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Uma longa cicatrização - Sri Lanka, janeiro de 2023


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O trem que me leva para Jaffna entra lentamente no perímetro urbano desta cidade escondida em uma península no extremo norte do Sri Lanka. A locomotiva parece não querer perturbar os 200 mil habitantes que dormem às quatro horas da manhã, seja por sua velocidade reduzida para evitar um atrito maior com os trilhos ou o não uso da buzina infernal para alertar sobre a sua passagem. Do lado de dentro, esperamos preguiçosamente para desembarcar depois de um trajeto interminável — e por vezes cheio de solavancos — de nove horas a partir de Colombo, a capital do Sri Lanka, localizada na costa sudoeste deste país insular no sul da Ásia.

Jaffna é, de fato, um lugar que precisa de descanso, precisa não ser perturbado. Foi o principal cenário de uma das mais terríveis e menos noticiadas guerras civis que o mundo já viu. De 1983 a 2009, cerca de 100 mil srilankeses, sobretudo nas regiões norte e leste da ilha, foram mortos em um conflito armado originado por diferenças étnicas entre a maioria cingalesa e a minoria tâmil — estes, justamente os principais habitantes do norte e do leste. A luta era entre o Exército do Sri Lanka e o grupo Liberation Tigers of Tamil Eelma (LTTE, ou apenas Tamil Tigers).

A principal cidade do norte do Sri Lanka tem uma forte influência dos indianos de origem tâmil. Na verdade, todo o país tem uma marca dos vizinhos em todos os hábitos locais, mas Jaffna se destaca. Os tâmils, especificamente, vêm do Centro-Sul da Índia, e se estabeleceram no norte e no leste da ilha há séculos, antes mesmo da chegada dos invasores europeus — muito mais conveniente, afinal apenas 40 quilômetros de Oceano Índico separam as nações. Hoje não há ligação aquática entre os países por questões de segurança militar. O biotipo em Jaffna é muito semelhante aos indianos que estamos habituados a ver na TV, enquanto nas demais partes do país esta marca é consideravelmente reduzida.

Em meio a olhares curiosos na rua — eu era praticamente o único viajante em Jaffna — e inúmeros pedidos para tirar uma foto comigo, o elemento exótico da região por acidente, passei quatro dias por lá. Até o início da década passada, o acesso de turistas à península era estritamente proibido, justamente por conta dos abalos secundários da guerra, encerrada em 2009. A região ainda é desconhecida de muitos visitantes estrangeiros, o que torna a visita a Jaffna ainda mais especial, porque se trata de uma experiência muito local, ao lado de pessoas que mal conseguem dizer “Olá” em inglês. Mas para além do temor infundado gerado pela guerra até os dias de hoje no meio turístico, a região ainda recebe pouca gente porque os profissionais do setor em Colombo informam aos estrangeiros que Jaffna é muito longe, mas escondem o fato de que eles próprios não falam o tâmil, e os tâmils não falam o cingalês, logo a comunicação fica inviável, e o serviço turístico pode ficar comprometido. E, assim, os mais desavisados são incentivados a não visitar Jaffna e aceitam passivamente desviar de lá. Mas a minha hipótese inclui o fato de que o extremo norte do Sri Lanka ainda sofre algum preconceito por parte da maioria cingalesa, que se traduz em uma espécie de boicote velado.

Tive a sorte e o privilégio de conversar brevemente com algumas poucas pessoas, que me apresentaram histórias sobre o período da guerra e inevitavelmente me causaram algum choque. Até então, nas minhas viagens, eu nunca havia pisado em um terrítorio que tivesse passado por um conflito armado tão recente, e garanto que é tão impactante e envolvente quanto conhecer pessoalmente os locais mais paradisíacos deste planeta. Em todos os relatos, o assunto da guerra nunca foi iniciado por mim, mas proativamente mencionado pelos próprios interlocutores em meio a outros assuntos, como política e turismo.

 

“Mamãe, onde está a nossa casa?”

