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De repente, eu não estava mais preocupado com a minha carteira roubada, com o atraso da viagem, com a total inoperância da polícia boliviana ou mesmo com o fato de eu já não ter um centavo no bolso. Tudo o que eu queria ali, em Desaguadero, cidade boliviana na fronteira com o Peru, era reencontrar o meu ônibus, que simplesmente havia desaparecido de vista enquanto eu fazia um boletim de ocorrência da delegacia.

 

Toda a viagem havia sido um equívoco, de certa forma. Ao escolher a empresa de ônibus na rodoviária de Cusco, acabei comprando gato por lebre - no guichê de uma companhia, reservei o ônibus de outra. Eu não sabia, mas a visão do coletivo estacionando na plataforma com aquele ar de veículo dos anos 1970 era um enorme mau presságio.

 

A viagem foi tranquila até a chegada à fronteira. Depois de passar pelos enfadonhos trâmites legais de apresentar RG, assinar papel aqui, xerocar outro ali, me deparei com uma multidão junto à cancela que bloqueava o caminho que me levaria até a Bolívia. Entre as fronteiras, na “zona mista”, os guardas realizavam uma cerimônia que mais parecia um daqueles protestos contratados por presidentes ultrapopulistas: palavras de ordem, discursos de exaltação aos líderes dos Executivos dos países hino nacional do Peru e da Bolívia, não necessariamente nessa ordem.

 

À minha volta, centenas de pessoas, a maioria delas com a aparência pobre da gente do campo dos países andinos - poucos dentes na boca, pele castigada pelo inclemente sol das altitudes e com as roupas tradicionais dos países andinos, cheias de coloridos que contrastavam com o escuro tom de pele dos locais. Mais ao longe, uma fila enorme de ônibus que esperava o fim da cerimônia para finalmente cruzar ao lado boliviano.

 

A cidade era simplesmente horrível. Pelo que pude observar depois, era um clone do que havia do lado boliviano: casas mal conservadas pintadas em cores já há muito desbotadas, ambulantes vendendo todos os tipos de comida disputavam espaço com a multidão, um comércio degradado.

 

Na confusão, tentei me manter próximo aos demais passageiros do meu coletivo, a maioria israelenses, para não me sentir perdido.

 

Quando as cancelas finalmente se abriram, quase 40 minutos depois de nossa chegada, a multidão se atirou rumo ao lado de lá. Pensei que bastaria aguardar o ônibus passar por aquela rua principal e seria fim da história, mas perguntando aqui e acolá descobri que um novo trâmite fronteiriço me aguardava. Dessa vez, porém, a fila era simplesmente gigantesca. Bolivianos presos pela tradicional cerimônia das manhãs de sexta-feira aguardavam ansiosamente para ir trabalhar do lado peruano.

 

Encontrei os isralenses já no meio da fila (até hoje não sei como chegaram lá tão rápido) e, mesmo com inúmeros protestos dos locais e tentativas frustradas de negociação, me juntei aos meus “companheiros”, furando a fila. Foram mais quase duas horas até finalmente chegarmos ao posto de fronteira. Aqui começou efetivamente o desespero.

 

Eu conversava com os israelenses e um canadense despreocupadamente. Na correria de pegar documentos, caneta e preencher inúmeros formulários, acabei cometendo um erro que, eu, nascido e criado em São Paulo, nunca, jamais, em hipótese alguma cometo: deixei a carteira no bolso da frente da calça.

 

Não demorou até que um senhor de uns 50 anos, não mais de 1,60m, muito acima do peso, cabelos grisalhos e olhar arguto se aproximou e começou a me empurrar. Pensei que o filho da puta queria furar fila e o empurrei de volta. Assim ficamos por alguns segundos até que me aproximei do guichê de imigração para pegar os formulários.

 

Já com os papeis em mãos, ainda vi o safado saindo, com olhar baixo e um sorriso malicioso nos lábios. Uns 10 minutos depois, com os devidos carimbos em mãos, quando finalmente fui guardar meu RG, que por sorte estava na minha mão, descobri que minha carteira havia sido roubada.

 

- Fuck! Fuck! Filho da puta!

 

Eu gritava em todos os idiomas, porque não sabia como expressar minha raiva. Saí correndo atrás da polícia de fronteira, mas me informaram que eu deveria prestar queixa na delegacia, a poucas quadras dali. Falei ao pessoal do ônibus o que ia fazer e, já prevendo que o que era ruim poderia piorar, implorei para que me esperassem. Eles concordaram.

 

No meio do caminho, encontrei o David, um rapaz de uns 23 anos que trabalhava como uma espécie de comissário de bordo do ônibus em que estava. Expliquei o que havia acontecido, implorei para que me esperasse terminar o B.O. antes de seguir viagem. Ele anuiu e eu segui até a delegacia.

 

Lá, tive que explicar as circunstâncias do roubo aproximadamente cinco vezes, enquanto um policial que não tinha lá muita prática na arte das letras escrevia a mão o relato do acontecimento – isso depois de muita insistência minha, pois os policiais alegavam que não poderiam registrar a ocorrência por que a impressora estava quebrada. Já se haviam passado uns 30 longos minutos, eu desesperado com o ônibus e o policial ainda terminava o que mais parecia ser uma nova versão de Dom Quixote, a julgar pelo tamanho.

