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VIAGEM AO RIO SÃO FRANCISCO - O INÍCIO

 

Vou tentar relatar um pouco desta fantástica viagem que fiz ao longo de todo o Rio São Francisco, o rio da integração nacional. A viagem começa na nossa imaginação. O disparador foi um cara que eu considero muito, que me contou de sua viagem há 30 anos atrás. Isso foi em Abril de 2007. Aquilo ficou na minha mente. Nunca havia ouvido relatos de mochileiros ordinários fazendo esse tipo de viagem na atualidade. O que eu ouvia eram sempre fotógrafos, cineastas, pesquisadores. Mas, mochileiros, não.

Até que os boatos da transposição do rio se tornaram fatos. Ai, pensei comigo mesmo: "o que eu posso fazer pelo rio?". Protestar? Difícil. Engajar-me em alguma luta? Não moro na beira do rio. Assinar listas recebidas pela internet? Muita alienação. Então, pronto! Vou fazer uma viagem pelo rio São Francisco. Assim, pelo menos, todos que convivem comigo, e estranham o fato de fazer uma viagem dessas, vão se sensibilizar com as notícias do rio e de minha viagem.

A concretização da idéia veio no final de Outubro. Férias se aproximando e eu querendo arranjar o que fazer. Falei com uma amiga, que topou. Uma outra, topou também. Faltava decidir tudo. Resolvemos a data de ida. Após o natal, decidimos. O retorno? É preciso voltar para casa. Afinal, temos nossos afazerem em São Paulo. Vamos ver o carnaval. Logo no início de Fevereiro. Olhando passagens de avião, onde e quando são mais baratas. Pronto. Dia 13 de Fevereiro de 2008, de Recife. Esse foi o primeiro passo. Passagem promocional por essas companhias aéreas baratinhas. Pelo menos, a certeza de voltar à nossa cidade querida. O trajeto? O rio São Francisco. Sem roteiro pré-fixado, nem datas, nem hospedagens, nem nada de antemão. Apenas a vontade de desbravar o rio.

Dias antes, uma das amigas precisou mudar o roteiro dela. Íamos eu e a Maíra. Tudo bem, dois é mais fácil de pegar caronas. Três é bom pra quebrar a monotonia. Compramos passagem São Paulo - Piumhi (MG).

 

ALTO SÃO FRANCISCO - da cabeceira (São Roque de Minas - MG) à Pirapora (MG)

 

Saímos 22h do dia 26 de Dezembro de 2007. Passei frio à noite no ônibus. Achei que havia esquecido meu único agasalho em casa. Às 6h10, chegamos ao destino. De lá, outro ônibus até São Roque de Minas. Às 8h15, estávamos na cidade desejada. Foram R$65,00 de passagem. Eu, minha mochila, meu violão e pandeiro, mais uma sacola com comida. A Maíra, com sua mochila, triângulo e uma bolsa com comida. Procurei uma pousadinha. Dona Joana, com sua pousada na saída para Bambuí, cobrou bem baratinho e ainda ficava nos oferecendo pão de queijo, café e refeições sem adicionais! Muito simpática a senhora. Uma boa opção pra quem quer gastar pouco. Quartos simples, banheiro coletivo, reclamações da velhinha sobre a injustiça dos promotores da cidade. Dormimos a manhã. Após o almoço, fomos pegar carona até o Capão Forro, um conjunto de cachoeiras. Bem legal. Muito pernilongo e mordidas pelo corpo todo. O visual, incrível. Dia seguinte, carona pra nascente do Rio São Francisco e Casca D’Anta. Conhecemos dois caras muito simpáticos, Thiago e Aguinaldo, que nos “caronaram” o dia todo. As águas na nascente são cristalinas, tendendo um pouco ao marrom claro. Água pura. A enorme Casca D’Anta, é impressionante. A caminhada de 01h pela trilha cansa um pouco, mas vale muito a pena as paisagens. À noite, toquei violão na praça e uma legião de fãs veio reforçar o couro. Foi engraçado.

Dia seguinte, encontramos com Aline e sua amiga. Eu conheci ela no site mochileiros.. e sugeri esse roteiro também. Elas ficariam por lá alguns dias. Eu e Maíra nos aventuramos na carona para seguir adiante.

Bambuí, por uma estrada de terra. Primeiro, um leiteiro que nos deixou no meio da estrada. Depois, outro leiteiro, que parou na fazenda para coletar leite. Eu fui pendurado atrás, junto com o ajudante, um rapaz de 20 anos que se dizia “da roça”. Entre as coisas que me perguntou, sua inquietação por eu ter abandonado meu pais. “Como pode?”, perguntava-se. Pois é, como pode! Paramos para almoçar. Depois, carona em direção a Córrego Dantas. Outra em direção a Bom Despacho. O pessoal que parou era bem animado, cheio de gritinhos de festa. Em Luz, a carona estava demorando. Queríamos passar por Dores do Indaiá e ir direto para Abaeté. Depois de um tempão, parou um sujeito num carrão. Ao nos deixar em Dores, onde estava indo, nos deu R$20,00. Hesitei um pouco para pegar. Falei para Maíra fazê-lo. Sua justificativa era que nós tivéssemos dinheiro para comer um lanche. Não passavam carros. Fomos obrigados a entrar na cidade. Uma caminhada de mais de uma hora, com as mochilonas. Compramos algumas coisas e cozinhamos na rodiviárias. Eu levei fogareiro, o que se mostrou bastante útil ao longo de toda a viagem. A cidade não nos agradou muito. Pegamos o ônibus de 22h para Abaeté. Baratinho. Chegando lá, arrumei uma pousada com uma mulher amargurada. Saímos à noite, mas estávamos quebrados. O sono foi bom nesse sábado à noite. Dia seguinte, após o almoço, mais caronas.

Primeiro, para Paineiras, com o leiteiro mais politizado de toda a viagem. Sua consciência política era tremenda. Tinha clareza de que o rico só tem essa condição porque existe o pobre aceitando seus ofícios de baixa qualificação. Dava-se conta que eram empregados dos donos das coisas. Era um sujeito tranqüilo e firme na fé. Atravessamos a cidade a pé. Novamente, uma caminhada com os mochilões. Mais uma carona. Outro leiteiro, amigo do primeiro, até Biquinhas. Paramos na saída da cidade. Fim de tarde. Ruim de pegar carona. Até que caiu uma manga de uma árvore. Fui lá colhê-la. Estava deliciosa. Ai, o povo das casinhas saiu para conversar conosco. Ofereceram-nos outras mangas e água gelada. Daqui em diante, muita manga nos pés! Uma mulher me surpreendeu. O filho dela era músico. O fato dela ter me visto com o violão, despertou nela uma empatia grande e, por isso, quis até oferecer a casa dela pra gente. Foi uma lição de vida. Uma identificação das dificuldades do filho em um rapaz estranho, que nunca havia visto na vida, mas que deveria estar passando pela mesma situação. Isso despertou nela a compaixão. Foi uma cena bonita. Parou, às duras penas, um rapaz de carro. Levou-nos até Morada Nova de Minas, nosso destino final para o dia. Um cara “alegre”. Decidimos passar ano novo ali mesmo. Já era dia 30 de Dezembro de 2007. Hospedamos-nos no Hotel Pio XII, da Dona Maria José. Simpática a mulher. Sem filhos. Contou-nos histórias de sua infância na roça. O pão de queijo no café da manhã era muito bom. Foi bom custo-benefício. Super barato. Nessa noite, fomos andando até a represa. Era longe. Não chegamos na praia pública, pois haviam muitos cachorros ladrando, guardando o barzinho no local. Era uma avenida de terra, bem extensa, no breu total. Resolvemos parar no meio dela, entre a cidade e os cachorros. E ficamos contemplando o belíssimo céu estrelado que só Minas Gerais proporciona. Dia 31, fomos na represa, na praia pública. Sem cachorros e com muita luz. Muita música alta, água quente e povão bebendo. Os últimos raios de sol de 2007. Antes da virada do ano, fiz um som na sacada do hotel. Foi engraçado. Festa de ano novo, bem fraca. Na praça, uma vocalista e um tecladista num barzinho. Num outro canto da cidade, um palquinho com dois cantores profissionais. Bem “legalzinho”. Dia seguinte, fomos pra outra praia, numa pousada. Sem pagar, após um chavequinho. Tarde gostosinha.

