. Ficamos um pouco perdidos e passamos na frente da Trump Tower, que tinha um painel enorme na frente com o filho do homem, com o mesmo bronzeado laranja e a franja inconfundível do pai. Entramos em um bairro e procurei um lugar próximo para ficar, acabamos no Del Barcito Hostel, muito bacana e com jeito de hostel de festa, com sala de cinema, bar e uma área de convivência enorme toda grafitada, mas sossegado pela baixa temporada. Como prêmio pelo dia longo nos demos uma janta e cervejas na Rotiseria Margaritas, do outro lado da rua.

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Areia fofa antes da Laguna de Rocha

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Braço da Laguna Garzón

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Farol de José Ignácio

Dia 13:   Punta del Este - Piriápolis

  • Sexta-feira, 09/03/2018
  • Total: 55,96 km
  • Média: 14,9 km/h
  • Máxima: 46,5 km/h
  • Tempo pedalado: 3:45

Nosso plano do dia incluía passar na Casa Pueblo em Punta Ballena, a 15 km de distância. Como o lugar abria só as 10 horas e a quilometragem do dia não era muita, aproveitamos para pedalar por Punta del Este de manhã.  Fomos ver a estátua Los Dedos, obra famosa do escultor chileno Mario Irarrázabal, e a tentativa de foto parecia um filme de comédia: dezenas de pessoas se acotovelavam e disputavam cada dedo para uma foto ou selfie, a maioria de excursões brasileiras.  No porto visitamos um mercadinho de peixes e foi difícil convencer a Débora a ir embora, tinha feito amizade com um lobo marinho enorme e não queria se separar do novo amigo. Dentro da água, muitos deles nos observavam com os olhos baços e presas pontudas, esses com uma cara pouco simpática. Seguimos sempre pela costaneira, até que o sol ficou muito forte e resolvemos parar. Compramos empanadas em um posto da Petrobrás e comemos olhando os navios de cruzeiro ancorados. Para nossa surpresa, até as empanadas de posto de gasolina brasileiro são maravilhosas no Uruguai. Gostamos muito de Punta del Este, esperávamos que fosse um lugar caro e elitizado, mas na verdade tem opções para todos os gostos e bolsos, e pedalar olhando o mar e a cidade com um reggae dub paulistano tocando na caixa de som da Débora foi um dos pontos altos da viagem.

O que tenho para dizer de ruim da Casapueblo é que é no alto de uma baita subida. De bom, que a escultura-habitável, como o autor, dono e construtor Carlos Páez Vilaró a chamava, é linda e em um lugar incrível, ocupando os penhascos de frente para o mar. Pena que a área visitável é pequena em relação ao tamanho do prédio, que funciona como hotel.  Cada canto é batizado com um nome, me chamou a atenção a placa do Rincón de Eduardo Galeano: sou fã do cara e o primeiro presente que dei para a Débora quando ainda nem éramos namorados foi o El Libro de Los Abrazos, comprado em Montevideo.

Saindo de Punta Ballena a Ruta Interbalneária se afasta do mar, e o movimento de carros aumentava com o avanço do dia, já que era início do final de semana. O vento estava mais brando que nos dias anteriores, mas ainda atrapalhava um pouco, de lado. Em 20 km chegamos no trevo para Piriápolis, na estrada chamada Camino de Los Arrayanes. No mapa essa estrada fazia um ângulo de 90 com a ruta interbalneária e seguia reta na direção do mar na maior parte da sua extensão, até fazer uma curva e desembocar em Piriápolis. A impressão que tivemos foi que seria uma pedalada plana ou até descendo para o mar, mas foi o contrário, era subir e descer ladeira o tempo todo. Nessa parte batemos o recorde de velocidade de toda viagem: 46,5 km/h. 

Chegar em Piriápolis é como voltar no tempo uns 30 anos. A cidade já viveu dias melhores mas perdeu relevância para Punta Del Este, mantendo os prédios e o calçadão como eram antigamente. Dá para dizer que tinha um certo charme, a rambla é muito bacana. Da época áurea também sobraram os preços, comida e estadia muito caras. Entrei no mar, comemos panchos e tomamos mate na areia. O pôr do sol foi mágico, todos na praia pararam para assistir e romperam em efusivos aplausos quando o último naco do astro-rei mergulhou no oceano.

