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Nos anos 1980 viajar para o exterior era um privilégio para poucos brasileiros. Economizar dinheiro não era fácil e seguros de viagem, cartões internacionais e roteiros fora do eixo Argentina-Europa-EUA eram um acontecimento. Então, em 1984, decidi visitar a Bolívia e o Peru, destinos acessíveis por terra e ao meu bolso. Bancário, investindo no finado “overnight” pra combater uma inflação de 200% ao ano, eu penava para juntar dinheiro pra viajar. Em meados de 1986, porém, um milagre: o Plano Cruzado reduziu a inflação, valorizou a moeda, e, como a Bolívia vivia um período inflacionário trágico, colaborou para a fábula de o cruzado ser uma “moeda forte” por lá. Peguei 30 dias de férias, empacotei algo de roupa numa mochila, peguei um cobertor da minha mãe e pus o pé na estrada: planejamento zero, roteiro em aberto, o endereço da minha correspondente em La Paz e... 105 dólares no bolso! Pouco, mas eu contava com minha inigualável experiência de vida e astúcia para me tirar de qualquer enrascada. Afinal, eu tinha 20 anos...

A América Latina dos anos 80 era um lugar de ditaduras grotescas, de muitas promessas não cumpridas e que os EUA viam como uma despensa de portas abertas. Caso a porta ameaçasse se fechar, os Marines vinham pôr ordem nas coisas. Algumas palavras-chave explicam a vida nessas paragens naquela época: FMI, Fundo Monetário Internacional; revolução nicaraguense; modelo cubano; Pinochet; Stroessner; Sendero Luminoso; Guerra das Malvinas. Para aqueles com mais de 45 anos, essas palavras trazem recordações muito vivas.

Nesse contexto, com meus 105 dólares e a cabeça cheia de idealismos e de vento, lá fui eu desbravar a América, sem saber exatamente como chegar e muito menos como voltar. Quarenta e três dias depois, oito quilos mais magro, bati na porta da casa da d. Adelaide, e ela me recebeu com um “Filho, mas o que é isso?!” Eu tinha percorrido 7.000 km entre planícies, montanhas, desertos e lagos, visto tristezas inaceitáveis e maravilhas inesperadas, e começava a entender a vastidão deste mundo. Foi a primeira linha do meu diário de viagem.

PS: Esse breve diário relata impressões de um menino de 20 anos, numa viagem feita 30 anos atrás, num país surpreendente que mudou tanto quanto o mundo ao seu redor. Aqui não há julgamentos nem comparações. Só lembranças de uma viagem fascinante.

 

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Travelling abroad was a privilege for a very few Brazilians in the 1980s. Sparing money was no easy task. Travel insurances, international cards and trips out of the Argentina-Europe-USA axis were a real event. So in 1984 I decided to visit Bolivia and Peru, which I could reach overland with not much money. A bank clerk at the time, I invested my money in the late "overnight funds”, which barely enabled me to catch up with a 200% a year inflation. I struggled badly to spare money for the trip. In the summer of 1986, however, a miracle took form: the “macroeconomic Cruzado Plan” reduced inflation and stabilised Brazil’s currency. Bolivia experienced a tragical inflationary period and our new "hard currency" would buy me millions of Bolivian pesos... I got my 30-day holiday period, stuffed my rucksack with t-shirts and light coats, grabbed a blanket at my mom’s, and hit the road: no planning, open itinerary, the address of my penpal in La Paz and ... US$105 in my pocket! Not much, but I relied on my unparalleled life experience to get me out of whatever trouble showed up. Afterall, I was... 20!

Latin America in the 1980s was home to grotesque dictatorships, and many unfulfilled promises, which Unce Sam saw as a no-man’s-land where it was master and commander. If someone dared think differently, Marines would come over and get things back on track. Some key words explain life in these quarters then: IMF, International Monetary Fund, the Nicaraguan revolution, the Cuban model, Pinochet, Stroessner, Sendero Luminoso, Falklands war. For those aged 45+, these words mean a lot.

In this context, with my $105 and a head full of idealisms, I set off to explore America without knowing exactly how to get to destination, let alone how to get back from there. Forty-three days later, unshaved, eight kilos leaner, I knocked at my mom’s and she welcomed me with a “Son, but... WHAT IS THIS?! " I had travelled 7,000 kilometres through plains, mountains, deserts and lakes, had witnessed unacceptable miseries and marvelled at unexpected wonders, and had begun to realise how vast this amazing world is. It was the first line of my travel log.

