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PICO DO ITAMBÉ A poeira comeu naquele final de tarde. O velho gol bola, branco, vinha resistindo bravamente, carregando cinco adultos e um bebê de 2 anos, indo muito além da sua capacidade de carregar coisas e gente, num tempo onde lei de trânsito quase inexistia. Nosso trajeto entre o vilarejo de Milho Verde e Diamantina-MG, teve que ser interrompido assim que avistei uma pequena e sensacional cachoeira à beira do caminho e decidi que ali seria o lugar do nosso acampamento, já que outra coisa que inexistia, era dinheiro para podermos nos hospedar em qualquer lugar e nossa Expedição Brasil Adentro estava sendo no modo “mendigo plus”, acampando em qualquer lugar e fazendo a nossa própria comida. (Viagem de 2003 - 8.000 km rodados pelo Brasil. ) Abrimos uma pequena porteira e estacionamos o carro sobre um gramado verdinho e enquanto as meninas correram para tirar a poeira do corpo, se jogando para debaixo da cachoeirinha, os homens trataram logo de montar nossas barracas. Estava finalizando a montagem da última barraca, quando ao longe avistei um sertanejo. Chapéu de vaqueiro, roupas surradas, um facão que arrastava no chão. Com passos largos e apressados, vinha em nossa direção, cara de poucos amigos, daqueles que atiram primeiro e perguntam depois. Avisei meu primo de que teríamos problemas e nos pomos a ficar em alerta, somente acompanhando com os olhos e com o coração apreensivo, porque estava bem claro que aquele era o dono da terra e possivelmente viria babando para cima da gente e como estávamos dentro da cerca, nos vimos acuados, sem reação, apenas torcendo para que a contenda se resolvesse o mais rápido possível, mesmo porque, estávamos com as meninas. - Boa Tarde senhores! - Boa Tarde! Respondemos em coro. - O que os senhores estão fazendo aqui? Olhei para o meu primo e para o Rogério, que se mantiveram calados, esperando que eu mesmo respondesse, já que eu estava mais próximo. - Olha, o senhor me desculpe, estamos viajando com minha família e estávamos muito cansados para prosseguir viagem, mas já estamos desmontando tudo e iremos sair das suas terras imediatamente. O homem nos fitou de cima embaixo, olhou para as meninas, que já haviam se ligado que a coisa não andava bem e já subiram o barranco da cachoeira e vieram em nossa direção. Botou a mão no facão, depois olhou ao nosso redor e vendo as barracas já montadas e os utensílios de cozinha espalhados pelo gramando, nos disse com voz firme: - Podem desmontar as barracas, vocês não vão dormir aqui não. - Mais uma vez, peço desculpas pelo incomodo, em no máximo uns 15 minutos estamos indo embora. - Quem disse que vocês vão embora, vocês são meus convidados, vou levar vocês para um lugar mais descente, onde poderão se instalar sem o risco de pegarem chuvas. Ficamos surpresos, até um pouco desconsertados, mas a gente estava com os pés na estrada, abertos para todas as experiências, era assim que estava sendo aquela viagem, estávamos viajando ao sabor do vento e resolvemos pagar para ver, onde aquele convite iria nos levar, feito por um estranho, no meio do sertão do Cerrado Mineiro, numa área pontuada por garimpo ilegal. Fomos levados para um rancho humilde, tão humilde como a própria casa do nosso anfitrião e lá nos instalamos em tarimbas, uma espécie de camas de madeira grudadas às paredes, forradas com palha. Um fogão a lenha nos servia de apoio para nossa cozinha e a noite, passamos contando causos junto com o nosso novo amigo, que se juntou a nós, numa janta comunitária. Seu Jesus, era uma figura fascinante, homem simples, herdeiro de um mundaréu de terras ali no sertão, tentava organizar as coisas e evitar que sua propriedade caísse nas mãos de garimpeiros ilegais. Sua vida era um livro de aventuras, pontuada por trabalhos em construtoras no Iraque a serviço do então ditador Sadan Hussen, até pescador e garimpeiro na Amazônia e passagem pela capital Paulista, onde trabalhou de motorista de ônibus. Aquele sertanejo nos conquistou de tal maneira, que foi impossível não aceitar o convite para irmos conhecer suas terras e termos contatos com uns garimpeiros amigos seu, vivendo como homens das cavernas, que nos levou a uma das maiores experiências das nossas vidas. O ano era 2003 e foi justamente nessa caminhada de um dia inteiro que tive a felicidade de botar os olhos nele. Eu já havia ouvido falar naquele PICO, que na época, era considerado o CUME DO CERRADO