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Los Dedos, lotado

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Novas amizades

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Piriápolis

Dia 14:  Piriápolis – Ciudad de La Costa

  • Sábado, 10/03/2018
  • Total: 84,54 km
  • Média: 16,8 km/h
  • Máxima: 41,6 km/h
  • Tempo pedalado: 5:01

Quando colocamos o pé para fora do hotel ouvimos uma música alta e clara: “Pedro onde cê vai eu também vou / Mas tudo acaba onde começou”... era um triciclo para três pessoas desses feitos com chassi de carro, bombando o Raulzito no som. Paulistas, viajavam com as jaquetas do moto-clube, chinelo de dedo e uma foto da Janis Joplin na frente do motociclo. Saímos sem ter o destino do dia definido. A Débora queria parar em 56 km, em Atlântida. Eu dizia que quando chegássemos lá decidiríamos, com a intenção de convencê-la a ir mais adiante, quem sabe até direto para Montevideo, a 110 km de distância. Nossos estilos de viajar estavam em leve conflito: ela preferia pedalar mais cadenciadamente, apreciando o entorno e as paradas, e considerava o local de chegada como a cereja do bolo que merecia ser apreciada. Para mim um bom dia era um dia todo em cima da bicicleta, sendo o caminho e as distâncias mais importantes que o destino. 

Fomos pela estrada da beira da praia até o Arroyo Solis Grande, que faz a divisa dos departamentos de Maldonado e Canelones. Como no dia anterior, a diversão era a observação das casas. Ali atravessamos a ponte e continuamos pela ruta interbalneária, não havia mais estrada contínua pela beira. As extensas planícies deram lugar para as coxilhas, subidas moderadamente inclinadas e bastante longas, um lugar até se chamava Cuchilla Alta. A estrada estava movimentada e os motoqueiros circulavam pelo acostamento, nos assuntando com os fininhos que tiravam. Paramos 35 km depois de Piriápolis para almoçar, a distância vencida era pouca, mas as subidas e o calor pediam. No Parador El Hornero, um restaurante de posto de gasolina, cometi pela segunda vez na viagem o erro de comer demais. Pedimos um Chivito al Plato monumental: por baixo maionese de batata, salada de alface, tomate e conserva de pepino e cenoura, no meio uma quantidade generosa de batatas fritas, por cima das batatas bifes com presunto, queijo e fatias de bacon, e no topo dois ovos fritos e azeitonas. Era uma montanha de comida e com gosto tentei a escalada. A sensação do resto do dia foi que podia acompanhar a Débora rolando pelo acostamento.

Mais 12 km pela Ruta Interbalneária e voltamos para a beira depois da ponte do Arroyo Solis Chico, em Parque del Plata. Costeamos o rio até a estrada dobrar e ficar paralela ao mar, com um braço morto bloqueando o acesso à praia. Conforme nos aproximávamos de Atlântida aumentava a quantidade de casas e a estrada ficava mais elevada, dando uma visão do oceano de cima. A Débora imaginava estar ali em uma das casas no inverno, na frente da lareira olhando as baleias passarem, só não conseguia decidir se na fantasia estava grávida ou tomando vinho. Logo adiante paramos para tirar fotos no edifício El Planeta, um hotel construído nos anos 30 que imita um barco. Fica entre engraçado e brega, uma versão náutica do estilo art decó.

Voltamos para a ruta interbalneária e conforme avançávamos a estrada ficava com mais cara de região metropolitana, com mais tráfego, pistas duplas e pintadas (grafittis e pichações) do Peñarol. Do Nacional não tinha, a torcida deles deve ser menos maloqueira. Depois da ponte do Arroyo Pando atravessamos a estrada por uma passarela de pedestres e logo em seguida pegamos a avenida Costanera em El Pinar, que apesar do nome não é na costa, mas vai até lá. Quando começamos a pedalar paralelo à orla o vento apertou, o que eram para ser os tranquilos 10 quilômetros finais do dia foram mais difíceis do que o esperado. Passamos pelo marco do Km 0 da rambla de Montevideo, onde começa a ciclovia / pista de corrida.

Tivemos uma boa surpresa com a hospedagem este dia. Reservamos no meio do caminho um quarto no Bidieen Inn, escolhido pela localização sem dar muita atenção para as instalações. O lugar era uma propriedade enorme, com oliveiras no pátio gramado, um jardim florido caprichado e tudo cuidado nos mínimos detalhes, das plantas aos móveis do quintal. Os quartos e salas de uso comum eram no segundo andar da casa, tudo decorado num estilo rústico, moderno e elegante, e o nosso aposento foi disparado o melhor que ficamos na viagem. Tinha também uma cadela mastim-napolitana, com ares de besta-fera, mas estava velha e só andava para lá e para cá roncando ao respirar. Minha intenção inicial era ir até a praia mas acabei passando o final de tarde mateando com o proprietário e conversando no pátio.

A noite saímos para comprar cerveja e empanadas. Ciudad de La Costa é muito tranquila, com a maioria das ruas de terra, e tivemos dúvida se as casas serviam para veraneio ou se as pessoas moravam ali o ano todo. Do lado do supermercado havia uma loja que deixava ver por uma vitrine frondosos pés de cannabis, e um casal de dread locks cuidava da lavoura – efeitos da legalização uruguaia. Nos abastecemos de cerveja e compramos empanadas fritas no restaurante Tunquelen, que levamos para comer no pátio do Bidieen, sob as estrelas e investidas da fera napolitana. Sempre achei que o pastel era uma iguaria brasileira e que não existia nada no mundo capaz de competir com ele; com o orgulho nacional ferido devo admitir que as empanadas fritas deixam nosso pastel no chinelo.