Dia 02, mochilas a postos. Acordamos cedo e fomos pra estrada de terra. Um caminhão parou. Atravessamos a represa de Três Marias. Ali, o rio é azulzinho. O cara parou num posto em um trevo que não dava em lugar nenhum. A carona tava bem difícil. Hora do almoço, decidimos pagar o almoço. Até então, sempre preparando nossas refeições, com comida adquirida em supermercado, mercadinhos, feiras. Vi um caminhoneiro. E vi que ele nos daria carona. Fomos pra estrada. O referido, ficou dando um cochilo. E, então, apareceu outro caminhoneiro. Eu mal entendia o que ele dizia. Deixou-nos no trevo de Três Marias. Ai, foi a primeira vez que vimos “companhias”. Explicando: essas “mocinhas” que pegam carona na estrada. Isso representa dificuldades para nossa carona. Fomos andando e, mal paramos no trevo, avistei um caminhão. Fiz sinal. Parou. Quem era? O tal caminhoneiro que ficara cochilando alguns minutos atrás! O moço era bem simpático. Deixou-nos perto do trevo de Luislândia do Oeste. Andamos até lá. Um estradão deserto. O segundo veículo que passou, parou. Uma van, com apenas o motorista. Ele vinha de longe e ia pra mais longe ainda. Ficou praticamente mudo. Nós ficamos conversando entre a gente. No entanto, o legal foi que ele tinha um saquinho cheio de biscoitinhos e pão de queijo. Claro, comi vários!

 

MÉDIO SÃO FRANCISCO - De Pirapora (MG) à Remanso (BA)

Pirapora. Cidade difícil de conseguir muquifos baratinhos. Pagamos R$22,00 o quarto. Com café da manhã. O rio ali é bonito. Ainda dá pra nadar nele e há uma prainha gostosa. No seu leito, uma série de pedras e minúsculas cachoeiras, que antigamente impediam a navegação. Por isso mesmo, os vapores paravam nessa cidade. Dali, uma ponte férrea com as linhas de trem que iam até São Paulo. Fomos ver o Benjamim Guimarães, o último barco a vapor do mundo. É o que dizem. Só sai de Domingo para passeios com o público. Nós, entretanto, tínhamos que esperar muitos dias. Foi suficiente pegar um sol na prainha na beira do rio, tirar umas fotos do barco, dar umas voltas pela cidade e sair logo cedo.

A próxima cidade era um dilema. Pelo rio, só estradas de terra e nenhuma ligando a cidade seguinte de modo linear. Nesse trajeto, duas cidades recomendadas: São Romão e São Francisco. Decidimos cortar por “dentro”. Ir até Montes Claros e, em seguida Pedras de Maria da Cruz, na beira do rio. E foi o que fizemos. Ia ser difícil. Quase 500km em um único dia.

Logo cedo, um sujeito parou. Errou a estrada entre MG e a Bahia. Ele ia longe. Achamos que íamos com ele até nosso destino. Porém, olhando no meu guia rodoviário (essencial para os caroneiros), ele passava apenas em Montes Claros e seguia por outra rodovia. A conversa foi interessante ao longo do caminho. Ele era minerador. Com seu curso técnico, era um profissional cobiçado. Salário de R$2.700. Um profissional em falta no mercado. E ganhando mais do que muita gente com nível superior. Recomendou muito as profissões ligadas à mineração. Descemos em Montes Claros, cidade importante do norte de MG. Era hora do almoço. Paramos em uma sorveteria para nos deliciar primeiro com a sobremesa. O nosso lanchinho, só na estrada, no outro lado da cidade. A sorveteira ouviu a gente conversando sobre nosso trajeto e nos viu manuseando o guia. Contou que fazia aquele percurso de bicicleta, que gostava de esportes radicais e que era melhor ir para Januária, que era bem mais simpática. Ai, disse que o sogro dela alugava quartos. Disse-nos o nome e a referência da sorveteria lá na outra cidade. Ai, fomos pegar uma van para o outro lado e Montes Claros. Um funcionário dela veio com um papel, com todos os dados. Já havia falado com o homem, que nos aguardava. Pegamos um ônibus até a rodovia. Sol forte. Na frente, “companhias” pegando carona. Almoçamos. Fomos mais pra baixo, numa sombra, onde pegaríamos carona antes. Ai, parou um carro. Cobrando a carona. Dispensei. Parou outro, falando gracinhas. Dispensei. Parou mais um, dizendo que só cabia um. Dispensei. Eta lugarzinho!! Até que parou um cara. Entramos no carro. O sujeito estava extremamente desconfiado. Nem sei porque parou. Desovou-nos em Mirabela, sendo que ia para a cidade seguinte, Japonvar. Demorou para pegarmos uma carona. Andamos até um outro ponto na rodovia e a sorte sorriu pra gente. Parou Celso, um caminhoneiro com um caminhão baú pequeno. O cara mais simpático de todas as caronas. Ele era muito legal. Ficamos conversando sobre vários assuntos. Ele seguia até São João das Missões, onde era proprietário do Supermercado Flores. Já havia morado em Brasília e outras cidades, mas gostava dali mesmo. No meio do caminho, paramos para comprar piqui, uma frutinha que o povo usa pra temperar várias coisas. E que faz bem para a memória! Durante todo o dia, se dá arrotos com seu gostinho e, por isso, ao lembrar da fruta, se estimula a memória. Parou em Januária e se despediu de nós com muita alegria.

Fomos até a sorveteria. Quem nos recebeu, foi o filho de “Pira”. Um rapaz metido a malandrinho. Ai, depois de um tempo, nos levou até o pai. Foi simplesmente mágico. “Pirapora” era um senhor muito gente boa. Abriu a casa pra gente. Sua nora havia ligado e dito: “ta indo dois primos e tão levando o violão”. Ah, sim. A Maíra virou minha prima na viagem. Assim, evitávamos confusões sobre nosso estado civil. Mal entramos na casa de Pira, sai tocando violão e pandeiro. Ele era um cara com uma história incrível. Foi morador de rua por 5 anos. Depois, tornou-se um articulador da educação para crianças e adolescentes muito influente. Ele é um homem que faz. E simples, humilde, na dele. Com a consciência de que deve estimular as prefeituras a investir na educação, sem querer ser o ator principal. É o cara. Tocava várias músicas dos anos 60. Muitas do Roberto Carlos. A partir desse dia, tudo foi muito mágico na viagem. A cidade tem uma arquitetura charmosa, o rio é barrento e o povo é legal. À noite, fomos num bar e tava tocando forró pé-de-serra. Dancei e viramos os astros! Fizemos uns amigos por algumas horas. Ficamos até Sexta. Dia seguinte, Sábado, a cidade ia ferver num festival, com Biquini Cavadão. Só que, definitivamente, essa não foi uma viagem de festas. Fugimos pra próxima cidade.

Mais uma caminhada até a estrada. Parou um moço que nos deixou em Itacarambi. A cidade era muito bonitinha. Muito mesmo. Toda enfeitada. As ruas, de pedra, eram decoradas com pedras pintadinhas e árvores por toda a calçada. Na beira do rio, um calçadão todo florido. Ali perto, havia o Parque Nacional do Peruaçu. De longe, avistávamos que devia ser bem legal. Parque fechado para visitação, porém nos contaram que em Itacarambi eram possível fazer uns contatos. Nos hospedamos num pulgueirinho e fomos dormir cedo. Estávamos quebrados. Durante esse dia, fomos atrás do cara do IBAMA. A irmã dele nos recebeu. Disse que poderia ir com a gente, pois queria tirar umas fotos do parque, antes que outro terremoto destruísse a paisagem. Dias antes, ali pertinho um terremoto de quase 5 graus arrasou várias casas. Centenas de desabrigados estavam em Itacarambi. Pois bem, a moça queria ir tirar fotos. E nos disse que o irmão autorizaria. No entanto, era preciso um guia. Ela mesma nos indicou Raimundo. Detalhe: não devíamos mencionar que ela iria junto. Uma situação constrangedora. Mentir nunca é o melhor caminho. Fomos falar com ele. Não estava. Voltamos à noite. Ele fez um drama e não quis nos levar no dia seguinte, Domingo. Deu uma desculpa qualquer. Dias antes, havia levado um motoqueiro aventureiro, que filmou vários vídeos. Pelo menos, nos mostrou alguns vídeos. Eram pinturas rupestres e várias grutas incríveis. Fomos falar com a moça para agitar tudo para a Segunda-feira. Tudo certo. No Domingo, de novo falando com o Raimundo. E ele negou de novo. Ele não tinha carro e nós não conseguimos arrumar carro. A moça também não conseguiu. Ai, depois de tanta enrolação, perguntei pra moça o motivo da mentira. Claro!! O rapaz era ex-namorado dela! Ela o trocou por outro cara. E, sabe-se lá porque, queria “revê-lo”. Todos nós saímos perdendo. A moça, não viu o cara. Nós, não vimos o parque do Peruaçu. O rapaz, não nos levou e deixou de firmar maiores redes de contato. Enfim, a mentira, definitivamente, é sempre o pior caminho. Legal mesmo foram os pais de Raimundo. Dona Lourdes e Seu Dudu. Os dois eram dois senhores engajados com a igreja e com a comunidade. Ele era sanfoneiro e, nas tantas, todos nós começamos a tocar música naquela casa humilde. Muito legal o som que fizemos. D. Lourdes lembrava da música que o bispo ensinou há vários anos atrás, para proteger o rio. O bispo D. Luis Cappio, que fez greve de fome. Uma música bem politizada. Isso foi Sábado. Na cidade, nada de mais. Todo mundo foi pra Itacarambi, no tal do festival com Biquini Cavadão. Da hora, hein. No domingo, eles nos levaram para o reizado na casa de uma outra senhora. Foi muito legal. Primeiro, as rezas para os reis magos. Depois, as músicas de reis. Ai, pra finalizar, o samba. Gostei muito. Todo mundo muito simples. Gente pobre, com riqueza inestimável na fé.

