Membros de Honra DIVANEI Postado Quarta às 11:40 Membros de Honra Postado Quarta às 11:40 TRAVESSIA: VALE DO CUBATÃO DO NORTE( 2022): Serra do Mar Paulista Se há algo de isolado nas serras do Brasil, esse lugar certamente é a Serra do Mar Paulista. Claro que não podemos compará-la com os confins da nossa Amazônia, mas quando nos limitamos a falar sobre lugares de acesso difícil e complicado para a pratica de montanhismo ou qualquer outro esporte ligado ao mundo da aventura, a nossa querida serra não vai ficar devendo a nenhuma outra no pais. Com uma geografia complicada, mesmo estando no Estado mais populoso do Brasil, as escarpas da Serra do Mar, vêm desafiando muita gente, muito por causa da navegação difícil e que só recentemente vem sendo facilitada por causa do surgimento de ótimos mapas topográficos e de satélites, e dos maravilhosos gps e seus aplicativos instalados em celulares, com acesso para todo mundo, além de prático e barato. Tanto que muitos lugares só saíram do anonimato na última década, rios, montanhas e vales isolados que esportivamente falando, jamais tinham visto pés humanos. Anos atrás, melhor dizendo, quase uma década atrás, numa madrugada vazia, pesquisando montanhas selvagens na Serra do Mar, me deparei com um gigante de mais de 1300 metros de altitude, que geograficamente marcava o cume de São Sebastião, bem na divisa com Salesópolis. Além dessa montanha isolada, que já era um marco importante na serra, perto do seu cume descobri a nascente de um grande rio, que ao nascer ali a 1200 metros, ia ganhando corpo e escorrendo pelas escarpas da serra até se juntar ao Rio Cristina, já perto da planície litorânea, indo desaguar lá pelas bandas da Barra do Una. Pois bem, o tempo passou e numa expedição meio conturbada, conseguimos subir o PICO PARDO (1.318 m) e ter a grata surpresa de não encontrarmos qualquer vestígio de que alguém tem conquistado seu cume, antes de nós, pelo menos não como montanhistas, talvez algum caçador nativo correndo atras de alguma anta nos arredores do cume. Mas eu ainda sonhava um dia voltar lá e aproveitando o caminho estabelecido, tentar descer o RIO CUBATÃO DO NORTE desde a sua nascente, aliás, o nome do rio encontramos na carta topográfica do exército. Do grupo que conquistou o Pico Pardo, a grande maioria simplesmente abdicou de tentar explorar o rio pela sua nascente e decidiram subir parte do rio partindo lá do litoral. Claro, fui convidado, mas não me interessei pelo projeto, não que cenicamente eu achasse que não valeria a pena, mas ainda queria fazer o projeto que havíamos estabelecido há muito tempo, então agradeci e declinei. E realmente os meninos foram lá, por baixo, pelo litoral e subiram até quase 600 metros até a grande cachoeira que havíamos localizado no mapa. Entre os que estiveram nessa primeira incursão, estava o ARY, que foi outro a comprar o projeto de fazer desde a nascente. Tentamos montar um grupo, aliciar alguém que topasse se enfiar novamente naquele fim de mundo, partindo do alto da serra, na divisa Salesópolis com São Sebastião, mas todos negaram, acharam que era muito trampo e se fuder uma vez para chegar ao Pico Pardo, já era o bastante, não queriam voltar lá uma segunda vez. Então, diante da escassez de homens, resolvemos tocar o foda-se e como se juntou a nós o Caio, decidimos que tocaríamos o projeto em 3 exploradores mesmo. ( Foto VGN VAGNER, na expedição a cachoeira) Como o Ary é morador de Biritiba, ficou a cargo dele descolar um transporte que nos levasse até o km 20 da Estrada da Petrobrás, de onde partiríamos a pé, cortando caminho pelos oleodutos, já que agora havia uma Portaria de Parque que fechava a passagem e era certo que não nos deixariam passar. Então, nos encontramos na casa do Ary às nove da noite e já rumamos para Salesópolis e assim que nosso veículo ganhou a Estrada da Petrobrás, que liga a cidade ao litoral, já demos de cara com um carro da polícia ambiental escoltando um carro da funerária – Agora lascou-se !!! Deixamos que os 2 veículos se perdesse da gente e como não os vimos mais, pensamos que poderiam ter entrado em alguma estradinha perpendicular à principal, talvez estivessem indo pegar algum corpo em algum sítio localizado ali perto da estrada. Percorremos uns 10 km e a Estrada da Petrobras vira um breu só, um caminho no meio do nada, já que quase todas as habitações ficaram para trás e numa curva do caminho, já perto do km 20, onde