 

O policial finalmente marcou o ponto final, leu seu relato em voz alta e eu assinei. Depois, tirei uma foto da obra-prima literária com meu celular e já estava pronto para correr atrás do ônibus quando outro “tira” me disse:

 

- La denuncia cuesta 20 bolivianos.

 

Incrédulo, apenas olhei para a cara dele, abri os braços em sinal de “seu imbecil, contei 10 vezes que roubaram a minha carteira!”, dei-lhe as costas e fui embora.

 

Saí correndo atrás do ônibus. Nada. Procurei o David no posto de imigração onde disse que me esperaria. Nada. Eu estava perdido no meio do nada, sem dinheiro, sem ônibus, sem minha mochila com minha preciosa câmera fotográfica e todas as fotos da viagem de até então 17 dias. Nada.

 

Por algum motivo, eu mantive algum tipo de calma. Olhei à minha volta, e vi aquela desolação, aquela cidade no meio do nada, aquele lugar pobre, árido, totalmente tomado por gente que andava para lá e para cá eternamente cabisbaixa, como que de mal com a vida, com o mundo. Sabia que a única coisa que tinha a fazer era procurar meu ônibus.

 

Saí correndo.

 

Comecei a perguntar às pessoas se haviam visto o veículo da companhia tal.

 

- Sí, pasó hace 15 minutos.

 

- Sí, fue p’alla!

 

E eu seguia adiante. Caminhei uns 500 metros, até chegar a uma esquina. Virei à direita, perguntei mais umas duas vezes e vi, lá no final da rua, umas duas centenas de metros adiante, o ônibus parado. Continuei correndo até encontrar os israelenses.

 

- You made it!

 

Depois de lhes contar a história, tive um dos maiores gestos de solidariedade que já havia visto. Gente totalmente desconhecida me oferecendo dinheiro para continuar a viagem. E não foi apenas uma vez, nem apenas uma pessoa. Os rapazes viram meu desespero, sabiam que eu não ia conseguir pagá-los e mesmo assim queriam ajudar.

 

Agradeci de coração, mas algumas “verdinhas” que tinha no meu porta-dólar deveriam aguentar até eu chegar ao Brasil, em mais três dias.

 

Os israelenses me explicaram que deveríamos ainda esperar, já que havia um conhecido deles parado na fronteira. Depois de 30 minutos, a segunda etapa do pesadelo havia começado.

 

O David havia ido atrás do rapaz, mesmo assim o motorista insistia em deixar os dois para trás e seguir viagem, já que estávamos horas atrasados, dizia ele. Uma das garotas do grupo falava um pouco de espanhol, mas logo pediu a minha ajuda para convencer o condutor de esperá-los. Os 30 minutos seguintes foram marcados por uma sucessão de gritos, ameaças de partir, mais gritos, partidas no ônibus, deslocamentos curtos, muito mais gritos e paradas. Até que o David finalmente chegou, sem o rapaz. Aí não teve mais papo, o ônibus seguiu rumo a La Paz.

 

Ali dentro, começamos a conversar. Um rapaz boliviano me disse que era comum que as companhias de ônibus do país largassem os passageiros por aí em caso de imprevisto.

 

- Já aconteceu comigo duas vezes.

 

A viagem seguiu tranquila até outro clone de Desaguadero: El Alto, a cidade que abriga o aeroporto de La Paz, a 40 minutos da capital boliviana. No meio do trânsito caótico formado pelas centenas de minivans paceñas que disputavam espaço sem nenhum tipo de ordem, o ônibus ficou parado muitos minutos. Ali, de repente, o israelense perdido entrou no veículo como em uma aparição milagrosa. Contou que uma lotação o havia levado até o local, onde ele ficou esperando o carro salvador que o havia deixado para trás.

 

Quando finalmente alcançamos a avenida que nos levaria até a cidade de Evo Morales, chegou a terceira etapa do meu pesadelo. Um enorme palco estava sendo erguido no meio da via. Do nada. Sem nenhum tipo de planejamento, de polícia pondo ordem no trânsito, de agentes da prefeitura. Nada. Apenas trabalhadores que não davam a mínima para se os veículos poderiam ou não passar pelo minúsculo espaço que deixavam entre as caixas de som e a “ilha” da avenida.

 

A essa altura do campeonato, eu já estava rindo, mas não de alegria. De desespero. Os israelenses estavam a ponto de matar alguém. Gritavam em todas as línguas conhecidas. O rapaz canadense se mostrava incrédulo. E eu ali, parado.

 

Não demorou muito para que o motorista simplesmente desistisse.

 

- Vocês vão ter que descer aqui.

 

- E como vamos a La Paz? – perguntei.

 

- Peguem um táxi.

 

- Como eu vou pegar um táxi se me roubaram minha carteira? -, gritei.

 

- Ah, fala com o David.