PS: This short journal reports impressions of a 20-year-old boy on a journey made 30 years ago, in an amazing country that certainly has changed as much as the world around it. There are no judgments or comparisons here. Just memories of an amazing trip.

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ITANHAÉM-SP-BAURU-MATO GROSSO-PUERTO QUIJARRO

Saí de Itanhaém rumo à Estação da Luz, em São Paulo, para pegar um trem para Bauru com destino a Corumbá, atravessando o Pantanal. No trem, escutávamos nos radinhos a pilha os jogos do Brasil na Copa de 1986. No Pantanal, do trem eu via bandos enormes de pássaros, formigueiros de mais de metro e um que outro veado campeiro observando desconfiado o trem barulhento. À noite o vento cortante passava pelas frestas das janelas emperradas, gelando até os ossos. Lá fora, a Via Láctea se exibia magnificamente naquele canto esquecido do Brasil. Cansados, os passageiros pouco notavam aquela maravilha. Cidadezinhas poeirentas, mal iluminadas, carros de boi bamboleantes, boiadeiros banguelas, lama, mato, velhos sovados e crianças saltitantes eram a paisagem diária. Das casas ao lado da linha do trem, os nativos perguntavam: “De onde você é?”. “De são Paulo!”. “Ah! São 2 da tarde lá!”. Os moradores davam as horas já com o fuso horário da região de cada qual. Em Corumbá passei a noite em um restaurante decadente onde todos falavam portunhol, num ambiente de calma tensa. Afinal, aquilo era o faroeste brasileiro.

No dia seguinte, ônibus até a fronteira. A rua asfaltada acabava onde começava a Bolívia. Em uma guarita com alguns soldados bolivianos apresentei meu passaporte e o visto (sim, precisávamos de visto!). E pronto, estava na Bolívia! E agora? Agora, a Puerto Quijarro, para pegar o Trem da Morte!

 

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ITANHAÉM-SÃO PAULO-BAURU-PANTANAL-PUERTO QUIJARRO

I left Itanhaém for São Paulo’s Luz station, to catch a train to Bauru on my way to Campo Grande, crossing the Pantanal. On the train, we followed Brazil’s matches in the 1986 Football World Cup on battery-powered radios. Flocks of birds paraded at the Pantanal’s huge savannah, one-metre-high anthills popped up everywhere and lonely pampas deers watched the train suspiciously. At night the biting wind blew through the cracks of jammed windows and froze us to the bones. In that gods-forsaken land, the Milky Way displayed itself magnificently. But weary passengers took little notice of that marvel. Poorly lit towns, wobbling ox carts, toothless cowboys, and mud, bush, battered elders and bouncy kids shaped the landscape. From houses siding the railway, locals asked “Where you from?”. “From São Paulo”. “Oh. It’s 2 pm there!”. They provided the time considering the respondent’s time zone! In Corumbá I spent the night in a decaying restaurant where the lingua franca was PortuñoL. A tense ambience: after all, that was the very Brazilian Far West. The next morning I headed for the border on a bus. The paved way finished where Bolivia started. I produced my passport in a sentry-house with a few Bolivian guards, they checked my visa (yes, we needed one then!) and, that was it! I was in Bolivia! Now what? Now, on to Puerto Quijarro, to catch the Tren de la Muerte (the “Death Train”).

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QUIJARRO-SANTA CRUZ- ALTIPLANO-LA PAZ

Quijarro era feia e triste. Fiquei em uma pousada barata, tocada pela mãe e suas filhas. Fui à estação de trem comprar passagem para Santa Cruz, mas as notícias não eram boas: o trem tinha descarrilado e outro só dali a dois, três, cinco dias... Por algum motivo, os ônibus também não sairíam. Solução: ir à estação todos os dias para tentar comprar passagem.

A estação de trem era uma plataforma rasa, com um pequeno guichê. Lá conheci Alex, um capixaba ex-morador de Londres que tinha viajado bastante por Europa e Marrocos. Conversávamos quando o chileno Osvaldo veio se oferecer para revezar conosco na fila dos estrangeiros para comprar passagem. Logo notei um japonês, sentado num bote de alumínio (!). Isamu não sabia o que estava acontecendo. Expliquei em inglês, mas ele queria “aprender espanhol”, e usava um dicionário espanhol-japonês para se comunicar. Ali começamos a montar nosso time. Naquela tarde conseguimos nossas passagens.

 

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QUIJARRO-SANTA CRUZ-HIGHLANDS-LA PAZ

Quijarro was ugly and sad looking. I stayed in a cheap hostel, run by a 40-something lady and her daughters. At the the train station the news was no good: the train had derailed and the next one would be there within two, three, five days. For some reason buses would not be available either! I’d have to go the train station every day and try my luck if I wanted a ticket.