começaríamos nossa caminhada, demos de cara com as luzes de veículos que atravancavam o caminho. Lá estavam o jeep da polícia ambiental, o rabecão e outros veículos oficiais e particulares, que não identificamos. Ouvia-se choradeira e murmúrios vindo do meio das luzes, talvez provenientes dos parentes de algum morto. Paramos imediatamente. Nossa, era muito azar o nosso! jamais conseguiríamos passar, já que seríamos interpelados com as mochilas nas costas. Então o nosso motorista desceu e dando um “migué”, fingiu estar perdido e foi colher informações com o cara da funerária. Voltou nos contando que se tratava de um assassinato e que estavam terminando a perícia para recolher o corpo. Ficamos vendidos, sem saber que rumo tomar, não poderíamos ficar parados ali e também não podíamos passar, então, tentando salvar a vaca que já estava no brejo, demos meia volta e nos distanciamos do entrevero uns 500 m, pulamos na escuridão da noite, nos despedimos do motorista e caímos no meio do mato, era preciso traçar um plano. Na beira da estrada, achamos um caminho aberto e entramos nele, andando por cerca de 1 ou 2 minutos, e nos sentamos no meio da mata. Pensamos: Se o rabecão já estava ali, era sinal de que rapidamente o corpo seria removido e aí não haveria mais razão para que a estrada permanecesse fechada, então na nossa cabeça, a única coisa a fazer era esperar, muito porque, ainda não eram nem 10 da noite e tínhamos tempo de sobra. Mas o tempo foi passando e nada. Por sorte, a chuva prevista acabou não vindo e fazia um calor dos infernos e os mosquitos iam nos devorando. Uma hora depois, cansados de esperar, saímos sorrateiramente para ver se não haviam tomado outro rumo, talvez ao invés de subir a estrada, poderiam descer com o corpo para o litoral. Mas quando fizemos a curva, lá estavam eles, parados no mesmo lugar. Voltamos para o mato novamente, só nos restava esperar. Sentados, com sono e sem muitas esperanças, mal conversávamos nessa hora. De repente, ouvimos um tropel no meio do mato. Estava claro que algum animal muito grande estava perseguindo outro menor. Do nada, saindo da escuridão, adentrou no nosso caminho um animal que, desesperado, tentava salvar sua vida , saiu quebrando tudo, tropeçou no Caio e fez com que ele levantasse e se jogasse para fora do raio de ação do animal, foi como uma bola de boliche derrubando 3 pinos, no caso nós. Foi um tremendo susto, mas eu consegui identificar um baita de um coelho, mas o que o perseguia, jamais ficamos sabendo. O tempo passou, chegamos à meia noite e decidimos que não iríamos mais esperar. Só tínhamos uma ação a fazer: montar uma estratégia para vararmos mato para bem longe dali, talvez tentar interceptar o oleoduto e apesar de parecer uma ideia totalmente estúpida, não havia outra carta na manga. Pior ainda, teria que ser feito no escuro absoluto, já que com lanternas, poderíamos até sermos confundidos com os assassinos fugindo da polícia, vai saber o que aconteceu ali. E para piorar, teríamos que escalar um morrote que se elevava do outro lado da estrada de onde estávamos, um barranco infestado de bambus espinhudos. Na calada da noite, no escuro absoluto, nos penduramos no barranco e nos arrastamos para dentro da mata, vencendo a parede de barro metro por metro e vez ou outra, nos abaixávamos para conferir a nossa localização no gps do celular e tentar corrigir nossa rota. Confesso, é uma situação miserável aquela nossa, correndo o perigo de cair em algum buraco ou mesmo ser picado por uma cobra, já que tínhamos que rastejar por baixo da bambuzeira, praticamente com a cara no chão. Vamos cruzando todo tipo de vegetação, atolando em áreas pantanosas, nos agarrando em qualquer direção que vá de encontro com o caminho do oleoduto. Duas horas depois demos de cara com uma valeta quase que intransponível e para descer, usamos uma cordinha que levávamos para uma emergência e exatamente as 2 da manhã, interceptamos o maldito oleoduto, só para descobrir que esse também era uma quiçaça dos infernos. Agora caminhando e abrindo caminho por onde estavam enterrados os canos que trazem petróleo do litoral para o planalto e já cabeceando de sono, vamos avançando por mais uns 40 minutos até nos vermos exatamente onde deveríamos ter entrado, se tivéssemos vindo pela estrada, ou seja, havíamos perdido quase 3 horas varando mato simplesmente para podermos cortar volta do tumulto do homem morto. Agora tínhamos