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Cego e outro que o conduzirá correrão 120km em 24 horas


MariaEmilia

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http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2009/11/20/cidades,i=155862/CEGO+E+OUTRO+QUE+O+CONDUZIRA+CORRERAO+120KM+EM+24+HORAS+NO+PANTANAL.shtml

 

[align=justify]Cego e outro que o conduzirá correrão 120km em 24 horas, no Pantanal.

A dupla será acompanhada bem de perto por cobras, jacarés e onças. Aventura será tema de documentário em que a superação é o personagem principal.

 

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Primeiro, foi a viagem a Paraty (RJ), cruzando a Estrada Real — que parte de Minas Gerais em direção ao litoral do Rio de Janeiro. Os dois, que mal se conheciam, venceram 1,7 mil quilômetros pedalando uma bicicleta Tandem, aquela comprida que leva duas pessoas. Chegaram esbaforidos, esfolados, com os pés em carne viva. Mas chegaram. Venceram uma viagem repleta de sentidos. Para ambos. Nenhum deles nunca mais foi o mesmo depois dessa experiência. Como tatuagem, tudo ficou gravado na alma. A viagem virou livro. O livro parou em todo o Brasil. Sonho realizado. Conquistas muito particulares.

 

Agora, a dupla se prepara para mais uma aventura. Quer cortar, correndo, o Pantanal. Será uma ultramaratona, com 120km de desafios pela frente em estrada de terra — enfrentando cobras, jacarés, onças e também se deliciando com uma infinidade de pássaros e de peixes. E tudo, pretende a dupla, será feito em um dia. A loucura, como pensam alguns, vai virar um documentário. Tá bom. O que tem de extraordinário, além de um enorme esforço físico, no fato de duas pessoas correrem supermaratonas? Quantos não fizeram o mesmo? Quantos não pensam em fazer algo semelhante, desafiando os próprios limites, a condição humana?

 

Esta história, como a primeira, contada com exclusividade pelo Correio, é de fato especial. Começando pelos próprios personagens. Um dos aventureiros é cego. Seus olhos são os olhos do outro. Mas esses mesmos olhos, impedidos de ver a luz, conseguem ver, muitas vezes, mais até do que os olhos de quem enxerga. Adauto Belli, adestrador de cães, 38 anos, solteiro, sem filhos, morador da zona rural do Tororó, é esse homem que tentará correr os 120km que separam a cidade de Corumbá de Passo do Lontra, às margens do Rio Miranda.

 

O homem que o guiará é Weimar Pettengill, também de 38 anos, empresário, divorciado, dois filhos, morador do Park Way, amante de esportes radicais. A aventura dos dois será, na verdade, um agradecimento. A primeira, pedalando até Paraty, foi o sonho de Weimar que se realizou. Ele pensou nela por muitos anos. Mas faltava encontrar uma pessoa que aceitasse o desafio. Alguns amigos chegaram a desencorajá-lo da ideia maluca. Diziam que isso não terminaria bem. O perigo seria intenso e certamente o desejo terminaria em frustração.

 

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Weimar não desistiu. E, por acaso, soube que um maluco chamado Adauto pedalava no grupo ciclístico Rebas — projeto que leva deficientes físicos para passeios de bicicletas e promove a inserção social de cegos. Conseguiu o telefone do adestrador de cães. Ligou para ele. E contou-lhe a vontade de fazer a viagem. Depois, convidou o homem que não enxerga para se juntar a ele. Do outro da linha, Adauto apenas perguntou: “Quando a gente parte?” Eis o maluco que toparia viver o sonho de Weimar.

 

Exaustão

Combinaram que se conheceriam de verdade apenas no dia da viagem. Os outros contatos seriam muito superficiais. Trato feito. Em 18 de janeiro, o Correio contou, com exclusividade, a história daquela que seria uma viagem de sentidos. Onze dias depois, 29, a partida. E lá se foram os dois aventureiros em busca do desconhecido. Venceram sol, chuva, frio, fome, escuridão, medo, pés derramando sangue vivo, torções, exaustão. Derreteram quilos.

 

Todos os limites foram testados. Foram 18 dias de descobertas. Conheceram gente de verdade. Ouviram histórias, causos bem mineiros. A bicicleta Tandem virou atração nos povoados por onde passou. Finalmente chegaram. Mal falavam ou andavam. Exauridos, avistaram uma Paraty em forma de sonho. Mas era real. O homem que não enxerga viu tudo. As sensações lhe impregnaram a alma. Nunca foi capaz de ver tanto.

 

Em maio, a viagem — os desafios e as conquistas pessoais de cada um — foi impressa no livro Brasília-Paraty — Somando pernas para dividir impressões, que fez sucesso. A aventura parou em programa de televisão. Foi a realização do sonho. Mais que isso: a certeza de que limites não existem. E de que deficiência — qualquer que seja ela — pode ser superada.