Segunda-feira, andamos até a estrada. Fomos na direção errada. Andamos mais um tantão até o outro lado da cidade. O sol de rachar, e ainda eram 9h30 da manhã. A estrada, de terra. Parou um caminhão. O cara bem gente boa. Parou para entregar mercadorias em São João das Missões, no supermercado de Celso!! E ele estava lá e nos reconheceu! E nos deu de comer, comentou com todos quem nós éramos! Compramos o último queijo de MG. Ele nos deu uns livrinhos sobre paz interior e religião. Achei legal da parte dele, apesar deu já ter minha religião. Ai, seguimos até Manga, última cidade antes da Bahia. Andamos um tanto até a estrada. O sol tava muito forte. E, para nosso espanto, a estrada era tão ruim que não passavam veículos por ali. Esperamos um pouco até o fôlego voltar. Ai, apareceu Paulo, um roceiro bem simpático que tocava violão. Pegou o meu violão e, com apenas dois acordes, tocou umas cinco músicas. Berrava e ria que nem doido. Na verdade, uma pessoa alegre! Um encontro musical único! Voltamos andando pra cidade. No meio do caminho, pára uma charrete. Eu pedi carona. O cara nos levou até o cais, para que tentássemos pegar um barco até Malhada, na Bahia. Durante o percurso, eu perguntei o que ele fazia. “Eu faço frete”. “É mesmo? Nós somos caroneiros. Só andamos de carona, viu? Eu vou colocar o teu nome no meu livro, como recordação por esta carona”. Às vezes, é preciso cara de pau. Acabei esquecendo o nome dele. Descemos no cais e não haviam barcos. O rio, barrento, estava muito baixo. Preferiam fazer o trajeto por “carro”. Pegamos um barquinho por R$1,00. Detalhe, a balsa, a uns 100m era grátis. Mas só descobri depois. Do outro lado, fomos ver os “carros”. Quatro horas para fazer menos de 100km. Em caminhão pau-de-arara, por R$7,00. Topamos, claro. Não havia estradas. O caminho era entre as roças. Ali, víamos várias fazendas cultivadas. Bois e galinhas. Homens simples. Toda casa, com cisterna do governo. Nessa região, a chuva estava quase chegando. O caminhãozinho ia, e a chuva parecia nos seguir. Engoli poeira até não agüentar mais. Ao descer, o cara errou o troco. Vi que a falta de aulas de matemática dele deveriam ser compensadas pela minha honestidade. Devolvi os R$20,00 que ele me deu a mais (demos uma nota de 50).

Malhada, finalmente. Cidadezinha ribeirinha. Ao longe, se via uma ponte em construção. O rio, barrento e em baixo nível de água. Ficamos em um dormitório, por R$5,00 cada um. Usamos a cozinha pra fazer uma bela sopa. A dona do estabelecimento era muito simpática. Uma senhora velhinha, que tinha firmeza na fé.

Dia seguinte, estrada entre Malhada, Parateca e Bom Jesus da Lapa. Todo mundo dizia que, para Bom Jesus, o caminho era por Carinhanha, cidade atravessando uma balsa de Malhada. Mas no guia havia uma estrada. Teimamos e conseguimos uma carona até o trevo que ia para Parateca, distante de Malhada. Depois de um tempão e quase ninguém passando, um rapaz disse que ninguém pegava essa estrada porque ela estava ruim. Pegamos outra carona de volta para Malhada. Atravessamos a balsa. Andamos um tempão pela estrada de chão até passar um mototaxi. R$2,00 para nos levar até Carinhanha e na estrada que ia para Bom Jesus. O ônibus passaria dali a 1h30m. E, durante as quase 2h30 que ficamos ali, só 1 carro passou. Pegamos o ônibus. R$9,00 cada. Quatro horas de viagem na pior estrada que já percorri em minha vida. Eram trechos de terra, misturado com trechos de asfalto todo esburacado, com trechos de terra esburacados. Enfim, terrível.

Chegamos em Bom Jesus da Lapa. Na entrada da cidade, um Arco Iris de presente para nos receber. De longe se vê a gruta. É impressionante a cidade. Tem uma energia de muita fé nesse lugar. Na rodoviária, a chuva nos impedia momentaneamente de ir para o centro. Ai, resolvi tocar violão. E um cara veio e pediu pra tocar mais. Eu me senti no filme “Os 2 filhos de Francisco”, que dias antes passara na TV. Poderia ser meu grande momento de fama e riqueza. Eu, ao contrário, toquei 2 músicas e vi que a chuva parou. Deixei o público a ver navios. Arrumamos um hotelzinho com cozinha. Uma voltinha pela cidade a noite e, dia seguinte, gruta do Bom Jesus. Impressionante a energia. A paz vem até o coração. O silêncio impera. A fé das pessoas move montanhas. Muito impactante o lugar. De cima das pedras da gruta, se enxerga longe o rio, que estava bem baixinho por falta de águas da chuva. Ia rolar um “Lapafolia” de Sexta a Domingo. Mais uma vez, fugimos das festas. Eram quinta-feira ainda.

Mais uma carona boa. Um homem que se dizia espertão no comércio. Enriqueceu vendendo coisas de SP na Bahia e vice-versa. Parou em Ibotirama. Almoçamos nossa comida em um boteco. Pegamos uma carona até o trevo da estrada pra Igarité. O sol, fortíssimo. E, mais uma vez, aquelas estradas que não passam ninguém. Quase três horas ali e pára um ônibus do MST. Eles iam param num assentamento e em um acampamento para trazer as pessoas para Ibotirama no encontro regional do movimento. A coordenadora insistiu para a gente participar. Fizemos o seguinte acordo. Se em Igarité não conseguíssemos carona, na volta do ônibus nós também voltaríamos para Ibotirama ficar dois dias no encontro. Ai, de lá, pagar ônibus pra Xique-Xique. Em Igarité, que é um povoado, praticamente, a regra persistia: nenhum carro passava. Ai, o povo dizia que dali uma hora passaria um ônibus que nos deixaria em Xique-Xique. Esperamos num bar, por insistência de um homem que queria me ver tocar violão. Mais uma vez a fama me chamando! Até queria pagar um refrigerante pra mim. O tal do ônibus veio e o motorista não quis nos aceitar. Regras da empresa. Fiquei indignado. Nós dois mofando ali, no meio do nada. Já escurecendo. Ah, o detalhe mais relevante disso, que era desesperador. Nós estávamos com uma “entrujona”. Essas “damas” pegando carona. Pegou carona com o ônibus do MST. E, no primeiro carro que passou, e parou, ela subiu. Nós, ali, no meio do nada. Já quase desesperados. Mas eu sabia, dentro de mim, que sairíamos dali. Na pior das hipóteses, voltar com o MST pro encontro regional bahiano. Até que parou um caminhão-consultório. Oftalmologistas passando por uma série de cidades no sertão bahiano e vendendo óculos. No mesmo instante, uma caminhote também parou. O cara disse que havia passado ali, nos viu, não parou, mas viu um orelhão. Tinha que ligar urgente. Parou para ligar e, com o arrependimento batendo, resolveu nos dar carona. Ao longo do caminho, ele e seus companheiros conversando. A música, do Mastruz com Leite. Era uma sobre a história de um vaqueiro. Muito legal a música. Ai, o cara nos convenceu que deveríamos parar em Barra, cidade de D. Luis Cappio. Ele havia se casado ali. Tinha um lugar pra se banhar em um rio e tinha o “Encantado”.