caminho livre pelo oleoduto, que recebe manutenção constante, onde o mato é cortado, mas poderíamos avançar muito mais livres e desimpedidos se pudéssemos andar pela própria Estrada da Petrobras, que corre paralela ao oleoduto, mas infelizmente a passagem pela estrada não é mais permitida e não queríamos correr o risco de sermos pegos por algum guardinha, que fatalmente faria a gente voltar. Nos restou enfrentar aquilo que fez com que NINGUÉM mais quisesse voltar a refazer aquele caminho, como foi na exploração do Pico Pardo. Andar pelo oleoduto é das coisas mais cretinas que se pode fazer na Serra do Mar e eu havia jurado nunca mais passar por lá, mas olha eu ali de novo, mais uma vez naquele sobe e desse interminável, tendo que cruzar por cima de imensos tubos que afloravam nas baixadas, com uma mochila nas costas. A noite foi nos escorregando pelas mãos e já havíamos caminhado mais de 3 horas naquele oleoduto maldito, quando vimos o sol despontar. Cambaleávamos, cansados e com sono, mal conversávamos e pouco depois das seis da manhã, despinguelamos na baixada final até atingirmos o RIO PARDO, uns 20 minutos abaixo da GRANDE CACHOEIRA. Subimos o rio até o poço das borboletas, atravessamos para o outro lado e interceptamos a trilha que nos levou definitivamente aos pés da referida cachoeira e lá caímos desmaiados, passamos a noite inteira caminhando. Apesar de um mês chuvoso, a CACHOEIRA DO PARDO não estava tão cheia como esperávamos, mas continuava linda, despencando numa laje de pelo menos uns 150 metros. O sol veio com força e naquele dia, a previsão de tempo chuvoso acabou não se confirmando. O Rio Pardo nasce umas 5 horas de caminhada acima da cachoeira, bem atrás do Pico Pardo e vai percorrer dezenas de quilômetros até dar vida ao grande Rio Juqueriquerê, rio que já havíamos explorado quase uma década atrás, que vai desaguar bem na divisa de Caraguatatuba com São Sebastião. Nós estávamos um bagaço e assim que tomamos um café, resolvemos dormir um pouco sobre as lajes expostas da cachoeira e só lá pelas nove ou dez da manhã é que nos animamos a seguir com a expedição, mas antes fomos despertar com um bom banho, onde nos jogávamos na pedra lisa, deixando que a força da gravidade fizesse de nós, passageiros do rio. As 10 da manhã, partimos e como já conhecíamos a melhor maneira de subir ao topo da cachoeira, já que foi isso que fizemos na primeira expedição, nos apegamos ao seu lado esquerdo e fomos subindo na aderência até onde deu e quando a parede inclinou, entramos no mato e reencontramos um caminho paralelo ao rio que nos levou direto para o topo. Da outra vez ficamos encantados com as marmitas que lá encontramos, mas dessa vez elas estavam deslumbrantes, verdadeiras piscinas naturais em forma de jacuzzi , com a agua mais transparente ainda. A caminhada segue por um rio deslumbrante, vez por outra, pontilhado por prainhas de areia. É um caminhar gostoso e desimpedido, e não nos furtamos em nos jogarmos em pocinhos um pouco mais profundos e depois de uns 500 metros, o Rio Pardo simplesmente curva-se para o norte e se fecha com uma grande rocha, formando uma espécie de gruta. Claro, essa direção que o rio tomará agora, não serve para a gente, pois nossa direção e a direção do pico é para sudoeste. Por coincidência, poucos metros antes dessa espécie de gruta, um afluente a esquerda vai subir bem na direção que desejamos e é por ele que seguimos agora. Nos primeiros metros é preciso subir um pequeno desnível, mas logo em seguida o riacho simplesmente quase que se nivela e começa a ganhar altitude suavemente e vamos subir por grandes lajes, onde o sol do meio dia batendo no leito raso, acaba por transformar tudo numa cor dourada, um espetáculo bonito de se ver. Não demora muito para sermos barrados por uma cachoeira e por causa da sua formação, vamos chama-la de CACHOEIRA DAS DUAS FENDAS para marcar território. Escalamos a parede do lado direito, nos segurando onde desse até atingirmos seu alto e ganharmos uma outra bonita laje. Tendo andado pouco mais de 700 metros nesse segundo afluente, vamos abandoná-lo em favor de outro, também pela esquerda que vai se dirigir agora para o leste. O pulo do gato desse roteiro é que não existem praticamente outros afluentes e ganhando mais esse, agora vamos subir em definitivo até logo acima tropeçarmos numa cachoeira mais alta, impossível de escalar. Dá primeira vez que conquistamos o pico, abandonamos