Membros de Honra Jorge Soto Postado Março 11, 2006 Membros de Honra Postado Março 11, 2006 Navegando pelo Delta do Parnaíba Ir de barco ou de busao? Eis a duvida cruel q tive ao decidir como me trasladar os quase 150km q distam da cidade piauiense Parnaíba até sua vizinha maranhense, Tutóia. Já haviam me alertado q de busao a viagem era breve - em torno de 2hrs - e cômoda, enquanto q de barco era tediosa e demorada. Algo de 10hrs! Com desvantagens tão obvias assim, ir de barco tinha apenas a seu favor o fato de percorrer um trecho significativo dos 2700 km2 do Delta do Parnaíba, espetáculo natural resultado do derradeiro suspiro no mar do Rio Parnaíba, ilustrado por 77 ilhas, milhares de igarapés labirínticos, manguezais, dunas, praias desertas, fauna riquíssima e um povo com cultura singular. Ir de barco ou de busao? Sempre contrariando o bom senso, a resposta era mais q óbvia, ainda mais em se tratando de uma rara oportunidade - antropologicamente falando - de conhecer este trecho selvagem da costa entre o Piauí e Maranhão. São 10hrs da manha de quinta-feira e o sol abafado castiga a pele no Porto das Barcas, simpático píer cercado de um casario colonial decadente, hj transformados em bares ou agencias turísticas q fazem do porto seu pto de partida p/ passeios pelo Delta. Já não tão movimentado qto inicio do séc passado, o Porto das Barcas ainda continua sendo porta de entrada do Delta. Enquanto aguardo minha amiga Dani, observo o pouco movimento do local - inferior ao da noite, bem mais agitado - mesmo sendo dia de saída do "Cidade Tutoia", único barco de linha q faz o trecho Parnaíba-Tutoia (e vice-versa), em dias alternados. Por sorte, minha amiga mochileira chegou um pouco antes da barca partir. A mineira Rosa já estava bem acomodada numa rede bem no meio da embarcacao, onde haviam outras sobrando p/ nós e outros gringos q logo chegaram. Os demais passageiros eram locais repletos de pacotes, principalmente gente idosa. A barca (ou gaiola, chalana, recreio, etc) lembra muito seus similares na Amazônia. É simples e não muito gde, com 2 andares básicos, sendo o de baixo reservado às maquinas e, impregnado de cheiro de oleo queimado, havia tb um diminuto "bar" q se resumia a um balcão de madeira e um enorme isopor no chao. Felizmente, tínhamos algo pra lanche alem de nossa própria água p/ consumo, imprescindível! Assim, deixamos devagar a pequena cidade pelas águas mansas - ora barrentas ora escuras- do Rio Igaraçu, um braço maior do Parnaíba. O calor é um estimulo à preguiça e td mundo parece se espreguicar em suas redes afim de passar morosamente o tempo; enquanto Rosa e Dani lêem um livro, apenas me resigno a deitar na rede e apreciar a paisagem q se descortina diante mim, ilustrada de campos de pastagens sem-fim e pipocadas de algumas casinhas aqui ou acolá. Forrando os mesmos, milhares de carnaúbas se destacam da horizontalidade da paisagem. Esta palmeira nativa já teve seu apogeu no passado, afinal dela se aproveitava tudo, desde seu palmito, tronco, folhas e ate seu óleo. Alguns bois transitam por este quadro, assim como lavadeiras e pescadores exercem seu duro oficio rente o leito do rio. Logo, as gdes e pequenas fazendas ficam p/ trás e parece estarmos entrando definitivamente em terreno selvagem, onde se destacam varias praias fluviais e algumas belas dunas, cuja coloração alaranjada contrasta com o esmeralda da densa mata ao redor. Aqui, Dani dá uma dura bronca nos gringos - dois suíços de meia idade - q fumavam freneticamente e jogavam as bitucas no rio, havendo um cesto de lixo bem na frente deles. No leito, peoes lavam seus cavalos a contragosto dos bichinhos, enquanto no rio algumas canoas e jangadas com velas remendadas, feitas de retalhos, cruzam