Paramos em Barra. A cidade toda ajeitadinha. Cheia de prédios históricos. O rio São Francisco, barrento. se encontra com outro rio de águas escuras lá. Tem o encontro das águas. É bonito. Chegamos Quinta à noite. Dormimos após uma voltinha pela cidade e tentar marcar um encontro com o bispo. Dia seguinte, fomos ver com Zé do Maninho de falar com o bispo. Chegamos 09h30 na paróquia. Zé nos recebeu bem. O bispo ainda não havia chegado de viagem. Ai, decidimos dar uma volta. Nesse momento, ele chegou! Recebeu-nos super bem. Uma pessoa que transmite serenidade e paz. Só de olhar pra ele, dei razão à luta dele. Para falar com ele, também um articulador de entidades ligadas ao meio ambiente. E, para sua surpresa, o bispo tem a agenda lotada até 2009. Como vimos que ele era ocupado, ficamos conversando com ele brevemente. Gostei das coisas que ele disse. A vida das pessoas está em função do rio e vice-versa. Quem se importa com as pessoas, se importa com o rio. E isso é o que deve prevalecer. A tarde, cozinhamos no fogão de um carrinho de lanches. Depois, fomos até o “cabeça de touro” e o “farol da barra”, onde dá pra tomar banho no rio escuro. O São Francisco, logo adiante, é muito barrento e enorme. À noite, uma voltinha pela cidade. Fomos até uma festa. Mas, já era 23h30 e vazia. Fomos embora. Depois disseram que encheu lá pela 1h00, hora em que eu já estava sonhando alto. Sábado, resolvemos ir até o Encantado. É um lugar entre Barra e Xique-Xique. Ali é o sertão. Mas no Encantado, é uma cachoeira com águas cristalinas. Fomos andando até a balsa. Um belo rolê no sol. Ai, 2h esperando alguém passar. Eu fiquei dormindo ali no chão do posto de controle, numa sombrinha. Parou um mini-ônibus. Uma turma saindo de Bom Jesus da Lapa indo pra Xique-Xique. Nunca haviam estado por ali. Nem o pessoal do posto de controle sabia onde era o encantado. O que sabiam era que tinha uma placa pequena na pista. Fomos no ônibus, atento às placas. Mas não haviam placas. Na pista, só árvore ressecada rasteira. Uma linha reta só. Até que, depois de várias km, se aproximam umas pequenas elevações de pedra. Dei-me conta que seria mais ou menos ali. Ai, a Maíra e um cara viram uma placa. O motorista parou muito adiante. Ninguém havia visto o que estava escrito. O motorista seguiu adiante. Ai, insistimos em parar. Descemos ali mesmo, no meio do nada. Não haviam carros, nem casas, nem nada. Só a pista em linha reta, o sol de rachar e muita caatinga. Milagrosamente, passou um carro. Pensamos em pará-lo. Quase nos atropelou. Fomos andando até a placa. Pronto! Era a placa do "Encantado". Andamos 3km no sol e numa estrada de areia. No meio do caminho, uma casa sem luz elétrica com um cara. Um garimpeiro. Nos deu de beber. Seguimos e achamos o Encantado. Um lugar com água cristalina e uma cachoeira sem água, por conta da seca forte desta época do ano. Pedras bem bonitas por lá. Conversei com alguns garimpeiros que apareceram por lá. É terra de extração de critais. Conhecemos uma família grande que estava ali. Nos deram de comer. Antes do sol baixar, andamos até a estrada. Ai, a família passou e nos deixou em um lugar onde há um bar, para pegarmos uma carona. Conseguimos um caminhão com dois caras. Eles iam dormir em Barra. Ficaram no nosso dormitório. Foi engraçado o motorista se borrando de medo de atravessar a balsa!

À noite, Sabadão, resolvemos dar uma voltinha. A praça da cidade, com uma bandinha que era um lixo. Ai, fomos comer na lanchonete que conhecemos um rapaz. Ele ia pra São Paulo em breve, pela primeira vez, e ficamos dando umas dicas pra ele. O moço nos contando sobre o agito da cidade. Tinha um outro lugar, em uma localidade ali perto, com um bar com música ao vivo. Era distante. Nas tantas, pedi a bicicleta dele. Insisti um pouco e sai andando, com a Maíra no cano. Pedalei até a saída da cidade. Depois, uma estrada de terra bem longa. A noite completamente escura, apenas com as estrelas nos iluminando. Tive que pedalar mais rápido pra fugir de uns cachorros. Até que finalmente chegamos no vilarejo. As pessoas com os colchões na rua, por conta do calor. O bar, com forró, samba e axé ao vivo. A melhor banda da cidade. Assim que cheguei, encontrei a funcionária do dormitório. Tava com um vestido branco super curto, bem decotado, salto-alto branco. Tava de matar. Piriguete, como costumam simpaticamente denominar as moças trajadas de gala. Antes deu ficar feliz, certifiquei-me de seu estado civil. Já adianto que tudo só ficou na imaginação e por alguns minutos, apenas. Na volta, mais cachorros tentando me morder. Ai, um moto-boy bêbado parou. Tive que fugir dele também. Chegamos na cidade a salvos.

Dia seguinte, os caminhoneiros estavam indo pra Xique-Xique. Fomos com eles. Durante o percurso, fomos cantando músicas sertanejas. Achei bem divertido. Preciso ampliar meu repertório no violão. Chegamos e fomos direto ao cais, saber dos barcos em direção a Pilão Arcado nem Remanso. Nenhum no Domingo. Só na Quinta-feira. Disseram que, talvez, no dia seguinte, sairia um barco. Portanto, esperar um dia na cidade. Decidimos ir no parque aquático, que só abre aos domingos. Foi bem legal. Encontrei com uma moça que conheci em Barra. Com ela, tive a conversa mais agradável e fluida da viagem. Ai, no fim do dia, a Maíra conheceu uma moça. Combinei de tocar violão pra galera. E cumpri o combinado à noite. Na rodinha, só mulheres solteiras com mais de 25 anos. Nessa terra, esse tipo de mulher é encalhada. Foi engraçado, pois elas escolheram uma mesa longe do agito da “juventude”. Isolamento proposital. Toquei Chico Buarque e virei atração. Após várias músicas, fui dormir satisfeito com o som e a alegria daquele momento. Na hospedaria, uma gafe. Eu colocando protetor solar de sunga. A dona veio e me disse que ali era uma casa de família e que tinha uma filha de 13 anos. Diga-se, muito lindinha a filha dela e já com carinha de que meia cumprida não quer mais sapato baixo, e que o amor já chegou no coração. Tomei cuidado com a falta de pudor.

 

SUB-MÉDIO SÃO FRANCISCO - Remanso (BA) à Paulo Afonso (BA)

Segunda-feira, acordamos cedo e fomos ao cais. Mais uma vez, nada de barcos. Adeus Remansa, Casa Nova, Sento-Sé, Pilão Arcado, Sobradinho, adeus, adeus... Um cara nos contou do dono de um barco, o Dinamarca, que ia pra Sento-Sé de carro. Conversamos com ele e topou nos levar. Chegamos na casa dele 13h. Esperamos até 18h30. Um saco. Saímos com mais um na cabine simples da D-20. Ou seja, em quatro pessoas. Ou seja, todos bem apertados. Não há estradas entre Xique-Xique e Sento-Sé. O cara foi dirigindo no meio das roças. Às vezes, errava o caminho. Vimos vários animais no sertão. Entre eles, uma onça. Lá pela 00h00, paramos em Cajuí, um vilarejo na beira da represa de sobradinho. Dormimos em rede, na casa de um amigo do motorista. Dia seguinte, bem cedo, fomos pra Sento-Sé. Mais duas horas de viagem. Mas, pelo menos, era dia. Durante o caminho, o motorista dizendo que a gente era corajoso. Coragem mesmo tinha ele, dirigindo à noite, no meio das roças, na escuridão! Na chegada, o cara pediu um cafézinho. Dei-lhe R$10,00 e foi de bom tamanho.

Em Sento-Sé, sem barcos pra Remanso. Desistimos de percorrer a represa. Lá, a represa está bem esvaziada. As árvores saindo pra fora da água. Lago barrento. No chão, areia e muitas conchas. De onde vieram tantas conchas, ninguém sabe. Dizem que o mar que trouxe pela força das águas. Uma dia, quem sabe, o sertão já foi mar, pensei. Decidimos ir pra estrada e pegar carona. Isso era umas 10h30. A estrada começava ali e seguia até várias cidades. Isso quer dizer que o único fluxo de carros era dali em diante. Não passaram carros. Eu estiquei o saco de dormir de baixo de uma árvore e dormi. Acordei e fiz uma bela sessão de yoga. Perdi o saco de meu saco de dormir, pois ventava muito. Almoçamos nossos lanches e passou um mini-ônibus às 13h. Conhecemos algumas pessoas. Primeiro, um USPiano metido a viajante malandrão. Traduzindo: aqueles caras que ficam contando vantagem de ter ido pra aqui e acolá, pagam uma grana em bilhetes e se vestem como se fossem caiçaras. Depois, Dona Lourdes e sua neta. Ai, Dona Léia, Dona Lourdes e mais uma que não me recordo. Fiquei conversando com as três. D. Léia me contou que morava em Sento-Sé velho. Foi expulsa pela cheia da represa em 1977. Quase chorou ao me mostrar a estrada que ainda liga a rodovia ao lugarejo de baixo d'água. Nas tantas, me ofereceu sua casa para nos hospedar. Deu-me um bilhete sem que o nosso amigo viajante visse. Tirem suas próprias conclusões. Numa parada do ônibus, toquei violão. Foi legal! Toquei “Sobreadinho”, do Sá e Guarabira, e “Petrolina e Juazeiro”, cantada pelo Alceu Valença. Depois, descemos em Sobradinho e D. Lourdes nos ofereceu sua casa! Fomos muito bem servidos lá. Deu-nos janta, café da manhã e almoço! Bem cedinho, nos emprestou bicicletas para irmos até a represa de Sobradinho. Pedalamos até lá e diziam que era necessária uma autorização para entrar e ver a usina. No entanto, quando chegamos lá, havia uma porta aberta. E, como todos sabem, o cachorro entrou na igreja porque a porta estava aberta. Claro, corriamos o risco do outro ditado: o cachorro foi escurraçado pra fora da igreja porque entrou pela porta aberta. Entramos pela porta aberta. Descemos um elevador. Vimos a parafernalha toda. Andamos pelos jardins e comemos mangas dos vários pé que ali estavam. Voltamos e almoçamos. Ai, mais estrada. Carona com um cara que foi beirando o rio até Juazeiro.