o rio bem nessa cachoeira e empreendemos uma linha reta até ele, varando mato num mar de bromélias malditas, mas dessa vez a gente iria tomar um rumo diferente, iríamos subir o rio até onde ele praticamente nasce e de lá sairíamos para a direita e conquistaríamos novamente o pico. Parecia ser um plano quase perfeito, mas o tempo se encarregaria de nos mostrar o contrário. Portanto, ao nos depararmos novamente com essa cachoeira, varamos mato pela sua direita, escalaminhando o barranco e nos segurando em tudo que era vegetação até atingirmos a sua parte alta e ganharmos novamente o seu leito plano. O Riozinho se afunila bastante e começa a correr por debaixo de grandes matacões, por vezes some e só o reencontramos mais acima. As passagens vão se afinando e vamos transpondo pequenas gargantinhas e nos enroscando nas arvores que vão tombando sobre o leito do rio, dificultando nossa passagem. A nossa estratégia de conquistar o pico subindo até a nascente do rio foi se mostrando uma grande merda. E só tomamos essa decisão porque a gente havia voltado da primeira justamente pelo rio, mas descer é uma coisa, subir é outra, então teve uma hora que não suportando mais ficar nos esgueirando por baixo de troncos podres e vegetação espinhenta, resolvemos mirar nossa bussola direto para a montanha, abandonando o rio em definitivo. Mas o que nos pareceu ser uma boa ideia, acabou por se tornar outra grande furada porque a saída da garganta do rio acabou por nos levar para uma borda alta onde ficou quase impossível passarmos pelo mar de bromélia gigante que nos fechou o caminho. Com uma cargueira nas costas, a gente lutou bravamente para sustentar o peso e tentar se elevar para fora do buraco, mas a cada tentativa, éramos jogados de volta e tínhamos que recomeçar. Tentávamos novamente, mas os espinhos nos furavam o rosto, a cabeça e lá íamos novamente parar barranco abaixo. Cada qual lutou como pode, do jeito que pode e quando emergimos para fora, éramos um traste humano, cansados pela jornada que havia começado as 10 horas da noite anterior. Reencontro o Caio, mas não vejo mais o Ary, que simplesmente sumiu das nossas vistas e nos deixou sem saber o que tinha acontecido com ele. Ganhando agora uma vegetação rala de campos de altitude, vamos seguindo e vou procurando reconhecer qual daqueles topos de montanha poderia ser o cume, sem perceber que ele estaria escondido atrás de um cume falso. E quando lá chegamos, é que avistamos o Ary que havia se adiantado e já se preparava para ganhar o ponto mais alto. Subimos o ultimo cone rochoso dessas serras e nos pomos definitivamente no CUME DO PICO PARDO (1318 M) ou (1323) nessa segunda medição, na divisa São Sebastião com Salesópolis. O cume é marcado por uma elevação rochosa, pontilhado por pequenos arbustos e em um deles, reencontramos a capsula onde havíamos instalado o LIVRO DE CUME quase 2 anos atrás. Ao abrirmos, não nos surpreendemos ao encontrar apenas os mesmos nomes de nove aventureiros que estavam no dia da conquista, mais uma prova definitiva que montanhista algum anda por essas paragens, o que vem só corroborar com a minha tese de que a Serra do Mar Paulista é um dos lugares mais isolados e inacessível, se comparado a quase maioria das serras do Brasil. E a paisagem lá de cima não fica devendo muito a outras montanhas da Serra do Mar, mesmo estando um pouco mais distante do oceano, é possível se deslumbrar com as paisagens a beira mar, como a grande Ilhabela, Montão de Trigo e outras tantas ilhas. Quase ao sul, a espetacular Pedra da Boracéia é nos mostrada em um ângulo surpreendente, 2 bicos rachados, lindo de ver. Mas o tempo passou, a tarde chegou e precisávamos nos voltar para o grande objetivo daquela expedição, que era localizar a nascente do Rio Cubatão do Norte, mas antes a gente tinha que rever a gruta que encontramos da outra vez, um abrigo perfeito ao lado do cume, onde uma fonte de água serviria para uma emergência. E ao adentrarmos na gruta, já localizei uma loninha que havíamos deixado lá, justamente para quando voltássemos, além de algumas latas de atum que deixamos também . Jogamos as mochilas às costas e partimos. Primeiro vamos partir para leste, que é direção onde está o vale que nasce o rio que buscamos, mas assim que descemos a rampa de vegetação rala, empreendemos uma diagonal para o sul, descendo e subindo pequenos vales secos, varando uns arbustos de baixa altitude, forçando