MINEIRO. Da posição de onde estávamos, ele dominava toda a paisagem e em meio a vegetação pontilhada por cristais e pequenas árvores tortas, embelezada por sempre-vivas, de posse de uma câmera yashica de 36 poses, saquei uma foto da minha filha JULIA, na época com 2 anos de idade e prometi para mim mesmo, que um dia eu botaria meus pés naquela montanha icônica. ( Julia em 2003 e atrás a direita a ponta do Itambé) Quase 20 anos se passaram e a nossa chegada ao Cerrado Mineiro começa por uma breve passagem no Parque Nacional da Serra o Cipó, onde fomos conhecer algumas cachoeiras, que haviam nos passado batido na viagem de 2003. Viajar pelo Cerrado é antes de tudo se jogar numa paisagem onde cachoeiras deslumbrantes já poderia fazer valer qualquer passeio, sem contar as inúmeras cidades e vilarejos históricos que nos vão sequestrando a alma e que nos faz nunca mais querer ir embora. Mas num primeiro momento, temos que nos focar no que nos propusemos a fazer, o objetivo principal, ao menos daquela região, que é o de subir a montanha que no passado nos encantou, pelo menos a mim, já que nessa viagem, além da minha filha Julia, hoje uma mulher, ainda contávamos com a companhia do Dema, amigo de infância e companheiro de tantas outras roubadas. Depois de partirmos de Serro, adentramos no meio da tarde, no pequeno vilarejo de Santo Antônio do Itambé. Atravessamos todo o povoado e fomos seguindo a placa que nos levou direto para estradinha de terra que em 2 ou 3 km, fez com que interceptássemos a entrada do Parque Estadual do Itambé, onde colhemos informações preciosas para que pudéssemos realizar a subida ao famoso pico, no outro dia. Na volta, paramos para um mergulho na Ponte de Pedra, uma atração da cidade, onde os locais vão se refrescar nos dias mais quentes. Ficamos sabendo que o único CAMPING da cidade, ficava junto à sensacional CACHOEIRA DA FUMAÇA, um monstro despencando em um lago enorme. E foi justamente lá que nos instalamos, um ambiente agradabilíssimo, mesmo porque, éramos os únicos turistas que por lá estava, em plena antevéspera de ano novo, um achado para cultivar a paz e o sossego, ter uma noite tranquila, para no dia seguinte, partirmos bem cedo para tentar subir o Pico. O dia mal acabará de nascer e já deixamos o camping em direção ao Parque Estadual, que abre as 6 da manhã, mas tivemos um entrevero para conseguir subir a estradinha íngreme perto do nosso acampamento, culpa das chuvas de verão. Chegamos à portaria somente depois das 7 da manhã, um pouco tarde para as nossas pretensões. No parque nos liberaram rapidamente, mas fomos obrigados a assinar um termo de responsabilidade por sermos liberados com tempo ruim. É possível seguir de carro por mais uns 3 km, mas depois de andarmos pouco mais de 1200 metros, o veículo empacou, simplesmente não conseguiu vencer o terreno extremamente liso e fomos obrigados a abandoná-lo a meio caminho de lugar nenhum, deixar jogado num recuo da estrada e nos pormos a caminhar mais cedo do que imaginávamos. É uma estradinha muito gostosa para caminhar e mesmo com um chuvisco insistente, andamos a passos largos, com uma temperatura muito agradável. Passamos por cima de uma ponte, onde uma placa indica um desvio para uma cachoeirinha e 1500 metros depois , chegamos a entrada da cachoeira do Neném, mas passamos batidos, porque pretendíamos conhecer as quedas d’água na volta e uns 4,5 km desde a portaria, tropeçamos na placa que marca a saída para Cachoeira do Rio Vermelho, que em mais uns 40 minutos de caminhada poderá nos levar até ela, mas ignoramos e continuamos seguindo, passamos por uma porteira de arame e 500 metros à frente, uma trilha a esquerda corta caminho , passa por campos abertos e nos devolve novamente para a estrada, que é o último lugar onde se pode chegar com um 4 x 4 . A estradinha ainda continua por mais uns 10 minutos, até que tropeçamos num casebre abandonado, que não tarda em desabar. É a última construção antes do cume, que pela placa de identificação, ainda está a quase 6 km de distância e ainda teremos que subir um desnível absurdo de mais de 800 metros. Ao lado do casebre há uma bica d’água, onde abastecemos nossos cantis, mas não é a última água disponível. Agora o terreno vai empinar de vez, a vegetação de altitude vai surgindo lentamente, o Cerrado vai se mostrando, se transformando num jardim florido, cheio de cores e plantas deslumbrantes, num cenário incomparável. A paisagem vai se