Ele nos deixou perto da casa de D. Léia. Descobrimos que na cidade rolaria o Juafest, uma prévia do carnaval. A mulher não estava em casa, então fomos obrigados a ficar num hotel. O mais caro da viagem. R$28,00 o quarto, com café da manhã. Mais a noite, encontramos D. Léia e combinamos de levar as coisas pra lá no dia seguinte. Nessa noite, a prévia do carnaval. Durante o dia seguinte, fomos pra Petrolina e pra ilha do Massangando, por sugestão de nosso herói USPiano. Chegamos e pegamos uma carona até a ilha. Passamos a tarde lá. Completamente deserta. Dormi e fiz uma boa sessão de yoga nas areias. Pra voltar, tivemos que praticamente fazer sinal de fumaça para o barqueiro ir nos buscar. Fomos pra estrada pegar carona. Um belga parou. Ficou falando que o povo brasileiro é egoista. Dou razão parcial a ele. Nos deixou no centro. Na casa de D. Léia, janta. Conversei com um parente dela, que era garimpeiro. Extraia topázio e ametista. Seus filhos não se interessavam por semelhante atividade. Convidou-me para aprender o ofício. No entanto, ainda era quinta-feira e eu não queria esperar até Domingo. Essa noite, Carnaval. E, dia seguinte, estrada.

Quem parou foi um casal que, minutos antes, vimos na balsa entre Juazeiro e Petrolina. Eram da PUC e USP. Estudantes de geografia. Alugaram um carro para conhecer as famosas vinículas do São Francisco. Pararam em Lagoa Grande, cidade da uva do nordeste. Ali, mofamos no sol do meio-dia. Até que parou um cara. Nos deixou em Cabrobó. A cidade faz parte do polígono da maconha do sertão pernambucano, junto com Orocó, Belém de São Francisco, Floresta e Nova Petrolândia. Diziam que era uma região perigosa. Em Cabrobó, o local da transposição do rio São Francisco. Era longe da cidade. Passamos lá de carro e vimos um acampamento do exército. Diziam que havia um outro, do MST, como protesto. Não foi possível irmos até lá. Ao descermos no trevo da cidade, dois jovens nos abordam. Pensavam que éramos hippies. Eu, intuindo a intenção deles, logo dispensei. Tenho certeza que queriam nos vender uma tal de "erva". Na cidade, ficamos no pior muquifo da viagem. R$5,00, sem água na torneira e sem fechadura na porta. Tem uma ilha fluvial com aldeia indígena. Uma igreja antiga e outra mais antiga praticamente no chão. O clima é estranho por lá, mas é tranquilo.

De manhã, estrada. Conseguimos carona para o trevo que liga as estradas pra Salgueiro, Floresta e pra Bahia. Ali, a caatinga é brava. Seco mesmo. Havia uma “companhia”. Sorte que logo o primeiro caminhão a levou. Ai, logo em seguida mesmo, parou uma caminhonete. O cara era policial e nos levou até Floresta. Explicou como a polícia estava se preparando no combate ao crime organizado. Falou dos truques na caatinga. Da favela, uma planta que causa muita irritação. Deixou-nos no trevo para Nova Petrolândia. O sol estava muito forte e começou a nos dar dor de cabeça. Não havia nada por ali que gerasse uma sombrinha qualquer. O sol apertando cada vez mais. Passou um sertanejo com seu carrinho com mato para o gado. E eu, ali, quase derretendo. Depois dessa, aprendemos que sol do meio-dia já não dava mais nessa região do país. Até que chega a mesma "companhia". E, por mágica, o primeiro caminhão que passa parou pra ela. Certo momento, passa uma van. O cara nos dá carona. Era o famoso velho tarado. Secava as meninhas na cara de pau. Foi engraçado, pois subiu uma indiazinha muito bonita e o velho me dizia "essa você pegava para criar". Com certeza! Haviam muitas tribos nessa região e descendentes indígenas. A menina era linda de morrer. Não me deu bola, claro. Afinal, eu havia assumido o posto de "cobrador do motorista tarado". Ao longo do percurso, o rio foi ficando cada vez mais azul. Uma coisa linda de se ver. Passamos pela represa de Itaparica e a de Paulo Afonso. Nesta última, parece um cânion. Há escadarias para se descer até o rio, com suas águas azul escuras. Sem entrar na água, pois é muito perigoso.

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BAIXO SÃO FRANCISCO - Paulo Afonso (BA) à foz (entre AL e SE)

Deixou-nos em Paulo Afonso. Era um Sábado. Final de semana, decidimos ficar por ali. À noite, ficamos sabendo que havia uma festa com trios elétricos. Claro, não fomos. Ao invés disso, tomamos caldinho num bar famoso. Gostoso. E carne de bode assada. Uma delícia. Dia seguinte, andamos até uma prainha e passamos o dia lá. Por um acaso, passou a terceira elementa da nossa viagem! Muita coincidência. Foi fantástico. Ela estava com uma companheira. Sua história foi mais ou menos a seguinte: decidiu mudar seu roteiro de viagem em função de suas necessidades profissionais. Passou ano novo com o recém assumido namorado. Conheceu uma moça na recepção ao pagar a conta da pousada. Comentou da viagem pelo Nordeste. A moça se interessou. Dia 08 de Janeiro, foram as duas juntas pra tal viagem. Nesse dia, em Paulo Afonso, senti a tensão entre elas. Isso sim é coragem: viajar com uma desconhecida. Se eu, com a Maíra, que nem era lá tão minha amiga, já estava tendo que exercitar bastante a tolerância, imagina só com uma estranha. Passamos a tarde conversando. À noite, fomos andar pela cidade. Comemos tapioca, sorvete e outras guloseimas. Domingo nos permitíamos comprar quitutes nas barraquinhas da cidade. Quando nos encontramos com as duas, uma cena hilária. As duas estavam secando um moço sentado numa mesa próxima. Era praticamente a cena inicial de um filme pornô. O jeito que as duas estavam olhando era obsceno. Sentei-me e tentei fingir que não estava acontecendo nada. Conversei sobre Paulo Freire, Transformação social e educação. Terminaram de comer e fomos andando os quatro para o albergue delas. Eu e a "colega", e Maíra com a Maíra. Sim, as duas têm o mesmo nome. Tive que aguentar aquele papo furado, enquanto uma Maíra reclamava de seus respectivos companheiros de viagem à outra. Algumas horas, um terceiro elemento mediador é necessário. O meu eram meus amigos em São Paulo, que de vez em quando recebiam uma mensagem pelo celular, expressando minha falta de paciência. Chegamos na hospedagem, nos despedimos e combinamos de nos encontrar em 3 dias, numa cidade próxima. Claro, eu já sabia que era o tipo de combinação mentirosa. Não nos encontraríamos em lugar algum.

Na Segunda-feira, pegamos um ônibus até a saída da cidade. De lá, andamos no sol forte das 09h30 até um trevo que ligava Paulo Afonso a Canindé de São Francisco, passando por Xingozinho. Não passavam carros por ali. Parou um caminhão-pipa. Ele estava esperando um comboio com mais 08 caminhões para abastecer de água algumas cidades da redondeza. É, a seca é brava nessa região, apesar do rio estar correndo ali do lado. Parou o chefe do comboio em uma caminhonete. Nos deu carona até Xingozinho. Ali, o sol já estava muito forte e nos refugiamos debaixo de um ponto de ônibus. Estávamos em um vilarejo. De vez em quando, batia um vento. Um morador nos informou que passaria uma van em uma hora e meia. Não tive dúvidas: montei minha rede ali no ponto mesmo. A van chegou e, por R$3,00, fomos até Canindé, já mortos de fome.

