Sobre quando me perguntam “o que eu fazia antes da estrada” e “porque eu comecei a viajar”.
“DE ONDE VEM A CORAGEM?”
Depois que de uma série de desacertos vi acesa o que chamo de a luz amarelada da minha infelicidade.
Aos vinte e tantos anos concluí que não saía do lugar, e admiti que me sentia confuso, frustrado e até fracassado. A insatisfação em minha vida foi por muito tempo uma constante. Um vazio que eu tinha enchido ao longo do tempo com sonhos abandonados e bebida.
Durante minha infância eu costumava me imaginar como um arqueólogo, sempre envolvido em alguma grande aventura pela Amazônia peruana ou no coração da África atrás de algum artefato importante. Quase todos meus gibis contavam histórias sobre dinossauros ou cidades perdidas, ouvia histórias sobre as Linhas de Nazca ou Angkor Wat, mirabolava minhas próprias teorias sobre Atlântida e a sonhava em desmatar meia selva atrás de Eldorado.
Mas não foi bem assim. Depois de uma série de prioridades abandonadas, possibilidades mal trabalhadas e frustrações, eu acabei me tornando apenas um designer com uma índole agressiva e um coração cheio de inveja. Um caldo turvo infernal de frustração reprimida, energia nervosa, cafeína e álcool.
Durante muito tempo, eu sinceramente acha que já vivera todas as minhas grandes aventuras. Para mim, provavelmente questões como “perder pessoas no Paraguai” – algo que, mesmo depois de anos, ainda não posso falar abertamente – já haviam ficado para trás. Eu mantinha uma séria postura defensiva, uma distância de fatores que, presumia, não faziam parte dos planos, e formulava desculpas.
Não foi um período marcado por decisões acertadas da minha parte. Talvez eu tenha seguido o caminho mais fácil, talvez eu acreditasse na remota possibilidade de um pouco de “diversão” nos finais de semana. E assim eu segui direto para o matadouro.
Acabei me tornando o “cara que acorda todo dia e se arrasta até um lugar praticamente igual a qualquer outro para fazer um serviço que não apreciava para gente que apreciava menos ainda”. Eu embarquei numa carreira determinada pela necessidade imediata de rendimentos e essa é uma escolha difícil de se ver livre depois.
Sem plano B, apenas insatisfeito com o jeito como as coisas acabaram e sem disposição, num cenário nítido demais eu decidia desfocar as bordas em qualquer bar um pouco antes de voltar a vida real. De algum modo, eu imaginava que certa manhã trombetas celestiais tocariam e eu teria então uma possibilidade.
Vagarosamente, as condições de extrema incerteza e a consciência de distanciamento sobre como eu verdadeiramente gostaria de atravessar meus dias me expulsaram do que eu chamava de trabalho. Embora o caminho fosse longo e − para que isso se concretizasse − muitas vezes fosse necessário caminhar na contramão, acabou sendo a melhor escolha.
Por sorte, houve muito o que aprender. Embora certas coisas já não tenham o mesmo apelo para mim, eu só precisei de tempo e de algumas decisões impulsivas para saber que, assim como na infância, eu ainda queria sim zarpar num veleiro mar adentro, vagar por trilhas da Patagônia e, quem sabe um dia, experimentar cérebro de macaco vivo no Triângulo de Ouro.
Eu resolvi viajar porque havia algo de honesto nisso.
Ainda que credenciais, papo furado, frases bonitas ou implorar por piedade possam mudar os fatos básicos, você sabe dizer para si mesmo se aprendeu algo ou não ao fim de cada dia. Você sabe se valeu a pena.
Em pouco tempo, vi uma vida inteiramente nova, uma lousa limpa. Num minuto eu estava enfurnado frente a um computador retocando fotos de casamento, e no seguinte no alto de uma duna observando o pôr do sol no Rajastão, sentado em frente a casa do Dalai Lama no seu exílio aos pés do Himalaia, assistia motoristas subornarem policiais na fronteira do Nepal, sacudia a neve das botas ao entrar no bar em Ushuaia após caminhar por cavernas sob uma geleira.
Desde minha primeira viagem há quase 6 anos, estive em algumas partes do mundo. E não vou dizer, por mais que gostasse de acreditar, que fiquei mais inteligente, rico ou encaminhado na vida. Há momentos em que tudo vai por água abaixo. Viajar nem sempre é bonito, nem sempre é confortável. Às vezes dói e quebra seu coração. Deixa marcas na sua memória, em sua consciência, em seu coração e em seu corpo. Após um tempo, mesmo a paisagem mais bonita ameaça se tornar um papel de parede em movimento. Mas em tantas outras vezes, tudo parece se encaixar. Você sempre aprende alguma coisa. E, em contrapartida, conforme você se move pelo mundo acaba deixando algo de bom para trás também. As pessoas, a diversão, os perrengues, os lugares em que estive, onde estou agora. Uma feliz, idiota e surreal confluência de eventos.
Eu atravessei a pé e desviando de barricadas por protestos no coração da Bolívia, invadi a casa das Forças Armadas chilenas para fugir do frio no Estreito de Magalhães e cruzei viadutos vazados sem parapeito há mais de 100 metros de altura. Eu estaria mentindo se dissesse que não estava apavorado. Mas, por pior que a situação se apresentava, eu tomei consciência de que meu maior temor sempre foi ver minha vida passar enquanto eu estava sentado frente a um lugar que eu não gostava ou sonhando acordado como Walter Mitty.
Ainda que seguindo por um caminho diferente, mas refém no meu infantil desejo por aventuras, eu finalmente encontrei em minhas viagens uma forma de explorar o mundo como eu sonhava quando criança.
Olhando para trás, tento manter apenas um lembrete crítico de estar presente, de ser grato, de estar atento à passagem do tempo. Eu não vou estar aqui para sempre.
Há vulcões na Islândia, vilas de pescadores no Senegal, o Rio Congo e plantações de arroz no Vietnã rural esperando pela minha chegada. E eu vou até lá. Desde que eu não volte a arrumar alguma desculpa esfarrapada para adornar a falta de coragem.
Fotos e Texto: Guilherme Hoefelmann
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Publicado originalmente no Grupo Mochileiros em:
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