transformando, grandes formações rochosas começam a despontar para todos os lugares, o cenário e as vistas vão se alargando e cerca de uns 2 km após o casebre abandonado, demos de cara com a LAPA DO MORCEGO, uma espécie de gruta, onde uma mesinha e um banquinho nos convidam para sentar e descansar as pernas. A nossa intenção, a priori, era fazer a travessia completa, ligando o Parque do Itambé até o Parque do Rio Preto, mas segundo o pessoas do Itambé, além de não estarem autorizando a passagem por causa do nível alto de alguns rios, que tem que ser cruzados, o acampamento no próprio Pico do Itambé está proibido até que se refaça o telhado do abrigo de montanha , já que não se pode mais acampar com barracas no topo. A trilha abandona a gruta e segue pela direita, entra num corredor de pedras, onde o chão forrado de pedrinhas brancas dão um charme todo especial. São paredes dos dois lados e vamos passando meio que exprimidos até que a paisagem se abre como se tivéssemos adentrado em outro mundo, com formações rochosas de todos os formatos e e uma em especial nos chama atenção por parecer um grande caranguejo e é para lá que corremos, para exercitar a nossa capacidade em escalar grandes rochas e nos deleitarmos com o topo da formação inusitada. No horizonte, do nosso lado esquerdo, uma ilha de pedra nos guia o caminho, enquanto do lado direito, um vale gigante nos faz tomarmos cuidado para não acabar escorregando para dentro dele, já que o terreno está muito encharcado. As 10 horas da manhã, uma placa nos indica uma fonte de água. Eu havia lido que essa seria a última água disponível antes do cume, que ainda não está perto, mas só se for em tempos de muita seca, porque hoje, água não falta em nenhum lugar. Mas não se engane, não é só agua que vamos encontrar nesse córrego e sim um excelente lugar para molhar o corpo, em marmitas charmosas, com um terreno colorido, verdadeiras jacuzzis naturais, dignas de hotéis cinco estrelas. Prometemos nos enfiar nas piscinas naturais na volta do cume e partimos, voltando para a trilha principal. Aos poucos, vamos deixando a ilha de pedra para trás e ao avançarmos, as vegetações de altitude vão se modificando e a temperatura também já começa a cair um pouco. Uma linha de postes ao longe nos indica que a direção seguida é boa, enquanto no chão, plantas carnívoras, as famosas droseras, vão se espalhando para todos os cantos. À nossa frente já é possível ver o espigão mestre que vai nos levar ao cume, mas quando encostamos nele é que nos damos conta de que um abismo gigante o separa do resto do mundo e uma ponte pênsil nos serve de passagem para cruzarmos para a outra dimensão. Antes de cruzarmos a ponte, ficamos ali, parados, admirando os cânions e toda a paisagem ao redor, dando um tempo para um gole de água e imaginando como se cruzava aquela fenda sem essa passagem artificial. Depois que a atravessamos, corremos para escalar uma formação que nos levavam direto para a beira do desfiladeiro e eu fiquei pensando como seria legal descer ao fundo dele e percorrê-lo por um tempo, mas não tínhamos corda para isso e muito menos tempo. Falando em tempo, a Julia quis ganhar um pouco e tomou à frente, mas como o nevoeiro baixou de vez, não conseguimos mais vê-la e comecei a me preocupar muito com ela. Ainda mais porque além do nevoeiro, a temperatura despencou radicalmente e as plaquinhas que marcavam o caminho, mal poderiam ser vistas. Agora é rampa de pedra, que as vezes precisava ser escalaminhada quando definitivamente encostamos no paredão e tocamos para a esquerda, até que ele abrisse para nossa passagem e ganhássemos a GRANDE RAMPA FINAL. Alcançamos a Julia e juntos fomos ganhando terreno, nos valendo das inúmeras plaquinhas, aliás, essas marcações são uma grande tábua de salvação em dias nevoentos e esse é um trabalho do Parque Estadual que tem que ser aplaudido de pé e eu ainda não consigo entender como tem gente que tem raiva de marcação de trilha, sendo que elas podem salvar muita gente em dias de tempo ruim. Há alguns minutos do cume, o tempo fechou completamente e a temperatura despencou de vez e quase não se enxergava um palmo à frente do nariz. Apressamos o passo, aumentamos o ritmo, cada qual tentando conquistar sua própria montanha, vivendo sua própria expectativa de cume, até que meio de supetão, batemos de frente com uma Pequena CRUZ sobre uma rocha mais elevada, marcando talvez o local exato, o ponto mais alto do grande PICO DO