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Não havia mais nada para se fazer em Luxor. Estávamos cansados, entediados e enraivecidos de passar boa parte do tempo em nosso navio-hotel atracado às margens do Nilo. Jamais poderíamos zarpar rumo ao nosso destino inicial, Aswan. Imposição da polícia, que não mais permitia a navegação naqueles tempos revolucionários.

Nossa programação matinal naquele dia se resumiria a tomar café da manhã, e, quem sabe, nos arriscaríamos em caminhar pelas ruas da cidade. Aguardávamos, ansiosamente, já à quase dois dias, por uma ligação da nossa agência de turismo, referente à nossa partida do Egito. Cada vez mais, tínhamos a impressão de que éramos enganados, não por descaso da agência, mas por total impossibilidade desta em solucionar o nosso problema, que aparentava estar muito além dos seus poderes de resolução. Nossa partida do Egito parecia improvável.

Contrariando as recomendações de nossos guias, naquela manhã, decidimos caminhar pelas ruas de Luxor. Certamente, não parecia uma boa ideia, mas nos divertimos bastante, e tivemos a oportunidade de conhecer ótimos mercados de rua, com produtos locais a bons preços. Claro que cruzamos por barricadas e policiamento ostensivo, inclusive de unidades militares, mas, aparentemente, o movimento revolucionário já estava contido. Os prédios parcialmente destruídos e as ruas sujas que encontrávamos pelo caminho não impressionavam o povo egípcio; eram cenários corriqueiros ao seu cotidiano, inclusive em tempos de paz.

Naquela manhã, decidi comprar um Corão, livro sagrado da religião mulçumana. Em árabe mesmo! Sem nem mesmo saber distinguir uma única letra na língua. Foi somente após algum auxílio do vendedor, que descobri como segurar o livro corretamente. Ao contrário da literatura ocidental, a obra tem início no lado contrário ao nosso, e a leitura das linhas é da direita para a esquerda.

A felicidade do vendedor, por estar vendendo o Corão, em árabe, para um jovem ocidental, que se dirigia a ele em inglês, era visível. Afirmava que eu deveria “espalhar a palavra” pelo ocidente, e demonstrar que o islamismo não se resume aos fanáticos. Depois de negociarmos o preço – o que certamente não poderia faltar – decidiu me presentear com um chaveiro. Aceitei o presente de bom grado, e o coloquei sobre o Corão para efetuar o pagamento do livro sagrado. Não tardou para que o vendedor me informasse que eu deveria retirar imediatamente o chaveiro que havia colocado sobre o Corão. Fiquei surpreso, mas retirei sem perguntas. Logo depois, me explicou que o Corão deve ficar sobre tudo e todos, nada está acima da palavra do Corão.

Fiquei tentado em perguntar se os mulçumanos quando viajam, levam seu Corão amarrado do lado de fora da mala, e escrevem “Al Corão side up”, para assim indicar aos funcionários do aeroporto como se carregar corretamente a mala. No entanto, contive meu humor desnecessário; abstive-me a fazer cara de impressionado.

Quando regressamos ao hotel, após talvez 5 minutos, recebemos a ligação tão esperada da agência de turismo. Deveríamos estar na recepção do hotel em, no máximo, 10 minutos. Haviam finalmente conseguido um vôo para o Cairo, que partiria em apenas 30 minutos.

Nossos pertences estavam espalhados por todo o quarto. Levantamos imediatamente, e, sem cautela alguma, fomos colocando nossas coisas nas malas, dentre elas o Corão. Conseguimos nos aprontar em apenas 5 minutos. Descemos à recepção. Lá, nosso guia já nos esperava. Fizemos rapidamente o check-out e partimos em direção ao aeroporto.

Tivemos a nítida impressão de que estávamos em um filme hollywoodiano. Nosso motorista dirigia em alta velocidade por ruas estreitas, inclusive na contramão, buzinando freneticamente para que abrissem espaço. Nosso vôo partiria em apenas 10 minutos, e o aeroporto se encontrava à pelo menos 10 minutos de distância.

Além de dirigir perigosamente o motorista falava em árabe no celular, gritando com alguém do outro lado. Até que, num espanhol rudimentar, nos perguntou se estávamos com o passaporte à mão. Fui com a mão ao bolso e congelei… Não estava lá. Sempre levava meu passaporte no bolso de trás da calça, e pela primeira vez, não o encontrava. Desesperei-me!

Imediatamente, o motorista ligou para o hotel, instruindo que buscassem pelo passaporte no quarto. Tivemos de voltar. Já estava sem esperança que iríamos conseguir embarcar no nosso vôo. Desci do carro, e investiguei as malas; lá nada encontrei. Corri até o quarto e lá também não tive sucesso; não havíamos deixado nada para trás.

Quando voltei ao carro, minha mãe chorava, afirmando que haviam me roubado o passaporte, durante nosso passeio nas ruas de Luxor. Foi quando comecei a me perguntar o que aconteceria se, num país em plena revolução violenta, eu perdesse meu passaporte. Não queria nem pensar, mas as hipóteses já emergiam na minha cabeça. Comecei a acreditar na minha mãe; havia sido roubado…

Procuramos na mala dela, e lá também não o encontramos. As feições do motorista expressavam a indignação e preocupação que sentia. Ele também, certamente, já havia perdido as esperanças. Decidi abrir minha mala novamente, e busquei mais no fundo, local que tinha certeza que o passaporte não poderia estar. Foi quando, com surpresa, avistei o Corão, que estava embaixo de todo o resto, e sobre ele se encontrava meu passaporte.

No momento nem percebi a coincidência. Estava completamente extasiado com o fato de ter encontrado o passaporte! Entramos rapidamente no carro, e partimos. Dessa vez o motorista dirigia mais rápido ainda, mantendo o giro do motor sempre no limite. Ele estava muito nervoso e irritado com meu descuido, repetindo, a todo o momento, que dificilmente chegaríamos a tempo. Ligava várias vezes para alguém, que provavelmente estava no aeroporto. Porém, o que poderia essa pessoa fazer? Requisitar ao piloto do boeing que aguardasse?

Já havia se passado 15 minutos do horário de decolagem do avião, e nem estávamos ainda no aeroporto, e muito menos havíamos feito o check-in. Chegamos lá 20 minutos após o horário de saída do vôo. Dirigimo-nos ao guichê da companhia aérea muito receosos, talvez teríamos de voltar ao navio, e quem sabe quantos dias mais teríamos de aguardar por outro vôo como esse. Lá, fomos informados que ainda poderíamos embarcar no vôo. Pulamos de felicidade! Agradecemos imensamente por todo o esforço do motorista, que também não conseguia deixar de sorrir para nós. Estava feliz em ver o seu esforço convertido em sucesso.

Somente após embarcar no vôo, e me sentar relaxadamente na poltrona que consegui observar com mais calma a relação dos acontecimentos. Coincidência ou não, atualmente meu Corão está guardado junto aos meus outros livros, mas está alocado acima de todos, da forma que deveria ter sido desde o início. Com o Corão não se brinca!

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