Tony, o dono da pousada onde fiquei em Jaffna, foi o primeiro srilankês musculoso que vi na viagem. Com tatuagens nos dois braços, ligeiramente alheio a religiões e com uma breve experiência internacional, tem um perfil completamente diferente do cidadão médio de Jaffna, visto como mais conservador e tradicional, e que guarda a sua fé no hinduísmo, ao contrário da maioria budista em outras partes da ilha. Suspeito que o nome verdadeiro dele não seja Tony (simplesmente porque não faz o menor sentido). Para ser um Ocidental só faltou mesmo ter nascido no Ocidente.

Tony veio ao mundo em 1987, portanto não viu a guerra civil começar (quatro anos antes). A família inteira, inclusive ele, quando já tinha consciência do que acontecia no país, apoiou os Tamil Tigers no início do conflito. O apoio não era apenas verbal ou moral: periodicamente e aleatoriamente, representantes do LTTE/Tamil Tigers visitavam famílias do norte e do leste pedindo por algum tipo de ajuda. Em uma das investidas do grupo, a avó de Tony cedeu um colar de ouro em troca de 5.000 rúpias cingalesas (um excelente negócio à época, e que hoje renderia cerca de 200.000 rúpias cingalesas, ou quase 3.000 reais).

Quando as tropas do Exército do Sri Lanka conseguiram entrar na cidade de Jaffna, o que poderia escalar ainda mais a violência na região, Tony e sua família foram morar em uma cidade menor na costa leste da península. Não muito longe de Jaffna, assistiram de lá a alguns capítulos do conflito com o LTTE. A oportunidade de retornar para Jaffna não demorou a aparecer. Mas quando Tony e a família pisaram na cidade, encontraram apenas escombros e um cenário de completa destruição. E isso incluía a casa da família, de onde se salvou apenas uma palmeira do quintal, que permaneceu intacta.

— Mamãe, onde está a nossa casa? — perguntou um Tony ainda criança, a surpresa brotando de uma das faces sempre mais crueis de uma guerra: o sofrimento infantil muitas vezes silencioso ou verbalizado ingenuamente.

Apesar de toda a tragédia, Tony nunca parou de estudar, ao contrário de milhares de outras crianças. Em muitos casos, poderiam ser recrutadas pelos Tamil Tigers a partir de um acordo com as famílias. Também não foi o caso de Tony, mas porque seus pais pagaram os insurgentes para que ele não fosse levado para engrossar as fileiras contra o Exército do Sri Lanka.

Evidentemente, no entanto, até a escola passava longe de ser um local seguro. Em um dos episódios mais marcantes, Tony lembra que um militante dos Tamil Tigers se infiltrou em meio ao grupo de crianças onde ele estava, vestindo o mesmo tipo de uniforme que elas (calça e camisa social completamente brancas, no caso dos meninos). Aguardou o melhor momento e lançou um ataque contra oficiais do Exército do Sri Lanka que faziam uma patrulha perto da escola. Em outro capítulo desta tragédia, ele e outros colegas estavam em sala de aula quando as atividades foram interrompidas por uma intensa troca de tiros a poucos metros dali.

Tudo isso por certo são memórias muito vivas na mente de Tony. Isso porque a escola que ele frequentava fica na mesma rua onde hoje ele comanda a agradável pousada que recebe esparsos turistas — durante a minha estadia, me deparei com um canadense e um romeno, e talvez um indiano que passou quase o tempo todo meditando, e assim nunca tive a oportunidade de perguntar de onde ele é. Na frente da pousada há um parque infantil, que no período da guerra foi um importante espaço militar do Exército do Sri Lanka na tentativa de controlar a península e reprimir os Tamil Tigers.

A certa altura da conversa, Tony expressa uma revolta comedida em relação aos cingaleses que comandam o país. Diz que, apesar da conciliação entre hinduístas e budistas, entre tâmils e cingaleses, vê com preocupação o avanço do budismo na península de Jaffna. Na visão dele, os novos templos construídos na região (e não são poucos) desde o fim da guerra podem começar a ser vistos como uma provocação e uma tentativa de apagar o hinduísmo de uma área fortemente hinduísta, e um passo fora das linhas imaginárias poderia ser o estopim para o retorno dos desentendimentos. Tendo a concordar com Tony: por que diabos o governo do Sri Lanka tem proativamente intensificado o budismo em Jaffna sendo que a maioria hinduísta vai orar nos espaços… hinduístas?