ITAMBÉ, 2052 metros no meio do Cerrado Mineiro, um gigante se levarmos em conta as baixas altitudes das terras ao redor. É um cume irregular, com vegetações de altitudes bem características e bem perto do topo, um pequeno lago, que nesses tempos de chuvas intensas, está transbordando. Eu ouvi falar que não haveria água no cume ou que ela é difícil de ser encontrada, mas sinceramente não sei se é porque não se trata de uma água boa para o consumo ou se realmente na estação mais seca ela some de vez, o certo é que nessa data, água tinha em abundância. Se naquela pequena cruz seria geograficamente o cume do Itambé, uns 30 metros à frente é que está instalado o ABRIGO DE MONTANHA e as grandes ANTENAS DE COMUNICAÇÃO. Se ao mesmo tempo é um charme ter um grande abrigo para poder se instalar, por outro lado, não me agrada nem um pouco aqueles trambolhos de antenas, mesmo que isso seja necessário e sirva a toda comunidade local. Aliás, acho que já deu há muito tempo esse negócio de se instalar coisas nos cumes das montanhas, sejam lá antenas ou qualquer símbolo religioso. O Abrigo é extremamente grande e caberia realmente vários grupos nele, mas hoje está em reforma, já que um raio andou destruindo as telhas e contém infiltração por todos os lados, mas para a gente, pouco importa, não iremos ficar mesmo. O dia já ia pela metade, então nos apressamos em almoçar rapidamente e como por incrível que pareça, no cume há sinal de wi-fi potente, talvez o único pico no pais a contar com essa tecnologia, aproveitamos para fazer um live e juntar parte dos amigos, já que era também o último dia do ano de 2021. Alimentados, nos despedimos do cume e partimos com tudo, descendo a rampa de pedra quase correndo. A visão lá do cume deve ser soberba, mas não fomos agraciados com tempo bom, coisa que só aconteceu uns 200 metros abaixo dele, quando paramos para apreciar as largas vistas, mas está aí algo que pouco importa nessa montanha, porque certamente essa é daqueles em que o caminho é tão gratificante quanto ao cume. Antes de voltarmos para a ponte pênsil, encontramos um funcionário do parque que estava indo fazer algum reparo no cume. Trocamos meia dúzia de palavras e seguimos. Antes da subida, questionei a Julia sobre ela subir com uma bota novinha e ela desconversou, disse que estava de boa, mas ao passarmos novamente perto do córrego, onde tecnicamente seria a última água disponível, começou a mancar e a reclamar de bolhas. Ali já vi que teríamos problemas e quando retornamos a gruta, a lapa dos Morcegos, paramos para fazer um curativo e aproveitamos para roubar um gole de café que o guarda parque havia deixado sobre a mesinha. A Julia se arrastou até o casebre em ruínas e quando caímos novamente na estrada, já vi que a nossa intenção de visitar a Cachoeira do Rio Vermelho, havia ido por água abaixo. O carro do Parque passou por nós, a fim de ir buscar o funcionário que já voltava do Itambé e quando passou de volta, não nos furtamos em pedir uma carona, já que a Julia simplesmente sucumbiu às bolhas nos pés. Os caras do parque foram muito gente fina com a gente e ao saberem que pretendíamos visitar algumas cachoeiras, mas que havíamos desistido, ao chegarem na bifurcação da Cachoeira do Neném, rumaram para lá para que a gente pudesse vê-la, porque a estrada se estendia até ela. Pouco depois das 4 da tarde, demos saída do Parque Estadual do Itambé, nossa missão havia sido cumprida. Voltamos para o camping na Cachoeira da Fumaça e quando lá chegamos, o dia já se preparava para dar cabo de 2021 e para comemorar nossa ascensão, jantamos uma comida mineira ali mesmo no restaurante caseiro e fomos dormir e levantamos lá pela meia noite, bem a tempo de ....... voltar a dormir novamente, porque não estávamos a fim de outras comemorações, já nos bastavam as glórias daquele dia. Vinte longos anos se passaram até que eu pudesse riscar essa montanha da minha lista. Aquele bebê de outrora, não mais existe e hoje, eu mesmo, antes um jovem na casa dos 30 anos, não passo de um senhor de meia idade, mas que ainda continua teimando em subir montanhas, talvez na intenção de passar a perna no tempo e pior ainda, é quando olhamos para o horizonte e fazemos novas promessas, de novas travessias, de novas caminhadas, porque enquanto ainda tivermos a capacidade de sonhar, ainda vamos tentando enganar, se não ao tempo, ao menos a nós mesmos. Divanei Goes de Paula
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