Chegamos em Canindé e o dono do bar não quis vender 1 Prato Feito para nós dois. Fiquei indignado e fomos procurar outros lugares. Antes, passamos por um dormitório. Pagamos R$6,00 cada um. Deixamos nossas coisas e fomos procurar um restaurante. o dono nos fez 1 PF por R$4,00, permitindo-nos dividir o prato. Mais do que isso, acabou dando-nos dois pratos pelo preço de um. Nas tantas, chega um ônibus de uma universidade federal da bahia, cheio de estudantes de jornalismo que investigavam sobre algum tema que nem me lembro mais. Já não me lembrava mais do estilinho universitário. Meninas lindas e fresquinhas e rapazes barrigudos e barbudos. Dali, fomos direto ao rio. Tínhamos que descer uma estrada. Mais uma carona fácil. Passamos a tarde no rio, que estava contido pela represa do Xingó. O rio, ali, é bem azul. Águas calmas, muitas pedras escuras para fora e salva-vidas controlando os banhistas na prainha. Na volta, outra carona fácil. Paramos no começo da cidade para nos informar do passeio ao Cânion do Xingó. Reservamos nossas vagas. À noite, fizemos nossa comida. Tomei um banho e fiquei contemplando a lua. Ouvi alguns sons pela cidade e música alta. Falei para a Maíra irmos dar uma volta, naquela Segunda-feira pacata no interior do Sergipe. Pelo incrível que pareça, um circo na cidade! Pagamos R$3,00 pelo espetáculo. Caro, para os padrões da localidade. Primeiro número, dois malabaristas. Em seguida, um palhaço, uma gostosa dançando, um equilibrista que colocava um carrinho de areia no queixo, outra gostosa dançando e mais um palhaço... Pois é, eram números estranhos mesmo. A todo instante, o apresentador reclamava que o preço era aquele mesmo e que o povo de Sergipe não sabia prestigiar a arte circense. Até que de repente, entra um cantor divulgando seu trabalho. Era Alves Correia e as Bundudas, lançando o CDeu Derrubados. O cara era um político se aventurando na música. Sua grande sacada era fazer do auto-desprestígio o sucesso. Na real, a grande sacada dele eram as bundudas. Eu havia visto num cartaz as moças. Não dei nada. Até que elas entraram no palco. Sim, eram todas muito bundudas. Aqueles trazeiros enormes mesmo. Muito grandes mesmo. Imensos. Uma loira, uma morena, uma índia e uma preta. A loira, era super malhada com uma bunda gigante. Boa. A morena, linda com uma bunda gigante. Delícia. A índia, com seus cabelos compridos até a cintura e uma bunda gigante. Sensual. A preta, era a mais linda de todas, também com uma bundona. Um sonho. Elas dançando e o Alves Correira fazendo piadas. O público se divertindo. Eu, babando. Estava babando mais do que cachorro na frente da televisão de cachorro (aquelas máquinas de assar frango). Era incrível aquele show. Um monte de gostosas com seus bundões, com um sujeito atarracado fazendo piadas e quebrando as pernas de qualquer um que tentasse lhe sacanear. Fiquei ali babando sem pudores. Babei literalmente. Estava quase precisando de um babador. Até que chamaram alguém para ir dançar com uma das bundudas. Eu já tinha escolhido meu alvo: a preta. Porém, a coragem sumiu. Apesar da Maíra ter feitos gestos para me chamarem, quem acabou ralando as cochas num forrózão, com a mão no meio do bundão da morena, foi um felizardo da região. Aprendi que não devemos interferir nos hábitos das localidades que visitamos. O show terminou, minha salivação cessou e fomos dormir todos felizes. Quer dizer, eu fui dormir feliz, de pelo menos ter satisfeito meus desejos escópicos.

Acordamos e pegamos uma carona até o rio. Ali, outra carona pela estrada de terra até o museu de arqueologia. E mais outra carona com um casal de amigos até a represa. Lá, pegamos o passeio das 10h30. R$32,00 cada um. Aquele clima era-me completamente estranho. Turistas. Eu, que achava ser um turista, dei-me conta que havia me tornado um viajante. Aquela quantia de dinheiro era exorbitante. Uma amiga me mostrou umas fotos e vi que era um passeio imperdível e, por isso, decidi fazê-lo. O catamarã saiu com um ligeiro atraso. As conversas e as posturas das pessoas me eram avessas. Esse dia senti na pele como é ser de outra casta. Eu era um peixe fora d'água. Aquele mundo de ostentação era estranho. O passeio foi lindo. No começo, muita água azul. Aos poucos, viam-se casas. Diziam que muitas delas ficaram de baixo d'água e que os pescadores foram indenizados. Acredito. Também diziam que havia um sítio arqueológico e que, antes da enchente, fizeram pesquisas suficientes. Outro fato em que acredito. Após quase uma hora, chegamos ao Cânion. Antes das águas, era o quinto maior do mundo. Após as águas, o maior navegável do mundo. Outro fato memorável. Finalmente, chega num ponto em que podemos cair na água verde. É maravilhoso. A água é geladinha e se pode nadar à vontade. Uma delícia. Muito lindo mesmo. Valeu a pena. Depois, mais outra hora pra voltar, carona com o casal até a represa, pra tirar umas fotos, mais outra carona até a cidade, pegar nossas mochilas, outra carona até o trevo de Piranhas, outra carona até o centro da cidade e, finalmente, a última carona até Piranhas velha.

Chegamos! Piranhas velha tem esse nome porque ficaria de baixo d'água se fosse concretizada a represa em Pão de Açúcar. A cidade é histórica. Ali perto, em Angico, Lampião e seu bando foi emboscado e dizimado. É uma cidade pequenina, toda conservada, com casas típicas de 1900, pintadinhas, com uma prainha e um rio lindo. Das cidades que visitei, é a mais linda, sem sombra de dúvidas. Por isso mesmo, há uma pequena estrutura turística. Isso quer dizer que as pousadas custavam, por baixo, R$50,00. Foi chato descobrir isso lá em baixo. Pelo menos, tomei um banho no rio, conversei com um pescador e acertamos de tentar pegar uma carona com ele para conhecer o rio sobre sua canoa no dia seguinte. Subimos pra piranhas nova de carona com um trio de estudantes. Um deles fazia um TCC sobre a transposição do rio. Para seu espanto, a maioria das pessoas estava a favor desse projeto. Deixou-nos num dormitório de R$6,00. Ficaram abismados com nossa disposição de ficar apenas em pulgueiros. Os donos eram muito simpáticos. Deixaram que usássemos a cozinha para nossas refeições. O mais incrível dessa viagem foi que muitas pessoas tinham dó da gente. Viam que éramos indefesos e nos ofereciam uma série de benefícios. Aprender a fazer cara de coitado tem suas vantagens. Gostei da receptividade e empatia do brasileiro do interior do país. Isso só existe aqui. Europa? Primeiro mundo? Na manhã seguinte, acordamos tarde. Descemos ao rio depois das 14h, quando o sol já estava mais ameno. Mais uma vez, nadamos no rio e conversamos com o pescador. Não haveria carona alguma. Ficamos até escurecer. Visitamos todos os pontos da pequena cidade. Tem dois mirantes e a vista é incrível. Vale a pena visitar essa cidade. Acabamos não indo pra Angico. Recusamos pagar mais R$35,00 só pra visitar uma "gruta" com as tumbas dos cangaceiros.

Na manhã do dia seguinte, uma carona difícil. Vimos que não haviam estradas que seguiam rio abaixo. Portanto, decidimos pular algumas cidades e ir direto para Penedo. Teríamos que passar por Olho d'Água do Casado, São José da Tapera, Olho d'Água das Flores, Monteirópolis, Jacaré dos Homens, Batalha, Jaramataia e, por fim, Arapiraca. De lá, mais 3 cidades até Penedo. Ou seja, um longo trajeto. Conseguimos uma carona para a primeira cidade com uma caminhonete pau-de-arara. Fácil. Andamos alguns metros e nos posicionamos numa sombra. Lá, parou um caminhão indo pra Arapiraca, cheio de côco. Estávamos com sorte. Até que o motorista pegou um côco pra gente tomar. Segundo ele, alguns côcos, entre os mais de 6000 contidos no caminhão, não fariam diferença. Ele pegou o canivete e abriu um para bebermos. Deu partida e eu, com meu canivete, fui abri-lo. O utensílio fechou. Com meu dedo mindinho no meio. O sangue, correndo. O buraco, enorme. A angústia, de castração. Para estancar, papel higiênico. De repente, acordei com dor de cabeça forte e necessidade de deitar. Havia desmaiado e me retorcido inteiro por duas vezes, segundo posterior relato da Maíra. O motorista, desesperado. Paramos. Deitei. Um aglomerado de pessoas ao meu redor. Levaram-me pra um posto de saúde em um distrito pequeno distante da cidade. Repousei. Um curativo simples. A enfermeira disse que essa reação foi do medo de ver sangue. Não foi dessa vez que virei o Lula. Uma senhora ofereceu a casa para descansar. Dizia que seu lar era simples de mais para receber-nos. Claro, não fizemos drama algum para afirmar que queríamos ir para lá. Fomos até lá e dormi a manhã inteira. Almoçamos sua comida simples. Uma casa sem água encanada. Dormi mais um pouco depois da refeição. Levantei-me melhor. Decidimos ir para a estrada, pois seria muito incomodo permanecer ali. Na estrada, para o primeiro carro. O sujeito me olha e, sem eu dizer nada, fica comovido com os dois viajantes ali parados a seu lado. Oferece-me R$1,30. Eu recusei, dizendo que preferíamos uma carona. Se fosse pelo menos R$5,00, eu teria aceitado de súbito. Parou mais um pau-de-arara, que aceitou nos levar de carona. Colocamos as mochilas na parte de cima, amarradas por cordas. Junto estava o "gostosinho", o meu querido violão. Saímos e, após alguns minutos, dentro dos quais todos já estavam sabendo e perguntando detalhes de nossa peripécia, o gostosinho resolve alçar vôo. Como ele não tem asas, estatalou na estrada e se arranhou. Sai correndo atrás dele. O carro, foi buscar-me em sua marcha ré. Após um breve exame, vi que ele também havia se assustado à toa. Foram duas larcas a menos e uma peça descolada. Seu som não ficou prejudicado. Definitivamente, havia me dado conta que aquele era um dia de silêncio. A cada cidade que passávamos, eu dizia seu nome. Um dos passageiros ficou abismado com minha sabedoria. Decido contar-lhe o segredo. Em toda entrada de cidade, há um letreiro enorme com o nome da mesma. Bastava-me ler o nome e pronunciá-lo. O rapaz se satisfez com minha explicação.

