Certa vez, durante o mochilão que durou oito meses de carona pela América do Sul, por “coincidências” da vida fui parar em um lugar chamado Huilloc, no Peru, com mais quatro amigos que conheci ao longo da viagem.
O lugar era incrível! Uma comunidade de pouco mais de trezentas famílias que ainda seguiam as tradições Incas, protegida por montanhas enormes e com o rio Patachancha cortando a cidade. Não havia hotéis/hostels ou agências de turismos, tinha apenas um restaurante e umas poucas casas de família que serviam comida e ofereciam hospedaria. Também não se via muita movimentação turística por lá, eu mesma só vi dois ou três europeus fazendo o chamado “Turismo Vivencial”. Ali todos se conheciam e suas rendas provinham quase que exclusivamente da agricultura e artesanato que eram vendidos na cooperativa.
Depois de rodar pelas poucas ruas do lugar decidimos montar acampamento em um campo no meio da cidade. Estava frio pra caramba e de tarde começou a chover. De noite, na tentativa de nos aquecermos, dormimos todos na mesma barraca.
No dia seguinte levantei bem cedo e agoniada com o pouco espaço onde dormiamos decidi sair para tomar um ar, quando fui abordada por uma cholita falando em Quechua comigo.
Eu não entendia um A do que ela falava, apenas os “desayuno” que soltava entre as palavras que não me faziam sentido nenhum. Imaginava que estava tentando me vender o café da manhã, e na tentativa de me guiar, ela com um olhar amistoso me pegou pelo braço e me levou até sua casa. Era um cômodo de chão batido, com um fogo de chão fervendo algo. Havia vários cuys correndo de um lado para o outro. No canto uma cama com alguns cobertores e duas crianças pequenas recém-acordadas nos olhando com curiosidade.O amigo que chamei para me acompanhar logo começou a registrar tudo em fotos, enquanto eu observava a “avó e a mãe” timidas, preparando a refeição matinal. Elas nos recebiam como se fossemos seres ilustres. Nos deram sopa e chá para aquecer o frio e muitos sorrisos que eram a mistura de acanhamento com curiosidade.
Até o pai da família voltar da cidade não havíamos tido nenhuma comunicação verbal com aquelas mulheres. Ele era o único que falava castelhano e quando chegou nos falou que iriam nos receber em sua casa que estava em construção ali perto, pois estava muito frio para ficarmos acampados. Ah, então era isso que ela queria me dizer o tempo todo!
Ficamos com eles dois dias e uma noite. Um teto oferecido por uma família que não nos conhecia. Uma família humilde que nos ofereceu café da manhã, almoço, café da tarde e o membro mais novo da família para apadrinharmos. Saulo é seu nome. Ele estava completando um ano de idade, e foi feita uma cerimônia onde seus cabelos eram cortados pela primeira vez por seus padrinhos, no caso, nós cinco.
No plano concreto eu ganhei um teto, comida e um afilhado, mas por dentro ganhei infinitamente mais que isso. Aquela situação que parecia cena de um filme me deu a percepção do bem gratuito (mesmo desconfiando que nos pediriam “propina” em algum momento. Sim, cabeça capitalista nossa de cada dia).
Naqueles momentos, o medo das pessoas, da estrada, do sonho que podia se tornar real, se dissolveu por completo diante da fluídez da vida. Me senti tão viva! Foi como em meus devaneios, quando aquilo tudo ainda era inalcançável. Fiquei sem opção, a não ser me entregar ao presente e usufruir da dádiva do sentir.