caminho em meio a uma vegetação fechada, sempre tentando perder altitude. O Ary vai à frente, navegando com o gps do celular, enquanto eu e o Caio, vamos orientando ele, tentando nos manter na direção que poderá nos levar direto para as nascentes. Não é um caminho fácil e a gente já está capengando, cansados, doidos para acampar e também vai nos preocupando o fato de que a chuva está se avizinhando. A descida final é um paredão forrado por vegetação cretina e logo quando nos deparamos com um pequeno afluente, nos apegamos a ele até chegarmos no fundo do vale e finalmente, cerca de pouco mais de uma hora e meia após deixarmos o cume do Pico Pardo, o RIO CUBATÃO DO NORTE se apresenta para a gente e aquilo que sempre foi um ponto perdido no mapa, se materializa instantaneamente. E é realmente como imaginávamos, um córrego com 3 dedos de água, apenas um lamina d’água cristalina, uma nascente intocada ainda. Ganhando o rio em definitivo, vamos descendo ainda por um planalto reto, perdendo altitude muito lentamente. É uma floresta bonita, de arvores altas e já vamos ficando de olho em algum lugar mais favorável para acampar, sempre prestando atenção no vento que começa a soprar com mais intensidade, denunciando que a chuva agora vem com força. Uns 15 minutos nos leva para uma curva do rio, onde uma área plana nos pareceu favorável, mas acabamos passando batido, só que menos de 10 minutos à frente, o rio já resolve se enfiar numa garganta e aí tivemos que parar, analisar nossa situação e de comum acordo, retornamos para a área anterior e ali jogamos nossas mochilas ao chão e demos por encerrado aquele dia intenso de caminhada, que havia começado justamente nas primeiras horas, ou seja, estávamos no ar desde a meia noite, éramos agora seres que vagavam feitos zumbis, arremedo de homens havidos por uma boa noite de sono. A área do acampamento era realmente perfeita, mas tivemos que nos apressar porque a chuva que ameaçava cair, desabou violentamente e um temporal varreu toda a floresta, por sorte estávamos bem acima do leito do rio, que mesmo não passando ali de pouco mais de 20 cm, acabou por subir um pouco. Com as redes montadas e bem abrigados, fomos cuidar da janta, que acaba por se tornar a única refeição quente do dia, é a hora de se deleitar e comer até não aguentar mais. E sinceramente, poucas coisas são tão prazerosas quanto essa, poder tirar as botas, a roupa molhada, comer uma comida quentinha e antes mesmo do sol se pôr, nos jogarmos para dentro do saco de dormir e praticamente apagar por 12 horas seguidos. O dia amanhece sem chuvas, mas uma neblina espessa toma conta da floresta, o que torna o lugar um cenário incrível e sombrio ao mesmo tempo. Estamos animados e agora descansados, fazemos planos ousados de atingirmos a cota 600 ainda hoje, mas ainda estou pensativo, dentro de mim um sentimento estranho e ao mesmo tempo uma sensação de curiosidade pelo trecho que teremos que cruzar, um mistério que teríamos que desvendar, como nunca antes na história das expedições selvagens na Serra do Mar Paulista. Logo pela manhã, é preciso enfiar as botas na água fria, mas não leva nem 15 minutos e já estamos imersos com o corpo todo na água gelada, nos esgueirando por baixo de arvores caídas no leito do rio e já nos enfiando em pequenas gargantinhas profundas, tendo que desescalar pedras lisas. E é mesmo surpreendente como mesmo nessa altitude, o rio já começa se desembestar para baixo, sendo que na maioria dos outros rios só abaixo dos 900 metros é que acaba o planalto e os rios se jogam nas suas bordas. O Rio começa a perder desnível e vai se enfiando em pequenas gargantas e aí vamos desescalando pequenas quedas d’água, tendo que descer no meio de algumas gargantas potencialmente perigosas até nos depararmos com grandes lajes que acaba por facilitar no nosso avanço e quando é necessário, apenas deixamos que a inercia nos ajude e vamos soltando o corpo nessas rampas, apenas protegendo nossos tornozelos ao explodirmos nos poços mais abaixo. Lá pela cota 920 de altimetria o rio começa a correr por baixo de imensos blocos de pedra e o nosso avanço começa a se complicar de vez, aí temos que nos valer da corda para podermos perder altitude. O dia vai escorregando pelos dedos, a gente vai se enroscando em inúmeras descidas, desescaladas de cima de matacões extremamente gigantescos até que surpreendentemente, NÃO HÁ MAIS RIO PARA DESCER, o enigma está