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Postado (editado)

Relato completo: https://sites.google.com/takedas.com/os-irresponsveis/fumaça-por-baixo-o-início

Instagram com fotos de viagens: https://www.instagram.com/viagens_e_musica/?igsh=MW9wMjVqZm90OHYzMQ%3D%3D&utm_source=qr#

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa


A ideia

Tudo começou a partir de conversas na academia, onde eu (Yan) e Raphael falávamos sobre trilhas e viagens as quais queríamos fazer ou que já tínhamos feito. A conversa fluía e sempre o assunto era o mesmo. Então, por que não fazermos uma trilha juntos? E por que não a trilha mais difícil da chapada diamantina, a cachoeira da fumaça por baixo? Assim definimos que iríamos.

Faltava, então, mais pessoas para completar. Assim chamei um conhecido meu na época, ex-namorado de uma das minhas melhores amigas. Já tinha viajado uma vez com ele, mas não poderia considerá-lo amigo. Esse é Christian. Raphael por sua vez chamou outro conhecido, Otávio, também da academia.

A trilha estava definida. Cachoeira da fumaça por baixo. Restava definir então o caminho por onde subiríamos. Serra do macaco, a mais demorada e que precisaríamos de mais um dia, ou uma tal de fenda da fumaça, a mais difícil, que nos faria economizar um dia? Não tínhamos mais um dia, então tinha que ser a fenda da fumaça. 

Trilha definida, planejamento feito, logística organizada e equipe formada. Agora é começar o que foi até então uma das melhores experiências da minha vida.

A trilha - Dia 1

Saímos de salvador 3 da manhã de um sábado. Era um feriadão e só tínhamos 3 dias. Entramos no carro, apresentei Chris à Rapha e Otávio que, até então, não se conheciam. Começamos a viagem tocando um bom rock/reggae que todos no carro gostam e cantamos a viagem toda.

Chegamos em Lençóis e começamos a trilha por volta de 8 da manhã. A primeira parte da trilha era atravessar o Rio Ribeirão que em condições normais é só sair pulando pedra. Assim começou nosso primeiro desafio, o rio estava completamente cheio e com uma correnteza absurda. Ficamos 2 horas procurando e pensando por onde passar com as mochilas, mas sem achar uma solução. Não tinha opção fácil, a correnteza estava forte e nos levaria facilmente se tentássemos atravessar com a mochila. Vamos desistir então? Voltar para Lençóis, ir para uma pousada e beber a noite toda pensando no que poderíamos ter feito? Não era uma opção. Eu estava sonhando com a fumaça por baixo. Já tinha visto ela por cima diversas vezes e vê-la por baixo foi uma promessa que me fiz quando criança, a primeira vez que subi. Pegamos então o cordelete de escalada, atravessamos nadando sem a cargueira, amarramos dos dois lados e fomos passando uma por uma se apoiando na corda.

 

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Conseguimos passar. Logo após começou a subida da serra do veneno no sol desgastante do meio dia. Subida sofrida que levou pelo menos duas horas entre lajedos, brejos inundados e samambaias que deixaram cortes para levarmos de lembrança. Finalmente, terminando a serra, adentramos a parte mais central onde estávamos cercados de paredões gigantes que já refletiam o dourado do sol, indicando o início do fim da tarde. Começamos então a descida para o córrego da muriçoca, onde paramos para encher as águas e subirmos para o mirante da toca da onça, lugar que é possível avistar a cachoeira da capivara.

 

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Começou então a descida para a cachoeira do palmital, onde tive um dos maiores sustos da minha vida. Era fim da tarde e estávamos cansados, andando o mais rápido possível para aproveitar ao máximo a luz que nos restava. Era um trecho complicado e eu tinha que ficar muito atento ao GPS para não perder a trilha. De repente, em questão de segundos, ouço um movimento rápido bem na minha frente e um som de chocalho inconfundível. Uma cascável enrolada, avisando e preparada para dar o bote em caso de ameaça, a um palmo de distância da minha bota. Imediatamente, literalmente pela minha vida, dei um pulo para trás e fiquei passando a mão na minha perna. Fui picado? E agora? Estamos a 6 horas de qualquer lugar. Felizmente não fui picado e estou aqui para contar. Desviei o caminho rapidamente e seguimos o rumo. Logo após a adrenalina passar veio na minha mente o mais sincero pensamento: se eu fosse picado eu estaria morto. Sim. Morto. Sensação estranha que não sei descrever.