 

O motorista havia passado a batata quente ao “estagiário”.

 

Ocupado em descer as mochilas do bagageiros, David não parecia se preocupar muito com a nossa situação. Todos nós tentávamos fazer com que alguém da empresa tomasse alguma atitude, mas eles não estavam nem aí. Comecei a gritar:

 

- David, me roubaram, não tenho dinheiro e vocês são responsáveis por nos levar até La Paz!

 

Ele pediu que eu me acalmasse, mas diante da exaltação de todos, ele finalmente concordou em pagar 50 bolivianos a uma minivan, que foi “fretada” até o terminal rodoviário de La Paz.

 

Chegando lá, nos despedimos. Voltei a agradecer pelas ofertas de dinheiro e eles faziam promessas de nunca mais voltar à Bolívia. Eu não. Aparentemente, era o único que conhecia a realidade de viver em um país pobre.

  • Colaboradores
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Poxa não sei nem o que dizer Flávio, sinto muito que sua experiência pela Bolívia, não lhe fora nada agradável, devido a estes acontecimentos. Realmente a segurança no país para com os turistas, não é das melhores. É preciso que se tome muito cuidado mesmo.

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Poxa não sei nem o que dizer Flávio, sinto muito que sua experiência pela Bolívia, não lhe fora nada agradável, devido a estes acontecimentos. Realmente a segurança no país para com os turistas, não é das melhores. É preciso que se tome muito cuidado mesmo.

 

Na verdade, Edu, eu gostei muito da Bolívia, tanto que tenho planos de fazer o sul do país nos próximos anos (nessa viagem, só conheci de La Paz pra cima). Acho que esse tipo de experiência pode acontecer em qualquer país pobre como o Brasil ou a Bolívia. Foi o que quis dizer no final do relato.

  • Colaboradores
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flaviodagli, cara, que azar ! Obrigado por compartilhar a experiência.

Quando fui a Bolívia e Peru optei por seguir por Copacabana, Kassani e Puno somente para não correr este risco em Desaguadero. Tinha lido em alguns relatos sobre tais acontecimentos e ainda extorsão dos agentes e policiais na fronteira.

Que bom que no final tudo deu certo para você.

Eu voltarei em breve a Bolívia ! Apesar de todos problemas o lugar é mágico.

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flaviodagli, cara, que azar ! Obrigado por compartilhar a experiência.

Quando fui a Bolívia e Peru optei por seguir por Copacabana, Kassani e Puno somente para não correr este risco em Desaguadero. Tinha lido em alguns relatos sobre tais acontecimentos e ainda extorsão dos agentes e policiais na fronteira.

Que bom que no final tudo deu certo para você.

Eu voltarei em breve a Bolívia ! Apesar de todos problemas o lugar é mágico.

 

Cara, sabe qual é o mais triste? Deixei de fazer a viagem por Copacabana para economizar uns 10 soles ::putz:: Mas beleza, valeu a experiência, principalmente a solidariedade que tive do pessoal do ônibus. E tô nessa com você: Bolívia é demais, apesar dos perrengues.

  • Colaboradores
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Esses trâmites de fronteira são sempre uma caixinha de surpresa. Quando fiz um mochilão pelo Peru e Bolivia, entramos na Bolivia por Copacabana e saimos por Desaguadero. Graças a deus ocorreu tudo bem, mas na volta ficamos juntos com uma mulher peruana que estava retornando a Cusco no mesmo onibus, seguimos ela e fomos os primeiros do onibus a fazer os trâmites pra garantir. Por que logo depois a fila ficou imensa ::Cold::

  • Membros
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Cara, lamentável mesmo o acontecido, mas como tudo nessa vida teu perengue tambem teve o lado bom, viu-se que apesar da distinção de raça e país de origem ainda existem muitas pessoas solidárias por ai, parabens a todos que de alguma forma te ajudaram e nao deixe que isso te desestimule a continuar pelo mundo afora, pode acontecer em qualquer lugar com qualquer pessoa e como ja escreveram acima, a Bolívia é magica, tambem pretendo voltar em breve e olha que nao faz nem um ano que fui, kkkk

  • Membros de Honra
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Flávio,

 

Que bom que esses perrengues não vez você desistir da Bolívia.

 

::otemo::::otemo::::otemo::

 

Quanto a Desaguadero, já passeio várias vezes por lá, é punk mesmo.

 

::mmm:::mmm:::essa::::essa::

 

Mas no final tudo deu certo é isso que importa.

 

Maria Emília

  • Membros de Honra
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Infelizmente viajar tem disso também, principalmente nos centros urbanos mais turísticos e de fronteiras movimentadas.

São os locais que não podemos descuidar e manter todos os sentidos alertas.

E manter a carteira no bolso da frente ainda é menos vulnerável que atras. ::otemo::

Eu também tive minha dose de amor e ódio pela Bolívia por outros motivos... Acho que poucos escapam desse tipo de relação com ela. ::tchann::

Bom... Mas o que nos move é a necessidade de experiências e emoções não é? 8)

 

Parabéns pelo relato.

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