pela barca, sentido contrario. O aceno aos pescadores é sempre gentilmetne retribuído pelos seus ocupantes, voltando quiçá de mais um dia de batente do mar. Por volta do meio-dia a barca encalha num banco de areia. O rio aqui é raso e a hábil manobra de Seu Joao não bastou p/ fugir à esse imprevisto. Tb pudera, em alguns trechos a derrubada de arvores (e mangue) por fazendeiros próxima a margem proporciona o assoreamento dos rios e, conseqüentemente, seu alargamento, tornando-os rasos. E pelo q ouvi dos passageiros, barca encalhada parece ser rotina, assim como a embarcacao sair da rota apenas p/ buscar algo na margem. Haja paciência de Jó. O jeito foi esperar quase uma hora, pacientemente, a maré subir p/ voltar a andar. Enquanto isso, deito na rede onde tiro um breve cochilo. Novamente em movimento, não demorou e já estamos no Rio Parnaíba, já bem mais largo e amplo. É a maior "avenida" daqui e por onde transitavam outros poucos barcos de diferente calado. Não é a toa q é o 2º maior rio do nordeste depois do São Francisco. A medida q descemos o rio, os horizontes se ampliam de tal forma q a impressão q se tem é estar quase proximo do mar devido as enormes ilhotas q vão surgindo. Mas não, e é exatamente esta particularidade q faz deste rio o q é. Todo rio deságua no mar numa foz, já o Parnaíba deixa de ser um rio só bem antes de chegar ao Atlantico e se ramifica em 5 braços principais q são Igaraçu, Canárias, Caju, Carrapato e Tutoia, e seu leito multiplica-se em dezenas de ilhas, igarapés, manguezais, dunas, praias e fauna abundante. Visto de cima, o formato deste conjunto se assemelha a um triangulo invertido, ou à letra grega Delta. Similares no mundo? Apenas o Nilo, no Egito, e o Mekong, no Vietnã. Logo adentramos um dos muitos braços de rio no meio deste labirinto vegetal, agora com paisagem de puro mangue, onde garças e outras aves descansam nos galhos da densa mata ao redor. Bem acomodaddos nas raízes altas sob a lama espessa, curicacas, gaviões e colhereiros observam atentamente nossa passagem. E assim a viagem prossegue, calma e tranqüila, onde apenas o ruído intermitente do motor quebra o silencio q paira no ar. A ansiedade toma conta de mim, pq não dá pra ficar somente deitado na rede, é ate angustiante. Mas tb não dá pra transitar constantemente num emaranhado de redes e cargas naquele espaço exíguo. O jeito é as vezes se trasladar "por fora", ou seja, se agarrando pelas laterais da embarcação, com o risco de cair no rio. A maioria dorme, mas eu fico ora apreciando a paisagem, ora batendo papo com minhas amigas, ora batendo fotos. Destaque pro "banheiro", q é uma coisa de louco: q não passa de uma precária cabine c/ um vaso de plástico furado onde se vê o rio abaixo. Estando bem acima do motor do barco, me pergunto como as mulheres conseguem ficar mais tempo p/ suas necessidades dentro daquele cubículo q mais parecia microondas, devido ao calor infernal em seu interior. O enorme igarapé se amplia em meio à mata e, numa curva de rio, eis q surge no meio do verde um sinal de civilização, traduzido em pequeninas e simples casas de madeira. Eram 16:20 e chegávamos a Carnaubeiras, onde faríamos uma breve parada. Parece q o povoado td se aglutinou p/ receber o barco, enquanto algumas crianças brincam no rio, pulando do q restou de antigos e rusticos trapiches. Todos os passageiros descem aqui p/ esticar as pernas, mas a gde maioria vai ficar por aqui mesmo. Muitos pescadores exibem ou embarcam seus "engradados de carangueijos", principal fonte de renda do povo daqui, afinal o q não falta aqui é mangue. O chão do pequeno cais esta forrado destes bichos ainda vivos, amarrados de 4 em 4, no q se chama de uma "corda", e pelo q recebem menos de 50 