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Pedro, onde “cê” vai eu também vou

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Edifício el Planeta em Atlântida

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Bidieen Inn

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Dia 15:  Ciudad de La Costa - Montevideo

  • Domingo, 11/03/2018
  • Total: 31,09 km
  • Média: 12,0 km/h
  • Máxima: 22,9 km/h
  • Tempo pedalado: 2:35

Era para ser uma entrada tranquila e triunfante em Montevideo, só 20 km pela rambla, misto de calçada e ciclovia.  Só faltou combinar com o vento! O dia mais ventoso e com o pior ângulo de incidência, totalmente contra o nosso avanço. Seguíamos em baixa velocidade, a Débora vermelha pelo esforço.  Muitas pessoas passeavam, corriam ou pedalavam pelo calçadão no domingo ensolarado, e a quantidade delas aumentava com a proximidade do centro.  Na praia de Pocitos me perguntava se ali era o Rio da Prata ou o Oceano Atlântico. Só dias depois descobri que o fim oficial do rio era logo depois de Punta del Este, fazia um bom tempo que já estávamos na margem do Prata.

Se olhar no mapa, o litoral possui um contorno ondulado:  as praias se alternavam e entre elas, em cada curva de fora, dava para ver Montevideo no horizonte. Logo depois de Carrasco vimos a linha de prédios pela primeira vez. Tão perto e tão distante! O vento ficava cada vez mais forte, precisamos fazer uma pausa perto da Playa de Los Ingleses para repor as energias com uns salames, olhando o rio e a cidade ao longe. Já nos sentíamos dentro de Montevideo, mas o ponto oficial de chegada era a estátua de Artigas, no centro. Serpenteamos pela rambla até o Puertito del Buceo. No primeiro dia de viagem conversamos com um sujeito em um posto de gasolina perto de La Coronilla, que disse que tinha um negócio de tortas fritas no puertito, do lado da pista de skate. Nos convidou para ir lá e insistiu usando a expressão los invito, o que queria dizer que íamos comer de graça. Ele falou algo que não entendi quando disse que provavelmente estaríamos lá no domingo, mas me dei conta do que era quando chegamos: estava fechado! Era só um trailer com o nome dele, “Pepe: el rey de la torta frita”, mas foi pena não reencontrar o amigo e fazer uma boca livre. Chegamos na praia de Pocitos, ponto domingueiro tradicional, com o calçadão muito lotado. Circulamos Punta Carretas e depois do Parque Rodó ingressamos no que é popularmente conhecido como a Rambla de Montevideo. O vento furioso formava ondas enormes que batiam na amurada e esguichavam água, a Débora tomou um belo banho enquanto eu filmava logo atrás.

Saindo da beira o centro da cidade estava vazio, como sempre lá aos domingos. Subimos para o marco final: na praça Indepedência o General José Artigas, Protetor dos Povos Livres, nos esperava montado em seu cavalo de bronze, cercado por 33 palmeiras que representam os Treinta y  Tres Orientales, revolucionários que fizeram a independência uruguaia.

Chegamos!!!

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Montevideo a vista

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Linha de chegada

 

 EPÍLOGO

Como nem só de pedalar se vive a vida, no dia da chegada ainda corremos para pegar o último horário de visita no Teatro Solis e fomos matear em Pocitos. Ficamos mais um dia em Montevideo e depois fomos para Colônia do Sacramento de ônibus, momentos que deixo fora do relato, já que este se pretende uma história sobre duas rodas.

Fechamos nossos dias de bicicleta na parrilla Pitanguero em Pocitos, uma churrascaria de barrio frequentada pelos moradores locais, na maioria velhotes de cabelo branco. Um assado tradicional: boniato, chinchulin, asado de tira (para os leigos, batata doce laranja, intestino delgado e costela cortada fina, respectivamente) e morcilha preta. Entre mordidas e goles na cerveja rimos e lembramos de causos do caminho, e quase cheguei a lamentar que tinha acabado. Quase, mas não o fiz: as duas pernas da viagem, primeiro sozinho no litoral gaúcho, depois acompanhando pela Débora no Uruguai, uma tão diferente da outra, foram tão boas que só permitiam sentimentos de alegria e realização. Somei a quilometragem medida no velocímetro e anotada no meu caderninho:  1199,97 quilômetros! Primeiro pensei que faltaram 30 metros para os 1200. Depois pensei que para ser honesto, se queria rodar 1200, devia começar do zero de novo. Onde será a próxima!? 

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  • 1 ano depois...

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