esclarecido. Quando comecei os estudos topográficos associados a imagens de satélites, tomei um susto. Pouco acima da cota 800 de altimetria, simplesmente não conseguia mais enxergar o rio e apesar de prever que ele estaria confinado entre duas paredes colossais e com possibilidade de apresentar grandes cachoeiras, foi totalmente impossível ver qual o rumo que ele tomava, tanto que nem consegui marcá-lo no traklog prévio, tendo que usar os meus conhecimentos da carta para poder riscar o caminho. Claro que várias vezes já havíamos nos deparados com pedaços de rios que simplesmente começam a correr no subterrâneo, mas isso só acontecia em partes planas e era por pequenos pedaços. Mas agora o rio simplesmente não mais existia e o que sobrou foi tão somente um amontoado de pedras, onde não era possível nem ouvir nenhum barulho de água, na verdade, não tínhamos mais água nem para beber caso precisássemos. Nos mantivemos firmes, acreditando que uma hora ele ressurgiria e torcendo para que não houvesse bifurcações para nos confundir. E a gente andou, e a gente lutou com nossa ansiedade, tentando manter o nosso moral em alta, tentando acreditar que estávamos onde deveríamos estar e que alguma hora veríamos água novamente e essa angustia durou mais de 2 horas até que nos deparamos com uma fenda e vimos a água novamente, até que essa fenda se fechou outra vez e o caminho nos empurrou para a direita, tendo que varar uma mato qualhado de pedras arredondadas e no meio da floresta, no coração da Selva Paulista, novamente avistamos a água presa em forma de uma grande poço e para nossa surpresa, demos de cara com a boca de uma gruta. Já passava das três da tarde. Havia sido um dia intenso e cansativo e toda aquela angustia que vínhamos sofrendo, simplesmente desmoronou e os olhares tensos das últimas horas, despareceram e os meninos estavam irradiantes diante daquele espetáculo da natureza. A água que até então havia se escondido da gente, ressurgiu com força dentro daquela gruta, despencando de uma cachoeira onde andorinhas faziam sua morada. Na frente da gruta, um lago se formou e o terreno amansou de vez e essa foi a deixa para a gente se jogar na água e deixar um pouco o tempo passar, dar oportunidade para que nossas lembranças nos levasse ao passado, nos remetesse aos contos de aventuras lidos e assistidos e concidentemente era o ano em que víamos novamente a volta de um clássico do cinema retornar as telas e não por acaso, resolvemos batizar aquela cavidade perdida no centro selvagem da Serra do Mar Paulista de GRUTA DO SR. JONES , uma justa homenagem ao maior aventureiro cinematográfico de todos os tempos. Retomamos a caminhada e a cada metro percorrido, o terreno ia ficando mais plano e meia hora depois, o rio de planalto se transformou em rio de planície. As pedras simplesmente desapareceram e surgiram fundos de areia. Essa característica eu jamais havia presenciado nesses anos de exploração selvagem na Serra do Mar, pelo menos não estando a cerca de 800 metros de altitude. Era como se estivéssemos caminhando no litoral, com margens planas e largas, pontilhadas por grandes árvores e como a tarde já pedia passagem, antes das 17 horas, descolamos uma área sensacional e resolvemos acampar, hora de jogar as mochilas ao chão, montar nossas redes e preparar uma janta quentinha e aproveitar aquele paraíso. O momento de acampar é simplesmente mágico. É quando você retira sua roupa molhada, coloca uma seca e limpinha, bota um chinelo e consegue relaxar, ouvindo o murmúrio do rio, o cantar dos passarinhos e o barulho da bicharada na floresta. É nessa hora que os seus sentidos ficam aguçados e você sente o poder da floresta te envolvendo e ali sentimos o isolamento da vida, que por livre escolha, fomos buscar. É quando nos sentimos mais protegidos do que em qualquer outro lugar. É na selva que nos encontramos como raça humana, é uma volta forçada ao passado, reencontrando nossas origens, nosso instinto de liberdade a muito tempo perdida na selvageria das cidades grandes. Ali não somos caça e nem caçador, somos parte do meio, em harmonia com o todo, não somos mais e nem menos, somos só o necessário. A área de acampamento era linda, um espaço plano e com muitas árvores para montarmos nossas redes. Imediatamente fomos cuidar da janta e mais uma vez o meu queixo se joga no chão de ver o Ary, o maior morto de fome que eu já conheci na vida, simplesmente abocanhar uma panela