Mulheres negras viajantes: a viagem como uma maneira de (r)existir

Por Nathalia Marques

Black Girls Travel Too (em português, garotas negras também viajam) é uma comunidade americana que visa incentivar mulheres negras a viajarem. O movimento surgiu não por acaso. Infelizmente, viajar ainda é um privilégio branco, seja nos Estados Unidos ou no Brasil.

Para comprovar, basta um simples teste do pescoço. Entre em um aeroporto nacional e comece a reparar quantas pessoas negras estão viajando. É muito provável que você se surpreenda com a baixa quantidade.

O resultado deve ser visto como uma alerta gritante de que algo está muito errado. Afinal, os negros representam 54% da população no Brasil, segundo o IBGE. Para a turismóloga Gabriela Araújo o resultado do teste do pescoço tem um motivo.

“De maneira geral sabemos que a comunidade negra ainda é muito afetada pela desigualdade social. É uma dívida histórica ligada a uma herança de humilhação, submissão e privação de direitos que não sei se um dia conseguirá ser sanada. Certamente não parece haver interesse para tal pela sociedade como um todo”, explica.

Mesmo diante das dificuldades que se apresentam, pessoas negras continuam resistindo para sobreviver dignamente e isso impacta no viajar. Afinal, a viagem é uma maneira de colocar em prática o direto de ir e vir, estabelecido pela Constituição Brasileira e pela Declaração Universal de Diretos Humanos.

Sabendo da importância disso, alguns movimentos surgem visando incentivar e viabilizar a viagem. É o caso do blog Negra em Movimento, criado pela própria Gabriela Araújo; do projeto Bitonga Travel, desenvolvido por mulheres negras viajantes, e da Diáspora.Black, plataforma que oferece hospedagem compartilhada entre pessoas negras.

Mulheres negras viajantes: um papo com Gabriela Araújo

Conversamos com a Gabriela sobre seu projeto, a importância de viajar, as dificuldades enfrentadas por uma mulher negra viajante, o crescente movimento de minorias que estão se articulando para possibilitar viagens mais democráticas e muito mais.

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M pelo Mundo – “Viajar para (r)existir” é sua descrição no perfil no Instagram. Qual a importância pessoal e também social de uma mulher negra viajar?

Gabriela Araújo – Viajar para (r)existir foi um jogo de palavras que desenvolvi para conseguir transmitir a mensagem que eu queria que o blog passasse: a viagem para existir como parte fundamental na vida de muitos (inclusive na minha) e resistir enquanto corpo negro que constantemente precisa reivindicar seu direito ao espaço.

Pessoalmente, acredito que viajar é a melhor forma de aprender sobre si e sobre o outro. O contato com o diferente nos torna mais humildes e nos convida a refletir sobre realidades que não vivemos, mas que também existem e precisam ser iluminadas. Enquanto mulher negra, penso que viajar é um atestado de tenacidade. É uma declaração de que não cabemos dentro de estereótipos culturais, que sobrepusemos regras socialmente impostas e que lutamos para celebrar nosso legado e não mais ser escravizado por ele.

M pelo Mundo – Sabemos que ser mulher e viajar sozinha é enfrentar dificuldades e também ter que lidar com a insegurança. Você acredita que para uma mulher negra as dificuldades são maiores? 

Gabriela Araújo – Sim. Quando se faz parte de um grupo socialmente minoritário você enfrenta dificuldades; ao fazer parte de dois, três e assim sucessivamente significa que serão mais batalhas que precisará lutar.

Uma mulher negra precisa combater o machismo e o racismo ao mesmo tempo. Enquanto se preocupa com sua integridade física e moral precisa também lidar com a violência racial que inclui olhares maldosos, estereótipos, insultos, maus tratos, descaso e desconfiança exclusivamente por ser negra.

 

M pelo Mundo – Você declara em um artigo que há uma segmentação turística visando o empoderamento de minorias sociais. Você poderia explicar como isso se estabelece na prática?

Gabriela Araújo – Eu sou turismóloga, então a segmentação turística é uma terminologia que se tornou familiar para mim durante a faculdade. Basicamente ela surge com o objetivo mercadológico de dividir a demanda em grupos (ou segmentos) para conseguir planejar melhor a oferta e assim conquistar diferentes tipos de clientes.

Com esse conceito em mente, comecei a perceber como ele vinha sendo aplicado na medida em que minorias sociais começaram a viajar independentemente ou demonstraram interesse por viajar dessa maneira. Notei como isso vai além do lucro e passa a contribuir para o fortalecimento desses grupos.

Como assim? Uma mulher viajando sozinha há pouco tempo atrás poderia parecer absurdo e muito perigoso, em alguns locais e para algumas pessoas ainda é. Contudo,  ainda assim algumas começaram a desbravar o mundo, com cautela e com cuidados redobrados talvez, mas se recusaram a permitir que uma opressão que é estrutural comandasse como elas iriam viver suas próprias vidas.

Em consequência disso elas passaram a ser noticiadas ou tiveram a iniciativa de relatar suas experiências para outras mulheres que tinham a vontade de fazer o mesmo. Daí surgiram blogs voltados para orientar mulheres que viajam sozinhas, agências especializadas ou com roteiros voltados para elas, grupos de viagem comandados e formados só por mulheres, entre outras maneiras que cito no artigo.