centavos!! Vida dura de um trabalho insalubre, se levarmos em conta o duro q é passar o dia chafurdando na lama e encarando pernilongos p/ apanha-los. Nesse breve pit-stop, eu e as meninas damos uma rápida volta pelo vilarejo, mas não há muito o q ver. Carnaubeiras é um ovo sem atrativo algum no meio da mata. Tomamos um refri num casebre improvisado como bar, p/ logo retornarmos à barca q anuncia sua partida. Com menos passageiros, temos o convés praticamente livre de redes e fica mais fácil transitar. Melhor assim. E assim a viagem prossegue sinuosa em meio aquela avenida aquática. O verde denso q margeia todos os percursos fluviais mais os próprios rios e igarapés formam uma paisagem linear, q não sofre alterações ao longo dos kms. Como o horizonte é quase imutável, tem-se a impressão de não sair do lugar. Parece q o tempo pára, não há motivo pra pressa, restando somente o relativo prazer de apreciar a paisagem. Tanto q o tempo e distancia são medidos em dias/barco. Eu e Dani vamos p/ frente da barca, onde temos a oportunidade de conversar com o "motorista" , Seu João, q direciona o leme do barco numa cabine tão apertada qto àquela na qual descansa, logo atrás da primeira. Nesta, uma pequena cama se espreme junto uma escrivaninha ornada com uma enorme arcada de tubarão, Seu João nos conta da vida no Delta, e q o fluxo de barcos por ali já foi bem maior, q mesmo sendo o único q agora faz o trajeto já não compensa como antes. Mas como é o único q sabe fazer, não saberia viver de outra maneira. So não sabe precisar ate quando. Conhecedor da região como ninguém, sabe precisar cada meandro do delta e distinguir cada ilha pelo nome. Ilhas do Manguinho, Mangue Seco, Barracoa, do Papagaio, do Enforcado, do Carrapato, da Desgraça, e muitas outras q p/ mim não passavam de amontoados enormes de verde no meio do rio, Seu João diferenciava cada uma com a argúcia inata de quem já perdeu a conta de qtas vezes navegou ali. A famosa Ilha do Caju, cobiçado de$tino ecoturista, teria passado desapercebida p/ nos não fosse pelo aviso dele. Assim como nos falou da abundante fauna nas águas do rio, onde espécies como o peixe quatro-olhos, pescada amarela, cações, baiacus e muitos outros convivem com tartarugas e ate jacarés, mangue adentro. Como um espelho, as aguas límpidas refletem o ceu equatorial azul e a floresta, densa e majestosa, se apresenta sem pressa, a cada curva do caminho, onde novamente o rio parece se ampliar. No alto das arvores bandos de guarás rasgam o céu com sua coloração escarlate, fruto de sua dieta exclusivamente de crustáceos. Fora isso, apenas alguns botes davam o ar da graça, escondidos no meio dos igarapes. Abarrotados de catadores de carangueijos, deviam estar retornando p/ suas respectivas vilas após mais um dia exaustivo de serviço. Enquanto isso, no barco, um jovem da tripulação passa recolhendo os R$30 da passagem. Por volta das 17:30 há uma breve parada em Barreirinha, mais um daqueles povoados perdidos na mata. Aparentemente atracamos numa margem no meio do nada, sem sinal de civilização nem habitacao alguma, onde muitos restos de crustáceos e ate algum lixo deixavam claro ali ser pto de encontro de pescadores. De repente, do meio da mata e por meio de uma trilha enlameada, aparece o único senhor q deixou uma carga p/ ser levada. Pra depois se embrenhar novamente na mata, onde o vilarejo de Barreirinha quiçá se mostrasse maior. E prosseguimos a viagem, já com temperatura mais amena, habitual de final de tarde. As margens dos barrancos deste trecho estão forradas de uma planta q consiste num caule grosso e termina numa gde folha, a uninga, típica de mangue. Somente as 18:40 tivemos nossa ultima parada, desta vez no rio mesmo, proximo de uma enorme