de comida que daria para umas 4 pessoas comer até se satisfazer. Depois da janta, um café para satisfazer nosso ego e vários papos e conversas fiadas, até que sem percebermos, aquele mundo já não nos pertencia mais e fomos morar no mundo da imaginação e dos sonhos. Antes das sete da manhã já estamos de pé, desmontando tudo preguiçosamente, sem nos importarmos com o tempo e pouco depois das nove, partimos. Já no início eu tento me livrar da água gelada, tentando de qualquer maneira achar uma passagem entre as pedras que me leve para o outro lado da margem, mas dou uma bobeira e já vou parar com a fuça dentro de um poço fundo. O dia amanheceu muito embaçado, não parecia que iria chover, mas a neblina nos avisava que não daria trégua e em meio a cerração densa, vamos avançando, perdendo altitude como dá, apressando o passo porque hoje é preciso terminar a travessia. Quando a parte plano do rio termina, mesmo estando numa altitude considerável, vão aparecendo lajes pelo caminho, precedidas de pequenas cachoeirinhas e poços interessantes. A neblina continua, mas a temperatura ainda é extremamente agradável, até que lá pelas 11 horas da manhã, tropeçamos numa grande laje que precedia uma grande queda, uma rampa gigante que tratamos de descer com todo cuidado pela lateral esquerda, vendo que uma cachoeira despencava ao nosso lado. A chegada aos pés dessa cachoeira foi com grande entusiasmo, porque ela marcava o encontro do grupo que partiu das nascentes do Rio Cubatão do Norte, com o grupo que fez a exploração vindos do litoral, era o fechamento glorioso, que uniu determinação e persistência de todos os envolvidos, para que mais um rio fosse tirado do anonimato e entrasse para a galeria das grandes expedições selvagens da serra do Mar Paulista. Estamos a exatos 694 metros de altitude, quase no coração da serra, ainda muito alto para quem pretende chegar ainda hoje no litoral e o dia já indo pela metade. Junto ao lado direito da cachoeira, pendurado numa árvore, os meninos da primeira expedição via litoral, deixaram uma capsula com o livro, na verdade, um caderno enorme para uma expedição selvagem, haja visto que durante anos é certeza que não constará mais que meia dúzia de nomes. Deixamos nosso registro, claro e para homenagear o esforço dessa outra parte do nosso grupo que esteve ali naquela cachoeira antes de nós, batizamos a linda queda d’água com o nome adotado por eles como CACHOEIRA DOS SONHOS. ( Foto VGN VAGNER) Aproveitamos a parada nessa cachoeira para fazer um almoço rápido, na verdade somente um lanche mais elaborado e perto do meio dia partimos em definitivo, era hora de acelerar o passo, tínhamos uma montanha para descer ainda. O Rio dá uma afunilada e meia hora depois, somos obrigados a nos enfiarmos num corredor de águas um pouco mais rápidas e que me faz tomar ainda mais cuidado para não ser arrastado. Logo a frente nos apresentados a mais uma cachoeira, que despenca num poço profundo, onde o Ary insiste em dar uma parada para saltar de uma pedra gigante do lado esquerdo. E é mesmo bonito ver os meninos despencar feito um míssil de uma altura considerável, ainda mais sob um cenário sombrio, coberto por neblina espessa. Apertamos o passo e vamos nos livrando dos obstáculos como podemos, hora pela esquerda, hora pela direita, hora escalando, hora varando mato no peito até que somos surpreendidos por mais uma cachoeira espetacular, uma queda bem larga e com um bom poço para banho, mas mesmo assim, resolvemos apenas bater uma foto e passar batido, mesmo porque o dia já se aproxima das 2 da tarde e já começamos a sentir que aumentou a possibilidade daquela neblina se transformar numa chuva e ainda estamos na cota 630. Vamos perdendo altitude rapidamente. Já começo a ter dúvidas de que conseguiremos sair do rio ainda hoje e para piorar, a temperatura começa a despencar e eu já começo a querer escapar da água mais gelada até que interceptamos outra CACHOIERA na cota 535 e novamente passamos batidos, caímos no mato e tentamos nos manter em nível, mas um pouco afastado do rio, na ânsia de cortar caminho. A velocidade vai aumentando, mas o terreno começa a ficar escarpado e em alguns barrancos passamos beirando perigosamente. À frente vamos eu e o Ary, enquanto o Caio, que já me pareceu bem cansado, vai meio que se arrastando atrás, até que escutamos quando ele dá um grito. Pensamos que ele apenas estava pedindo para que diminuíssemos o