 

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Chegamos enfim no palmital, onde não seria o nosso acampamento pelo planejamento. A ideia era dormir na cachoeira do Capivari ou até na toca do macaco, mas já era noite e o dia foi longo. Preparei o tradicional (hoje virou tradição) bolonhesa. Um dos momentos mais esperados do dia, comer o macarrão quente com um queijo parmesão ralado acompanhado de uma garrafa de vinho para cada pessoa depois de 20 km de trilha. Nada mal.

 

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A trilha - Dia 2

Começamos o dia tarde às 8 da manhã sem a mínima noção do que nos esperava pelas próximas 14 horas. Fomos até a cachoeira do palmital que foi uma bela surpresa. Lugar entocado, coberto de musgo e de beleza única, diferente de todas as outras cachoeiras. Saímos e fomos então a caminho da cachoeira do Capivari para seguirmos para a tão esperada fumaça por baixo. Hoje era dia dela. Chegamos, enfim, ao vale da cachoeira da fumaça às 12:30. Uma mudança completa de cenários. Saímos de um local de mata atlântica mais fechada (toca do macaco) para uma mata cujos raios solares passavam por entre as folhas criando um visual de filme. Mágico. Mais perto da fumaça o cenário mudou. Pedras maiores surgem e os incansáveis pula pedra são trocados por uma trilha cruzando a mata na lateral esquerda.

 

Por volta das 15h foi o grandioso momento. Chegamos na fumaça por baixo e, não, não era o que eu imagina. Isso porque é impossível de conceber a imensidão daquele paredão de 400m de altura. Tão difícil quanto conceber é expressar em palavras a imponência que, de cima, te dá vertigem e medo, mas de baixo te abraça e acolhe. Só indo lá e vendo para entender.

 

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Magnífico, mas já era 15:30 e tínhamos que subir a fenda para voltar ao capão ainda. Mal sabíamos nós que o dia estava só começando. Começamos a subida da temida fenda nos apoiando em raízes e subindo por lugares tão íngremes que sempre me perguntavam: é por aí mesmo? Eu dizia que era (sem acreditar em mim mesmo). O problema é que sempre era.

Na fenda o GPS não funciona, então o caminho tinha que ser com base em lógica e leitura de trilha. Isso eu tinha experiência e tinha noção de onde estávamos e para onde precisávamos ir. Noção que de certa forma nos confundiu. Era por volta de 16:30 e eu sabia que o capão estava à direita. O problema é que não tinha trilha que ia para a direita. Depois de sair procurando a trilha, correndo e sem mochila, descobri um caminho que dava uma volta na montanha. A partir daí que as coisas começaram a complicar.

O caminho era certo, porém estávamos beirando uma montanha, com pouca luz, e um abismo ao nosso lado esquerdo que, pelo menos algumas vezes, cada um nós tropeçamos. Nessa hora a preocupação começou a bater. A lanterna de Raphael quase não iluminava o caminho. Christian, que só tinha dois pedidos: não andar a noite e evitar altura, estava andando a noite ao lado de um penhasco. Otávio estava com o joelho operado e dolorido. Para completar, a água estava acabando.

Nessa hora começaram os problemas de fato e a moral do grupo começou a se desestabilizar. A preocupação distante do que poderia acontecer foi trocada pela angústia do que já estava acontecendo. Christian e Rapha estavam querendo parar para acamparmos e irmos para o capão no dia seguinte. Ideia prudente. O problema é que não tinha onde acampar. Como não tínhamos onde acampar, a situação tinha que estar clara para cada um. Christian comentou comigo: isso aqui está muito além do meu limite. Tive que ser sincero com ele, também estava muito além do meu limite, mas não tinha o que fazer. Estávamos no meio da montanha, sem água, sem lugar para acampar. Tínhamos que continuar. Era a gente por a gente. Foi a primeira vez na minha vida que tive essa sensação. Não tinha para onde correr. Não tinha como pedir para parar e continuar depois. A gente tinha que continuar ou tinha que continuar.