Arapiraca no fim de tarde. Pisamos na cidade e uma leve garoa desceu até nós. Lembrei-me de São Paulo. E agradeci a Deus por mandar água para aquela região. Todos estavam clamando por água. Mês de janeiro não choveu o esperado e as águas estavam muito abaixo do nível esperado. Anuncio de crise energética nos jornais, prejuízos na agricultura, desolo de sertanejos. Procurei uma hospedaria. Deixamos nossas coisas e fomos dar uma volta na cidade. Compramos muitos legumes para fazer uma sopa sustanciosa. Afinal, eu era um ferido de guerra nesse dia. Como todo coitado, fui procurar afago em algum lugar. Resolvi que, nesse dia, o local eleito era o hospital. Fomos para em um posto de saúde, esperamos quase 01h e, em seguida, a enfermeira me deu atenção. Enquanto fazia-me um curativo, vi que o drama era demasiado. Voltamos ao hotelzinho, comemos e dia seguinte, mais caronas.

Logo cedo, dei-me conta de mais uma característica do povo dessa região. Ao se perguntar alguma informação, a pessoa quer logo dar mais informação e, no fim das contas, a informação sai tão confusa que não se compreende nada. Era preciso perguntar para mais de duas pessoas diferentes a mesma coisa, para enfim construir um conhecimento suficiente para nos deslocarmos. Nesse dia, essa pequena constatação ficou mais clara. Foi difícil fazer o interlocutor entender que queríamos chegar apenas na BR, e não em alguma cidade. Após nos fazermos compreender, chegamos até a estrada. O cobrador se equivocou e tivemos que parar no meio do nada. Para sair dali, uma van. R$2,75. Chegamos num trevo e a chuva cai forte. Num barzinho, resolvi agraciar os clientes com música. A chuva parou e fomos até um local privilegiado para caronas. Pára um moço com seu filho pequeno no banco trazeiro. Seu assunto era exclusivamente sobre posses materiais. Contou-nos de João Lyra, dono de quase todo Alagoas. A paisagem era única nessas bandas: cana e mais cana de açúcar. Incrível. Falou de política e do dinheiro que investiu em um homem, para ter benefícios. Enfim, pediu dicas sobre São Paulo ou Tocantins para abrir um negócio próprio. Deixou-nos em Penedo, após gabar-se da quantia de dinheiro que conseguia ganhar. Vai entender o ser humano.

 

Penedo me fez lembrar Ouro Preto, em Minas Gerais. Acabei lendo que era considerada a Ouro Preto alagoana em um jornal, posteriormente. Uma cidade cheia de ladeiras, coqueiros, chuva, rio açoriado, casas típicas e arquitetura de 1700 a 1900. Em cada cantinho, respirava-se um pouco de história. Conseguimos nos hospedar na Pousada do Ribeirinho. Esse dia, mandei a Maíra procurar. Durante a viagem, configuramos uma divisão de funções. Em geral, eu era quem procurava hospedagem, enquanto ela esperava com as mochilas em alguma sombra. Enquanto ela procurava, passaram dois mochileiros. Conversei com eles. Franceses. Sabiam que o rio São Francisco era o segundo rio mais importante do país. Creio que poucos brasileiros sabem dessa informação. Andando na chuva pela cidade, fomos descobrindo o charme daquele local. Nessa sexta-feira à noite, decidimos ir até o bairro de Toinho Pescador, um homem que a outra Maíra e o trio de estudantes nos recomendaram conversar. Na caminhada até o bairro, encontrei um homem que confeccionava bonecos gigantes e toda classe de bonecos. Tinha um ar de importante. Explicando: usei o truque do "ler alto o nome escrito em letras de Itú" quando entrei no ateliê do homem. Ele se sentiu importante. E minha primeira pergunta foi: "o senhor sabe onde é a casa de Toinho Pescador?". Conversamos um tempinho com o fulano dos bonecos. De fato, ali era uma terra de artistas. Caminhando até a casa de nosso procurado, mais artistas se manifestavam no interior de suas casinhas. Encontramos a casa de Toinho facilmente. Todos o conheciam. Seu bairro era um bairro industrial antigamente. Era um bairro periférico. Sua mulher estava em casa e nos recebeu. Contou-nos que trabalhou na fábrica e da luta de criar os mais de 10 filhos. Toinho não estava. Demos uma volta pelo bairro e voltamos para esperá-lo. Quando chegou, nos recebeu bem. Um negro velho contador de histórias. Um homem simples. Pescador há anos. Um poeta. Proclamou duas poesias para nós. Um militante. Contou-nos que sua luta pelo rio começou há muitos anos, pelo incentivo de um bispo que auxiliava o povo a sobreviver. Atualmente, Toinho é uma referência inquestionável sobre qualquer coisa que se diga sobre o rio. Um bom marido. Contou-nos que quem o incentivou ao ativismo foi sua mulher. Achei lindo esse companheirismo entre eles. Um homem digno. Foi pescador e criou todos os filhos com a força de seus braços no rio. Inteligente. Articulava o discurso de maneira simples e profunda. Um homem de Deus. Fé e perseverança eram seus lemas. Rio São Francisco vivo: terra, água, rio e povo. Sai de lá com uma leveza na alma. Sua última pergunta para nós foi sobre militância. Disse-lhe que essa viagem não foi em favor de nenhum movimento. Havia sido a maneira que encontramos de conhecer melhor o rio, o povo e as opiniões sobre a transposição. Aquilo tudo me fez refletir sobre meu papel na luta pela vida ao longo do rio. Cheguei à conclusão que o alcance e limite de minha atuação era a de um turista, que ao viajar ao longo do rio, trazia para as pessoas próximas a lembraça de sua existência. E isso é muita coisa, apesar de, paradoxalmente, não ser nada ao mesmo tempo. Se todas as pessoas fossem fazer uma viagem a um trecho do rio, tenho certeza que ele estaria bem diferente atualmente. Por isso mesmo que me dei conta de uma transformação pela qual estou passando. Antigamente eu teria levantado bandeiras, encarado debates, enfrentados críticas e vociferado jargões politizados. Hoje, dou-me conta que o protesto é necessário, mas há diferentes formas de fazê-lo. Decidi ser uma pessoa pacífica. Portanto, essa viagem pelo rio São Francisco foi uma forma pacífica de atrair a atenção para as questões que circulam a seu redor.

 

Sábado fomos andar mais um pouco pela cidade. Algumas pessoas diziam que em Sergipe, mais precisamente em Neópolis, haveria uma prévia de carnaval, com muito frevo. Fomos até o porto e pegamos carona com a balsa e com um ônibus. Nos deixaram no centro da cidade. Era apenas boato. Não havia nada ali. Após um descanso, pagamos a lancha-circular e voltamos a Penedo. Sábado à noite e a cidade completamente vazia. Não havia praticamente ninguém na rua. Uma cena engraçada: na beira do rio, há um bar chique. Queríamos comer macaxeira frita. Eu, com minhas roupas sujas, fui perguntar da iguaria ao garçon. O moço, gentilmente, me disse que ali não havia tal alimento e que, talvez, eu acharia em outro lugar, mais simples. Foi a única pessoa na viagem que olhou para mim e identificou a necessidade do cliente. Bom esse cara. Após a frustração de um Sábado à noite monótono, decidimos seguir viagem para a última cidade na beira do rio São Francisco.