ilha. Pois é, aquele era o vilarejo de Barrinha, enfiado ilha adentro, onde famílias nativas de pescadores levam a vida no balanço dos rios. Na margem da mesma, uma canoa se aproxima embarcando duas mulheres com crianças no colo. E a viagem prossegue calma, sem pressa alguma, em meio a uma avenida de água q ora se afunila ora se alarga. Enquanto as pessoas se distraem jogando dominó ou batendo papo, eu, Dani e Rosa deitamos nas redes, no ócio mais justificado do mundo e em plena contemplação da revoada de bandos de marrecos, garças e socós rasgam o ceu naquele final de dia iluminado de tons alaranjados. Escurece, finalmente. Navegar no escuro é uma experiência meditativa e fascinante, ainda mais qdo surge uma enorme lua cheia q se reflete no majestoso e calmo espelho dágua. Sons da algazarra promovida por macacos-prego oriundos da mata tornam a experiência única. Uma brisa mais forte toma conta do convés, indicando q estamos num trecho mais amplo e aberto, provavelmente bem proximo do mar onde as águas doce e salgada se mesclam. O vento traz o frio q nos obriga a vestir agasalhos, assim como traz algumas pequenas marolas q fazem a embarcação sacolejar, balançando as redes. Subitamente, eis q surgem a nossa frente pontos faiscantes de luz em meio a total escuridão. É Tutoia, nosso destino final, onde o emaranhado de ilhas do delta se desfaz. E onde finalmente atracamos quase as 21hrs. A pequenina cidade parecia festejar algo dada a movimentação dos locais em meio aos quiosques e o belo casario dali. Todos descem no cais, onde um borburinho já se formara antes mesmo de atracarmos e q ganha volume com o alvoroço de meninos esperançosos de ganhar algum troco carregando bagagem ou indicando hospedagem. E é justamente com um deles q conseguimos dica de pousada, a Pousada dos Guarás, proximo dali a um precinho bem camarada. Assim, eu, Rosa, Dani e os suíços dávamos inicio a uma curiosa trupe q, simbioticamente, perduraria pelos dias sgtes rumo Rio Novo, Caburé e Barreirinhas. Mas ate ali era fim de viagem pelo delta. Atualmente, barcas como o Tutoia, q singram o Delta do Parnaíba de cabo a rabo, estão cada vez mais vazias, levando em sua maioria turistas. As recentes estradas trouxeram uma alternativa mais rápida a seus moradores da região. Mas como disse Seu João, quiçá haja ainda esperança pra estas outrora tradicionais embarcações, sustentando-se mais como barcos de passeio q de turismo. Mas mesmo assim, segundo ele, não compensa. Ele apenas mantem sua barca no suave balanço dos rios por estar irremediavelmente ligado ao passado, e fica difícil tecer previsões otimistas de sua existencia futuramente. Essa aparente falta de rumo traduz o espírito aventureiro de quem decide singrar esse labirinto de natureza tão intensa, múltipla e singular q é o encontro do Parnaíba c/ o mar, o único delta em mar aberto da América. Citar
Membros de Honra casal100 Postado Março 12, 2006 Autor Membros de Honra Postado Março 12, 2006 Jorge, Vc me fêz viajar, neste sábado melancólico!! Muitoooo bom seu texto, parabéns.. Mário Citar
Membros de Honra filipebond Postado Outubro 6, 2008 Membros de Honra Postado Outubro 6, 2008 Caramba Amigo, Muito bom o seu texto... esta de parabéns. Fiquei super curioso pra ver as fotos, você tem como disponibilizar? Abraço Citar
Membros Marciaso Postado Junho 19, 2019 Membros Postado Junho 19, 2019 Morei em Tutoia de 67 a 70, saí de lá com 5 anos. Nunca esqueci....Voltarei lá em julho e estava pesquisando se ainda havia a barca, que era o único transporte na época. Saí de lá por ela e desejo retornar por ela. Fiquei muito feliz em saber que posso voltar lá via barca! Ai, que emoção.... Obrigada! Citar
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