Mas Tony certamente não pensa apenas no seu povo e nas consequências humanitárias de um possível retorno dos conflitos. Pensa também no seu próprio negócio. Abriu a pousada em 2018, e desde então não teve paz. Em 2019, uma série de ataques terroristas em Colombo (que o governo atribuiu a um grupo estrangeiro mas que todo mundo sabe que o presidente queria mesmo era pronunciar “Tamil Tigers”) matou 250 pessoas, a maioria turistas, no feriado da Páscoa (abril). Ministérios de Relações Exteriores ao redor do mundo levantaram alertas contra viagens de lazer para o Sri Lanka, e os visitantes desapareceram. Um ano depois, Covid-19 (março/abril). Os visitantes desapareceram. Depois de um 2021 de recuperação lenta, o Sri Lanka mergulhou em uma crise econômica, política e social em abril de 2022. Ministérios de Relações Exteriores ao redor do mundo levantaram alertas contra viagens de lazer para o Sri Lanka, e os visitantes desapareceram.

Tony agora quer estabilidade para continuar tocando seu negócio e receber no seu espaço uma das maiores fontes de receita para o Sri Lanka, justamente os turistas estrangeiros. E, rindo de nervoso, conta que torce para que em abril de 2023 nenhuma tragédia se abata sobre o Sri Lanka.

 

Desgraças em série

Siva é um dos centenas de motoristas de tuktuk em Jaffna. Eu o conheci por acaso, quando estava saindo da pousada do Tony para ir à estação central pegar um ônibus para uma parte mais afastada da cidade. No Sri Lanka, o mais breve aceno de mão é o suficiente para que os condutores do simpático triciclo parem e ofereçam o serviço — e como a estação era longe, assim o fiz. Siva foi o primeiro a parar.

Neste país, qualquer viagem de tuktuk pode ser a grande oportunidade para os motoristas fazerem algum dinheiro a mais, sobretudo quando quem está a bordo é um estrangeiro. Com Siva não foi diferente: depois das habituais perguntas “Where are you from?” e “Do you like Sri Lanka?”, ele quis saber um pouco mais do meu roteiro. Não demorou nada para eu topar a proposta de ele me levar pela região costeira da península de Jaffna no dia seguinte, afinal o custo era aceitável, o transporte seria mais fácil, e sem dúvida traria um ganho financeiro extra muito importante para Siva em um país completamente desnorteado economicamente depois de tanta desgraça empilhada.

***

Siva estava me esperando pontualmente (como absolutamente todos os motoristas profissionais do Sri Lanka) às 9h em frente à pousada. O atrasado era eu. O simpático tuktuk verde de Siva seria o transporte do dia, decorado timidamente com símbolos budistas, hinduístas e cristãos, e um ventilador pequeno pendurado no teto que é absolutamente inútil, dado que o tuktuk não tem portas ou janelas, e o ar circula livremente.

Demorou poucos minutos para que a guerra virasse o tema central da nossa conversa. Siva tinha 10 anos de idade quando o conflito estourou no Sri Lanka. Não tão afortunado como Tony (se é que se pode falar em fortuna ou sorte em um cenário como esse), conseguiu estudar somente até o décimo ano, mais ou menos quando os Tamil Tigers tentaram recrutá-lo para lutar contra o Exército do Sri Lanka. A família foi resistente, e depois de negociar com o grupo, conseguiu que Siva não fosse para o campo de batalha.

Mais do que isso: Siva fez as malas e deixou Jaffna rumo a Nuwara Elyia, cidade na região central do Sri Lanka, em uma das maiores altitudes do país, de cerca de 2.000 metros acima do nível do mar. Ao lado de um amigo, e aparentemente a salvo, já que a guerra não chegou com força a outras partes da ilha, abriu uma loja de equipamentos eletrônicos, enquanto buscava formas de sair do Sri Lanka em definitivo para recomeçar a vida em outro país. Tentou por duas vezes, e em ambas teve o seu dinheiro roubado por duas agências diferentes que se ofereceram para organizar a sua partida.