ritmo, mas logo notamos que a coisa era mais séria. O Caio ao tentar se equilibrar para não precipitar barranco a baixo, se apoio num bambuzinho parecido com uma navalha e na ânsia de se salvar, viu que a planta foi quase que dilacerando seu dedo. O estrago foi grande, era um ferimento digno de respeito e imediatamente já retiramos os estojos de primeiros socorros da cargueira e comecei o procedimento de tentar estancar o sangue. Lavamos, fizemos assepsia, uma sutura com pontos falsos com esparadrapo e em seguida enfaixamos e avisamos para ele que se a dor aumentasse, iríamos ministrar uns analgésicos até podermos chegar num lugar habitado para um procedimento mais profissional. Quase as 16 horas em ponto, interceptamos o RIO CRISTINA, na mesma hora em que um temporal se abateu sobre nós. Estávamos na cota 300, ainda tínhamos muito chão pela frente, mas ali no encontro daqueles 2 rios, tivemos a certeza de que nossa expedição acabara de ser um sucesso, o Cubatão do Norte havia sido conquistado em definitivo, aquele projeto sonhado quase uma década atrás, passou do papel e entrou para a historia. O Rio Cristina é um lindo rio, mais largo e mais volumoso que o próprio Rio Cubatão do Norte. A intenção nossa, era subir um pouco e visitar umas cachoeiras, mas diante do temporal de final de tarde, não tínhamos outra coisa a fazer, senão começar a descê-lo imediatamente. Pela esquerda o terreno já nos dá condições de navegação um pouco mais rápida, mesmo porque, já há vestígios de picadas de moradores que se animam por chegar até ali. Descemos rapidamente até que de supetão, interceptamos a própria CACHOEIRA PRINCIPAL do Rio Cristina, a turística, onde o condomínio mais abaixo sobe por trilha para visitar, mas antes de nos pormos de frente dela, o Ary resolveu saltar de cima de um barranco lateral e se deliciar com suas águas, um tanto geladas para o horário do dia. Estamos mais ou menos na cota 200 e agora é preciso cruzar o rio para o seu lado direito (de quem desce). Por causa das chuvas, que agora arrefeceram bastante, o rio se encontrava cheio e, dando uma bobeira na hora de atravessar, quase fui arrastado pela correnteza, mas consegui me segurar numa pedra da margem e aí ganhamos a TRILHA LARGA e desimpedida, em definitivo. A nossa vida de andarilho aquático acabara de ficar para trás. Por essa larga trilha, quase uma estradinha, vamos andar por cerca de 2,5 k até que ela vira para a direita e se afasta do Rio Cristina de vez e em mais 500 ou 600 metros, interceptamos um final de estrada e nos reencontramos com a civilização depois de mais de 3 dias de caminhada. A tarde já se foi e a noite já se avizinha. Nós já estamos só o trapo humano, mas ainda temos quase 4 km de pernadas até a saída do condomínio, que fecha a passagem, mas como estamos saindo, só nos resta esperar que nos enxotem para fora, sem nos criarem quaisquer outros problemas. Passamos encima da ponte sobre o Rio do Pouso Alto e vamos nos arrastando nesse estirão final, até que um funcionário da guarita nos oferece uma salvadora carona e nos deixa na portaria do condomínio, onde somos tratados muito bem e todos querem saber sobre nossa empreitada, sobre quem somos e que grandes aventuras nos levaram até ali. Aproveitamos a gentileza dos guardas da guarita do condomínio, tomamos banho, trocamos de roupa e conseguimos chamar um Uber que nos levou até o ponto de ônibus mais próximo e de lá conseguimos um coletivo que nos deixou na Rio – Santos e mais um ônibus nos desovou na Riviera de São Lourenço, onde aproveitamos para jantar e conseguimos um outro Uber que nos levou até a casa do Ary em Biritiba-Mirim, onde tudo havia começado e agora acabara de terminar. E assim, uma década depois, aquilo que era só um projeto idealizado por um explorador sonhador, pensado numa madrugada vazia, finalmente virou realidade, claro, contando com a ajuda de outros tão sonhadores quanto eu. Gente que comprou o projeto ou parte dele e que ajudou a desvendar esse quebra cabeça. O RIO CUBATÃO DO NORTE foi esmiuçado, por baixo e principalmente, partindo de sua nascente, mas continua e continuará por muitas décadas tão selvagem como sempre foi, porque ali é terreno hostil, um rio misterioso que brinca de se esconder nas profundezas da terra, mas é só mais um, de tantos mistérios dessa fantástica Serra do Mar Paulista. DIVANEI GOES DE PAULA - 2022 1 Citar
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