Hoje existem muitas mulheres que viajam sozinhas porque se sentem mais protegidas em um grupo que é semelhante a ela, porque existem iniciativas que facilitam a viagem e, principalmente, sentem que podem fazer isso indiscriminadamente porque todo um movimento a deu força para tal.

É o mesmo caso da comunidade negra. Nos Estados Unidos surgiu um movimento chamado Black Travel Movement que age como uma plataforma de incentivo para que o povo negro tenha possibilidades de viajar com segurança. Isso pode ser aplicado com diversos grupos como a comunidade LGBT e a comunidade indígena.

A viagem pode ser uma forma de incluir estes grupos e fazê-los perceber que eles também direito à viajar e a existir, ainda que haja tantas vozes gritando o contrário.

M pelo Mundo – Infelizmente, fazendo um teste do pescoço em aeroportos, podemos identificar que a quantidade de pessoas negras viajando ainda é pequena. Qual a sua análise sobre isso?

Gabriela Araújo – De maneira geral sabemos que a comunidade negra ainda é muito afetada pela desigualdade social. É uma dívida histórica ligada a uma herança de humilhação, submissão e privação de direitos que não sei se um dia conseguirá ser sanada; certamente não parece haver interesse para tal pela sociedade como um todo.

Sendo assim a desigualdade é um ângulo que influencia muito a leitura sobre esse cenário, não só pela questão financeira como também pela realidade específica que grupos marginalizados enfrentam. São fatores como a precarização da saúde, sujeição à violência, acesso limitado à informação, rotina intensa de responsabilidades e a escravidão pelo trabalho, sendo ainda pior no caso de mulheres com as jornadas duplas e triplas de trabalho.

Aliado à isso está o fator da invisibilização. Quando se é negro as possibilidades de mundo são apresentadas de maneira diferente e por muitas vezes nos fazem acreditar que elas nem ao menos existem. Não nos enxergamos em exemplo nenhum e não vemos nossas experiências de vida como parte dos padrões, ou seja, não vemos espelhos de nossa existência. Constantemente somos manchetes da figura do que o mal representa ou vemos os nossos iguais sendo reprimidos, violentados e desrespeitados.

Se eu vivo num meio onde nenhum preto viaja, se a mídia não apresenta nenhum preto pelo mundo, se o que mais vejo é preto sendo hostilizado por apenas ser, se nunca senti na pele que era uma possibilidade para mim, por que eu consideraria viajar? Somos envoltos por referências que influenciam diretamente os nossos desejos e ações. Se temos somente referências do mal ou referência nenhuma consequentemente não nos veremos como protagonistas destas ações.

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Imagem: Gabi Araújo / acervo pessoal

Existe ainda o estereótipo de que a comunidade negra é integralmente desprovida dos recursos para viajar e a noção racista de que viajar não é uma ação que nos compete, como se fôssemos um corpo estranho adentrando um organismo saudável e causando a desestabilização de todo o processo.

Decorrente a isso surgem casos como o que citei no meu artigo O corpo negro e o mundo sobre uma idosa negra que foi alvo de ofensas racistas durante um voo da companhia Ryanair entre Londres e Barcelona .

Também recentemente a americana Aminatou Sow publicou um tweet em que ela questiona à comunidade negra quantas vezes eles já foram confundidos com negros famosos durante viagens (mesmo sem parecer nenhum pouco com a celebridade). O Travel Noire escreveu um artigo falando a respeito da repercussão do tweet que fez surgir respostas de muitas pessoas relatando suas experiências. É como se o mundo só conseguisse conceber que uma pessoa negra pode viajar somente se ela tiver rios de dinheiro na conta bancária ou estiver sendo patrocinada por ser famosa.

Tudo isso impacta a disposição, viabilidade e desempenho da viagem da comunidade negra. Mas felizmente esse cenário está mudando e acredito que seja graças ao efeito dominó para o qual a segmentação turística contribui. Ao ver um fazer, isso me diz que não estou sozinho e que existe força em números.

É benéfico tanto para o grupo quanto para aquele que cria o produto ou serviço; muitas pessoas negras se tornaram empreendedoras graças à viagem. Estamos nos fortalecendo e ampliando nosso leque de oportunidades.

M pelo Mundo – Para finalizar, como surgiu a ideia de criar o blog e qual é o objetivo dele?

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Gabriela Araújo – Sou apaixonada por viagem e por escrita há bastante tempo, então aliar ambas as coisas é algo que penso em fazer há alguns anos. Por motivos diversos como trabalho, estudo, comodidade e insegurança foi um projeto que demorei a tirar da gaveta.

O que me impulsionou a iniciá-lo foi uma reunião de três fatores: o fato de que a escrita é a atividade pela qual tenho maior paixão e já fazia um tempo em que a negligenciava; a carência de turismólogos que falam sobre viagem na blogosfera e a necessidade por mais mulheres negras como rostos de blogueiras de viagem.

Poderia considerar também três os objetivos do blog: reafirmar que a comunidade negra pode almejar viajar, sendo mais um veículo que otimiza as possibilidades para que isso aconteça; fomentar discussões e sugerir ações que contribuam para um turismo responsável e promover a viagem como ferramenta de inclusão e exercício de empatia.

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