Em 2005, quando ouviu que havia um cessar-fogo em curso, Siva decidiu retornar a Jaffna, certo de que a guerra estava perto do fim. Usou a experiência adquirida em Nuwara Elyia para continuar com o seu negócio de equipamentos eletrônicos, mas tudo veio literalmente abaixo quando, três anos depois, a guerra estourou com força total — para entrar no seu capítulo final —, e Siva viu tudo virar escombros. Sem nada para se reerguer, recorreu aos bancos locais após 2009 para contrair empréstimos que o ajudariam a retomar o seu comércio, mas o prazo para liberação do dinheiro poderia chegar a inacreditáveis dois anos. Siva, portanto, desistiu da ideia e conversou com uma prima, que o ajudou financeiramente para que pudesse comprar um tuktuk e iniciar, desta vez, no ramo dos transportes, o que faz até hoje. Também tem um táxi.

Na década que se seguiu ao fim do conflito, Siva viveu todo o boom turístico de 2011-2019. Tinha pelo menos um viajante por dia ou um grupo atrás de seus serviços. Ao longo do passeio pela costa da península de Jaffna, fez questão de me mostrar fotos com os clientes no seu celular — pouquíssimas de 2021 e nenhuma de 2020, o maior volume datado de 2019 (anteriores aos ataques terroristas). Assim como Tony, Siva sente todos os impactos causados pelo terror, pela Covid-19 e a atual crise econômica e política. Eu era apenas o terceiro cliente brasileiro dele desde que começou no tuktuk — antes de mim, duas amigas viajando juntas e uma família —, o primeiro turista em muitas semanas e o primeiro cliente estrangeiro de 2023.

Carrego comigo a hipótese de que Siva foi tão afetado pela guerra que, ao longo da vida, optou por não formar família. Tem 50 anos, nunca foi casado e não tem filhos, algo que considero incomum para a faixa etária de Siva no Sri Lanka com base em todas as pessoas que conheci e observei no país. Sem surpresas, diz que quer paz, e não esconde o incômodo com a forte presença militar do Exército na península, pois entende que isso pode inflamar a população local. Os soldados eram uma presença constante ao longo do passeio, embora não tenhamos sido parados em nenhum checkpoint. Compartilho do sentimento de Siva quando vejo, a partir da estrada, áreas privadas, espaçosas e luxuosas à beira-mar dedicadas aos comandantes do Exército enquanto logo ao lado reside a miséria. A poucos metros desses lugares, a presença de soldados é certa.

A crítica de Siva se estende à expansão do budismo na região, tal qual fez Tony. Causava-me curiosidade o tanto de templos budistas ao longo do passeio pela costa, algo que definitivamente não acontece na área urbana de Jaffna. Não precisei perguntar a respeito, já que o próprio Siva se exaltou ligeiramente quando estacionou o tuktuk em frente a um templo budista e começou a discursar.

— Por que eles fazem isso? Por que estão construindo templos novos aqui nesta área budista?

Junto com os militares que não vão embora de Jaffna, a religião é o segundo aspecto que preocupa Siva em relação a uma possível retomada de conflitos.

Durante o trajeto, também chamou a minha atenção a existência de casas esparsas que se destacam da pobreza ao redor justamente por sua suntuosidade. A resposta de Siva à minha pergunta sobre essa disparidade foi imediatada: “Europe money!”. Durante a guerra, aqueles que conseguiram fugir do extremo norte do Sri Lanka foram buscar abrigo na Europa Ocidental, e aqueles bem sucedidos no continente ao lado passaram a enviar altos volumes de dinheiro para os parentes que ficaram, o que fez pipocar aqui e ali casas enormes de dois andares com varandas e muros altos, salpicadas de uma explosão de cores tão comum na cultura local. O contraste com a realidade pobre dos vizinhos, que em muitos casos mal têm um banheiro em casa, é bastante evidente. Muitas das residências estão vazias, e são usadas apenas em temporadas de férias. Neste meio tempo, caseiros são responsáveis pela manutenção e segurança. A cada nova mansão, o mesmo brevíssimo diálogo dentro do tuktuk:

— Europe money?

— Europe money!

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