 

Lá em Paraty, depois que chegaram, ainda detonados, Adauto virou-se para Weimar e disse: “Ajudei você a realizar o seu sonho. Agora, você vai me ajudar a concretizar o meu”. O parceiro de viagem indagou: “Qual é o seu sonho?” O homem que não enxerga devolveu: “É correr uma longa maratona”. Weimar lhe prometeu que pensaria. Era tudo que podia fazer naquele momento.

 

Dez meses depois, a vaga ideia virou certeza. Weimar pesquisou caminhos. “Cheguei a pensar nas Cordilheiras dos Andes. Mas era preciso muito preparo e tempo”, diz. Depois lhe ocorreu Mato Grosso do Sul, na parte do Pantanal. Viajou pra lá. Estava em casa, afinal ali é sua terra natal. Chegou a Corumbá, às margens do Rio Paraguai, fronteira com a Bolívia. Descobriu que ali, naquela estrada de terra (apenas 14km são de asfalto) que contempla um dos maiores santuários da vida silvestre do mundo — o Pantanal da Nhecolândia —, seria o lugar ideal para a supermaratona.

 

Weimar correu 30km pelo local. Deparou-se, na estrada, com jacarés e sucuris de cinco metros de comprimento. Fotografou-os. Foi alertado por nativos para ter cuidado com a terrível boca-de-sapo (cobra que está em toda região e mede apenas 50cm, mas, se picar alguém, a morte é instantânea). Ele tremeu. Ainda assim, não desistiu. As piranhas infestam os rios. Ao se refrescar em um, sentiu o poder de uma delas em um dos seus pés. Carrega a marca.

 

Documentário francês

Voltou do Pantanal e relatou ao companheiro de aventura o que viu no caminho. Adauto não hesitou. Apenas lhe perguntou quando partiriam. Em 4 de dezembro, os maratonistas embarcam de avião para Campo Grande. De lá, seguem para Corumbá, onde começará a corrida. Uma equipe filmará a aventura dos 120km em 24 horas. O material vai virar um documentário, já em fase de negociação com um canal francês. Da equipe, também farão parte duas fisioterapeutas e uma nutricionista. Os dois já se submeteram a uma bateria de exames médicos e estão sob acompanhamento. Adauto pesa 66kg. Weimar, 75kg.

 

Os dois farão a ultramaratona ligados a uma espécie de corda. Especialista em corridas — aliás, de que se tem notícia, é o primeiro deficiente visual que tentará uma supermaratona —, Adauto, dessa vez, irá impor o ritmo. Os olhos de Weimar serão, mais uma vez, os olhos de Adauto. “Só topei isso por causa dele. Nunca imaginei fazer uma coisa dessa. Nem embarquei num sonho que não era meu”, admite o empresário.

 

O adestrador de cães compara: “É mais difícil viver do que encarar uma aventura dessa”. E ainda brinca, provocando Weimar: “Na viagem pra Paraty, tinha rodinha. Agora, não”. Depois, reconhece, como se provasse a si mesmo que a retinose pigmentar que o levou à cegueira ainda na infância jamais o impedirá de tentar alguma coisa: “Fazendo isso, eu não me sinto deficiente”. E dispara, com seu bom humor invejável: “Vou ‘ver’ jacaré, cobra, piranha. Vou ‘ver’ o Pantanal...” E a amizade, vai ficar mais forte diante de mais uma aventura? “Vamos ver depois dessa corrida”, brinca o homem que não enxerga.

 

E assim, daqui a alguns dias, os dois malucos de Brasília partirão para mais uma aventura. Expectativa, tensão e sentidos à flor da pele. “Tudo pode acontecer no caminho”, reconhece Adauto. Mas nem pensa em desistir: “Desafio é um vício”. O Pantanal — com toda a sua beleza, imensidão colossal, declives e perigos — os espera. Weimar comemora mais uma conquista que se aproxima: “Será a celebração da vida”. Vida essa que juntou dois homens, de tão distantes realidades, endereços e mundos, para provar que todos somos iguais. E enxergar é muito mais do que deixar que a luz entre pela retina. É sensação. Pura e legítima sensação.

 

Adauto é a prova inequívoca disso. Weimar aprendeu sem ter mais que perguntar. O Passo do Lontra, fim da aventura num Brasil tão distante e remoto, aguarda a chegada de dois corredores que não buscam medalhas nem troféus. Querem apenas dizer que limite é desafio diário. Como acordar todo dia. Como viver.

 

Marcelo Abreu[/align]

 

Confira videorreportagem sobre Adauto Belli, que no início do ano pedalou 1.700km até Paraty e agora correrá 120km no Pantanal

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