 

Pegamos uma lotação para Piaçabuçu, a apenas alguns kilometros dali. Durante o percurso, duas mulheres se insultando. Chegamos na cidadezinha e estava tendo festa do Bom Jesus. por sorte, conseguimos um hotel por R$10,00 cada um. Caro, mas tudo estava lotado. No cais, tentei conversar com alguns pescadores. Já era meio dia. Todos ficariam ali para ver a procissão. Ou seja, foz do rio só dia seguinte. Combinei com um deles para que nos levasse até lá. Topou. Ficamos mais tranquilos e fomos ver a tal da procissão. Era uma estátua de Jesus sobre um barquinho. O povo levava a imagem pelas águas e, depois, pelas ruas. Foi bonito. Depois, festa, com duas bandas famosas. Acontece que meus ânimos não estavam lá dos melhores. Dia seguinte a grande viagem acabaria. Fiquei de mal-humor. Nem esperei a primeira banda terminar, resolvi ir dormir.

 

Acordamos, naquela segunda-feira dia 28 de Janeiro de 2008, com muita chuva. Passaram-se 5 semanas. 33 dias. Uma longa viagem. Após todo esse percurso, a dificuldade final. Andando na chuva forte, nos dirigimos até o cais. O nosso pescador não estava lá. Após alguns minutos aparece um pescador. Não iria para a foz. Depois de um tempo, aparece outro. Disse-me que nos levariam, só que mais tarde. Esperamos quase a manhã toda. O terceiro pescador não foi muito amistoso. Disse-nos que não garantia nos levar. Já era quase meio dia. Estávamos ali desde as 08h00. Comecei a conversar com alguns pescadores. Um deles me disse que o melhor era sempre conversar com quem era de confiança, como ele mesmo se auto-afirmava. Contou que um caroneiro foi e nunca voltou. Ai, em seguida, foi falar com outro cara e, de repente, tínhamos uma carona até Barra, um povoado no lado de Sergipe, com um cara ponta firme. Dali, teríamos que nos virar para ir para Alagoas, onde estão as belas dunas. Aceitei. No mesmo instante, o pescador do começo da manhã aparece. Fomos com ele. Estavam com mais dois colegas, 7 passageiros e nós dois caroneiros. Nossa primeira e única carona de barco. O rio estava tão seco e açoriado, que não circulavam mais barcos e a população preferia utilizar os carros, pois era mais econômico para todos. O pescador deixou a todos em Barra e nos levou até Alagoas. Sua dicção era muito ruim. Eu mal entendia o que ele dizia. Mesmo assim, nossa comunicação foi muito boa. Durante a travessia, contou-no de "mãozinha", um vendedor de artesanato que ficava ali nas dunas. Eles nos levaria de volta. Em Alagoas, mãozinha não havia ido trabalhar. Então, uma vendedora nos ofereceu carona. O pescador ficou aliviado e foi embora, de baixo de muita gratidão de nossa parte.

 

Por conta de uma exigência do IBAMA, as dunas podem receber visita apenas por 1h30 dos turistas. Naquele momento, a última leva deles ficaria por mais 20 minutos. Foi o tempo de subir as dunas, relaxar, comer um bolo e uma maçã, contemplar a paisagem, agradecer a Deus pela viagem, rever todo o percurso, ter muitos pensamentos e sensações, sentir gratidão no coração, entrar no rio e sair de alma lavada. Foi simplesmente incrível chegar até ali. Uma coisa mágica. Praticamente 3000km (2830km, para ser mais preciso). Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Muita coisa boa aconteceu nessa viagem. Depois que me deixei levar pelo fluxo do rio, perece que tudo se manifestava como magia. Era lindo o que víamos. Beija-flores, árvores, águas correndo, pôr-do-sol, cachoeiras, animais silvestres, pedras, festas populares, pessoas boas, auxílio no momento certo, bons fluidos. Foi tudo muito bom. Uma viagem inesquecível. Aos poucos, eu fui relaxando e deixando para trás o habito paulistano. Passei a ter outro ritmo. Tempo de serenidade. Paz. Paciência e esperança. Eu ali, olhando aquele rio lindo, com suas águas calmas, desembocando no mar, com suas águas furiosas. Ali, no mar, havia um farol. A cidade de Sergipe fora inundada pelo mar. As dunas eram misteriosas. Um silêncio denso no ar. Senti a paz no coração e muita gratidão. Finalmente consegui o que estava buscando: a paz e a harmonia com Deus. Depois do banho nas águas do rio (que ao longo deve vi receber toneladas de sujeira - o que me deu certo nojo), o moça do artesanato nos chamou. Seu barco já haviam três pessoas. Disse-nos que o outro rapaz nos levava. Deu-nos mangas deliciosas para comer e insistiu no fato de que daria carona se não houvesse outro barco ali.

 

O barqueiro era um fiscal. Ele controlava o respeito à regra do IBAMA. Navegou alguns metros rio acima e parou em um manguezal. Queria nos mostrar outros lugares. Dizia que era para poucos privilegiados. Conduziu-nos às mais altas dunas da região. Do topo, via-se o mar, a foz, o rio, as dunas, a floresta, Piaçabuçu e até Penedo. Simplesmente lindo. Senti muita paz naquele lugar. Contou-nos que, ao enfrentar algum problema, ia visitar o "escritório", para contemplar o encontro do mar com o rio. Sentou-se e ficou olhando aquela paisagem. Ensinou-nos sobre os cajueiros. Comemos alguns deles. Até que nos mostrou um cajueiro solitário, desgarrado do bando. Aquele era o símbolo da vida, segundo ele. A árvore não crescia mais do que aquilo (era pequena). No entanto, não desistia. Aquilo era uma lição de persistência e de como devemos ter nossas atitudes em nossas vidas. Também nos falou sobre o espírito. Foram palavras simples, porém complexas. Meditei dias sobre tudo aquilo. Pegou um atalho diferente para voltar à cidade. Passou por um vilarejo e por canais de mangue. Senti uma serenidade indescritível. Falava-nos sobre os caranguejos. O silêncio falava por nós. Por fim, parou na casa de um conhecido, na beira do rio. Pegamos algumas mangas de várias variedades. Voltamos para a cidade e nos despedimos dele. Tudo o que aconteceu, considero como um presente. Um sinal da aliança de um ser humano com a bondade de Deus.

 

O FIM

A viagem terminou ali. Tínhamos que enfrentar mais duas semanas antes de voltar pra casa. Recomendo a todos que voltem assim que terminarem o percurso principal. Pegamos nossas coisas. Três carona até Coruripe. Hospedagem na casa de uma senhora. Praia linda na manhã seguinte. À tarde, carona e Maceió. Dois dias por lá. Mais uma pessoa nos dando dinheiro. Foi um professor de Psicologia da Educação, que nos conheceu em um forró e ficou com dó de nós. Carona e Maragogi, com um cara que nos pagou um peixe, mas na hora de pagar a conta, deu dinheiro parcial. Cidade turística. Desistimos de dormir lá e carona para São José da Coroa Grande, já em Pernambuco. Praia e, dia seguinte, carona. Finalmente, Recife. A última carona merece detalhes. Resolvi fazer uma placa. A única da viagem. Saímos de São José e, após um tempo no trevo, uma carona com um evangélico até Barreiros. Era um posto policial. Eles estavam olhando desconfiados para nós. Achei que nos expulsariam dali. Entretanto, em determinado momento o policial pára um ônibus. Chama-me: "é de onde?". "São Paulo". "Para Recife?". "Sim, senhor" - como anunciava minha placa. "Prazeres?". Dei uma risada e: "prazer!". "Não. Prazeres é o bairro". "Este aqui?", perguntei-lhe. "Não, lá em Recife. Pra onde vocês vão lá?". "Não sei. Vou ligar e uma amiga vai nos buscar". "É mesmo?". "É. Não sei pra onde estou indo. Só sei que é Recife". O policial pediu ao motorista para nos levar. Agradeceu por nós e subimos. Descemos em Prazeres, na região metropolitana de Recife e pegamos um ônibus até a praia de Boa Viagem. Ali, minha amiga foi nos buscar.

 

Sexta-feira, véspera de carnaval. Visitei Olinda, Caruaru, Ilha de Itamaracá, Abreu e Lima, Cabo de Santo Agostinho, Porto de Galinhas, Maracaípe e outras pequenas localidades. Pernambuco é um lugar excelente se se viver. Conheci pessoas inesquecíveis. Voltei para São Paulo dia 13 de Fevereiro de 2008, já com muita saudade dos meus. O resto de minha vida, a terceira viagem: aquela em que revisito, em minha memória, cada canto da viagem concretizada ao longo dessas 7 semanas oníricas...

 

 

Este relato está também descrito no meu blog, com fotos:

http://viagemriosaofrancisco.blogspot.com/

 

Fotos de toda a viagem:

http://picasaweb.google.com/viagemriosaofrancisco

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