The train station was a low platform, with a barred ticket window at a tiny cabin. The third day I met a Brazilian guy, Alex, who had lived in London and had travelled Europe and Morocco. We were approached by Osvaldo, a Chilean fellow who suggested we took turns in the foreigners’ line for tickets. Soon later I noticed a Japanese lad sitting in an aluminum boat nearby (!): Isamu didn't know what was going on. I talked in English, but he wanted "to learn Spanish" and used a Spanish-Japanese dictionary to communicate. My bond with those guys started there. And we got our tickets that day.

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As paisagens mais impressionantes estavam reservadas pra essa parte da viagem. O grande lago, majestoso como poucas obras da natureza, é fonte de vida, lendas e beleza. Mas foram as condições do povo curtido por sol, frio e trabalho impiedoso que mais me chamaram a atenção.

 

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The most striking landscapes were waiting for me in this part of the trip. The great lake, majestic as few works of nature can be, is source of life, legends and beauty. But it it was the folk's conditions, a people battered by sun, cold and hard work what appealed to me the most.

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Fui ao consulado brasileiro saber das condições para me repatriarem: voltaria num avião da FAB que saísse quando saísse, pagaria os gastos no Brasil e ficaria 10 anos sem visitar certos países. Negócio da China! Então vendi parte da minha roupa no Mercado das Bruxas, aceitei os 100 dólares do pai da Solange e peguei o ônibus para Santa Cruz. Comprei um saco enorme de pães, enchi meu cantil, e era o que tinha até o destino. Fiz a viagem com uma infecção num dente molar, que me derrubou. No ônibus, uma mestiça gordinha de uns 40 anos, com tantos assentos vazios, veio de sentar ao meu lado... Estranhei, claro. Cinco minutos depois ela estava gritando lamúrias no meu ouvido e subindo no meu colo! Afastei a mulher, peguei minha mochila e fui pro fundo do ônibus. E ela se lamentando, e meu dente latejando, e minha cabeça explodindo! Dormi. Quando acordei, lembrei que tinha deixado os pães e meu estilete no bagageiro do assento da frente! Voltei lá e não estavam mais! Eu e a mulher começamos a bater boca, ninguém se entendia, e um familiar dela veio jurar que “eram inocentes” ... Enfim, comprei mais pães e segui. De Santa Cruz, mais uma rodada de Trem da Morte. Mais um dia de pescoço em pé! E, finalmente, Puerto Suárez. E a fronteira. Antes de sair do trem, uma blitz da Polícia Federal: “Cadê a coca, moleque, ca-dê-o-pó!?” Uns caras com metralhadoras, à paisana, foram revirando minha mochila e fui catando roupa pelo assoalho do vagão... já na rua, vi um policial com uniforme estranho em cima de uma caixa de madeira: “Chefe, pra que lado fica o Brasil?”. “Você já tá no Brasil, rapaz!”. Ufa! Faltava “só” metade do caminho!

 

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I went to the Brazilian consulate to discuss the conditions of my return to Brazil: I’d catch an Army’s plane whenever it departed, I’d pay the expenses in Brazil and would not be allowed to visit certain countries for as long as 10 years. Nah! Then I sold part of my clothes at the Witches' Market, took the $100 that Solange's father offerred me and took the bus to Santa Cruz. I bought a huge bag of bread, filled my water canteen, and that was all I had to get to the border. I set off with an excruciating tooth infection, which knocked me down. On the bus, a chubby mestiza well into her 40s took the seat by my side, despite the many seats available. Five minutes later she was wailing and jumping onto my lap! What the hell! I pushed her aside, grabbed my backpack and went to the back of the bus. She kept moaning aloud, my tooth throbbed, my face was burning! And I fell asleep. When I woke up, I noticed I had left my bread and my knife on the luggage rack where I was before. When I got there, both were gone! I started arguing with the woman, a bloody mess followed, one of her relatives came around to pledge "non guilty", and... Well, I bought more bread and moved on. From Santa Cruz, another round of Tren de la Muerte and yet another day with a stiff neck. Then Puerto Suárez, at long last. And the border. Before exiting the train, a blitz of the Brazilian Federal Police: “Where's the snow, boy, whe-re-is-it!?" A few guys in plain clothes handing machineguns started scavenging through my backpack. Five minutes later my clothes were scattered around, but no “snow” on me. Out on the street, I saw a policeman in a strange uniform on top of a wooden box and asked: "Which way is Brazil?". "You ARE in Brazil, mate!". Phew! "Only" half way to go!

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