Christian foi convencido com essa conversa. Agora eu só precisava de Otávio bem do joelho para tudo seguir. Essa foi fácil. Falei que tinha um remédio tarja preta que minha namorada médica (atualmente ex) tinha pego do hospital e me dado para usar nesses casos. Mentira. Foi apenas um Dicloflenaco com 1g de dipirona. Mentira essa que funcionou muito bem e que ele só foi saber 1 ano depois em uma mesa de bar.

Seguimos a trilha então, onde encontramos uma bica de água que a gente encheu as garrafas. Silêncio. Ninguém falava nada. Enchemos nossas águas e seguimos adiante. Já estava frio e quase não tinha mais luz. Chegamos enfim no fim da parte mais difícil, o buraco da fenda. Escalamos um paredão de quase 15 metros com a ajuda de uma corda duvidosa que já estava lá. Com a pressa, acabei não ancorando a corda que trazia comigo.

Depois disso nos encontramos em uma mata fechada, lugar de difícil navegação e completamente sem iluminação natural, acompanhados do som de uma fraca queda d'água cujo eco ressoava em nossos ouvidos. Não sabíamos para onde ir. GPS não funcionava. Era difícil encontrar o rastro da trilha que era praticamente inexistente. Depois de  muita procura Otávio que encontrou uma saída discreta por dentro da mata que anunciava, finalmente, a saída da fenda da fumaça e o entroncamento da trilha da serra do macaco.

A partir daqui a moral do grupo melhorou. Todos estavam convencidos que voltaríamos para o capão naquela noite. Chegamos então em um local que era possível acampar por volta das 20h, exatamente 12h depois de termos começado a trilha. Dividimos uma goiabada que nos deu a energia para conquistar o mundo. Era unânime, chegaríamos no capão em pouco tempo.

Começamos a andar novamente e por descuido me perdi da trilha por alguns metros. Começou, então, a chover forte e a fazer muito frio. Rapidamente Raphael teve a ideia de puxar a lona da barraca de Otávio que estava amarrada fora da mochila para servir de cobertura. Ajudou consideravelmente, mas a chuva era tão forte que mesmo assim a gente estava se molhando. Nessa hora, mais uma vez, silêncio. Todos em baixo da lona, calados e com frio. Interessante que, pelo menos para mim, não me perguntava que merda estava fazendo ali. O "modo sobrevivência" já tinha sido acionado e eu só pensava naquela pizza quente com uma cerveja que tomaria no capão. Felizmente a chuva parou, mas eu estava me tremendo de frio e isso me desestabilizou. Saí andando rapidamente pensando que isso poderia me aquecer e, chão. Caí uma vez e todos ficaram calados preocupados. Sem pensar muito levantei, comecei a andar de novo e mais uma vez, chão. Caí de novo e isso gerou uma preocupação de todos. Paramos então, respiramos e seguimos. 

Finalmente, por volta das 21h chegamos na fumaça por cima. Aqui eu conhecia de cor. Andávamos praticamente correndo. Na parte final ainda tivemos que descer a encosta da trilha da fumaça por cima, cerca de 250m de desnível, desgastados depois de andar por 14h aquele dia. Mas, como eu disse, era continuar ou continuar. Chegamos finalmente lá em baixo às 22:15. Um grito de comemoração veio do fundo do coração de cada um e um abraço sincero foi dado, sem que ninguém pedisse. Vivemos uma vida nessas 48h. O sentimento foi de que entramos em um mundo paralelo onde o tempo passou mais devagar e que tínhamos passado pelo menos 5 dias lá. É incrível a sensação de estar pertencente ao momento e de estar vivo.

Yan Takeda Lemos, 22/04/2023
 

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Ondas enormes, flutuando em meio à espuma revolta do mar. Fechado. Sem poder sair. Simplesmente esperando. Ouvindo ondas que vinham arrebentando de longe sem saber se me alcançariam, ou sendo surpreendido por golpes de mar que à noite surgiam do nada. Situação de aspecto tenebroso, uma verdadeira tragédia!

Pois não foi. É engraçado, mas confesso que sinto saudades daquela semana. Pode parecer incrível, mas poucas vezes na minha vida fui tão feliz

Amyr Klink, Cem dias entre céu e mar

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Subida da fenda:

 

Beirando o paredão:

 

Subindo o buraco da fenda:

Na fumaça por cima, no último trecho:

 

Vídeo da fumaça por baixo:

 

Minha perna após a trilha:

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Editado por Yan Takeda Lemos
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